«Um momento, nada de pressas. Tu sabes a razão por que nenhum homem deve fornicar a mulher legítima?» Fica calado, à espera; calado e a oscilar. «Tu sabes», torna depois, «porque é que isso deve ser considerado um delito perante a lei? Chiu, eu explico. Porque a mulher legítima é o parente mais próximo que o homem tem, e entre parentes próximos as ligações estão proibidas. É ou não é bem jogado?»
- José Cardoso Pires, O delfim
Mais um título do mestre Cardoso Pires chega ao
Livros (s)em critério, desta vez
O delfim, a história de Tomás Palma Bravo, senhor da Lagoa, de Maria das Mercês, do criado Domingos e da Gafeira.
O delfim conta a história daquela pequena aldeia, a Gafeira, vista em dois anos consecutivos por um escritor e inveterado caçador que vai tomando notas, no seu caderno de bolso, das suas conversas com os habitantes: o cauteleiro, o padre, o dono do café, o presidente da junta, e, especialmente com o Engenheiro Tomás Palma Bravo, o Infante. Visto pelas pessoas da Gafeira, Tomás é como um senhor feudal a que devem prestar vassalagem, isto, é claro, enquanto reina a decência no seio da família. E mesmo assim não se escondem de comentar as estranhas relações entre o engenheiro e o seu criado Domingos nas suas costas, nem a aparente infertilidade de Maria das Mercês. Assim se vai construindo o livro, de relatos e conversas, de memórias e citações do escritor caçador que volta à Lagoa um ano depois da sua última caçada, quando já a história do Infante não passa de uma memória da aldeia.
Este é provavelmente um dos livros mais densos que li em muito tempo. Não pela intrincada narrativa (que existe - constantes analepses, por vezes imperceptíveis em que o escritor nos leva para o último ano sem que se perceba muito bem como), não pelo complicado enredo (que não é tão complicado assim - apenas um crime ou a falta dele) mas pela enorme profundidade que, mais uma vez, Cardoso Pires consegue dar às coisas aparentemente simples. Milhares de interpretações possíveis surgem ao falarmos de
O delfim. Muitas das análises centram-se na característica mais marcante do engenheiro, o
marialvismo de tempos passados, a honra quase medieval com que se parece reger e que José Cardoso Pires caracteriza com tanta mestria. Outras preferem o simbolismo da Lagoa e da submissão da terra a um homem, a uma família que gere o terreno mais lucrativo da aldeia. A Lagoa que é isco de caçadores e turistas mas que Tomás reserva apenas aos seus convidados, dando-lhe uma honra de senhora, honra de mulher amada, quase divina.
A verdade é que
O delfim é tudo isto e muito mais. É o espírito do português colonial ironizado ao seu expoente máximo no último representante vivo. É a dignidade de uma alma do passado. É o desespero de uma mulher mal-amada. É a vergonha dos criados frente a um senhor. É o machismo personificado em forma de pessoa intrigante. É o carismático engenheiro, a sua bela mulher, o seu criado maneta e a Lagoa numa mistura imperceptível por quem nunca se entregou ao mundo de José Cardoso Pires.
Comecemos pela mais evidente personagem, aquele que mais nos preenche o espírito na leitura deste romance: o Engenheiro. Herdeiro da família Palma Bravo, sente nos ombros o peso de continuar a secular tradição de senhores feudais que os seus antepassados começaram. Tem como farol guia o seu tio Gaspar, senhor de uma honra intocável que se vestiu de luto completo quando a filha fugiu com um homem. Dele vem a inspiração para Tomás e uma das suas célebres tiradas: "Se eu tivesse uma filha casada, ai dela que pusesse os cornos ao marido que era como se os pusesse a mim!" (citado de memória). Trata os criados como criados excepto o seu fiel Domingos, rapaz maneta mas hábil com as máquinas. Tomás tem por ele um apreço quase inexplicável, uma relação que vai muito além da normal entre patrão e servente, e, por ele, acaba por deitar a perder a honra familiar. O infante é símbolo do Portugal colonial, símbolo evidente do machismo arcaico, da honra e da altivez, jura preferir ser enterrado na Lagoa, tal como os peixes, com coveiroa de escafandro se for preciso, porque "o cemitério é de todos, mas a Lagoa é só minha."
A Lagoa, essa, é mística, pintada em tons de magia ao longo do livro, diz-se que tem poderes misteriosos e que, depois do desaparecimento do Infante, se conseguem ouvir o latir dos seus cães durante a noite, entre eles o Domingos que a população afirmava gostar de ser tratado como um cão pelo patrão. Tudo isto nos relata o escritor caçador através das suas notas, notando-se que também para ele, como para toda a restante população da Gafeira, a Lagoa não é um lugar comum. Parece, na verdade, ser o cerne discreto de toda a história, local de toda a acção relevante e local de miséria para a família Palma Bravo. Forma-se no nosso imaginário como nos filmes, com aquela neblina nas manhãs e brilhante ao sol durante as tardes de verão. Local de paixão tanto quanto local de crime. E assim é.
O escritor caçador torna-se num buraco através do qual espreitamos as personagens da terra. É a boquilha por onde somos apresentados ao Infante e à sua família, à Lagoa e aos seus mistérios. É, no fundo, um
voyeur que se alimenta das intrigas do povo e nos transmite as ideias que lhe ficam, de onde a única absurda será, talvez, uma admiração envergonhada pelo engenheiro que se vai percebendo pela maneira como fala das suas palavras e como trata a sua figura como alguém a ser ouvido. É símbolo da Nação rendida aos espíritos do passado, envergonhada, e, ao mesmo tempo, orgulhosa por eles.
Mas a mais intrigante, talvez até mal explorada, personagem é Maria das Mercês. Mulher urbana de pensamento progressivo e liberal, deixa-se ser posse de um homem de outros tempos, encantada pelo orgulho e pelo desprezo com que o Engenheiro a trata. Maria das Mercês que acaba os seus dias como Tomás Manuel queria acabar os seus (num indício claro do real desenrolar dos acontecimentos) que se permite ficar presa em sua própria casa numa solidão sufocante em que se vê obrigada a falar sozinha para reconhecer o som da sua própria voz. A voz de Maria das Mercês parece, na verdade, ser a voz de muitas mulheres daqueles inícios dos anos 60, agrilhoadas a um mundo que não as ouvia, a um amor que não as respeitava e seduzidas por um machismo que rejeitam.
Este é o mundo do Delfim, Tomás Manuel de Palma Bravo. A escrita de Cardoso Pires é igual a si própria, uma escrita que propositadamente tenta dificultar a leitura para relembrar ao leitor de que a sua atenção é necessária para receber todos os proveitos deste magnífico livro, obra de um verdadeiro génio das letras portuguesas.
Escrito originalmente aqui.