marcopintoc
|
|
« em: Maio 15, 2008, 15:31:17 » |
|
A fila para a exposição de Goya desenha uma longa serpente nas cercanias do museu do Prado. Indiferentes ao vento frio que ulula da serra os transeuntes firmam estoicamente a sua esperança na visão da obra do grande mestre. Não posso deixar de reparar no inválido na cadeira de rodas ; é bastante idoso , talvez oitenta ou mais anos , o rosto apresenta uma expressão de serenidade ,enorme livro de vida escrito nas rugas profundas que atravessam a testa; tenho a certeza que as rajadas de vento encontram ,nos desfiladeiros cutâneos daquela tez , a memória da fome que assolava Madrid durante o cerco fascista. A seu lado, embrulhada num impermeável do Real , a sua companheira , talvez tão velha como ele , olhos em paz fixos num ponto indistinto do horizonte . Não falam mas ocasionalmente a mão enrugada da mulher afaga o ombro do aleijado, diz-lhe: “Estou aqui. Como sempre estive†A minha presunção de civilidade dirige-me ao casal , informo que devido à sua condição não precisa de esperar e que tem acesso prioritário. A mão estende-se, aperta-me o pulso. Arrepio-me ao reconhecer o toque patriarca que esquecera desde a morte, há mais de duas décadas, do meu avô. Os olhos do ancião afagam-me com um sorriso terno. : - Hijo . Os meus olhos não são inválidos para beber a obra de Goya. Por isso aqui fico. De facto podes notar que não uso óculos, contrariamente a ti. A tua vista está bem mais velha e doente que a minha. De qualquer forma , obrigado. A vergonha assola-me e sou despedido por um soslaio divertido da senhora. Uma avó que repreende a travessura do infante. Uma fina chuva começa a cair, parte da multidão debanda. Removo os aros que embrulham a minha miopia e deixo a bátega lavar os meus olhos gastos dos tubos catódicos e das horas longas. De rosto erguido ao céu misturo umas lágrimas tristes em perfeito anonimato. Quando o meu pequeno acto de auto comiseração termina percorro de novo a fila em busca do casal . Não os vislumbro em lado algum. Quero acreditar que seguiram o meu conselho e usufruÃram do acesso prioritário. Todavia , uma hora mais tarde , já no interior do grande museu , perante o retrato da famÃlia de Carlos V encontro os seus rostos, já apaixonados, espelhados na tela. Acenam ligeiramente as cabeças, no rosto da mulher o mesmo ar divertido de há pouco. Há algo errado, a minha visão desfoca-se. Retiro os óculos e ,em silencioso espanto, descubro toda a força do traço do mestre. O pincel mágico de Goya esboçou um pequeno milagre na minha visão renascida.
|