sonhadoremfulltime
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« em: Outubro 22, 2008, 11:32:40 » |
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Que linda menina vi hoje cruzando a rua. Passo a passo à minha frente cortava o ar morno do fim da manhã. E o sorriso que levava nos lábios era feito de prudência, porque pressagiou que a vi, e entendeu-me. Linda menina que me invadiu a minha cabeça inebriada de sonhos. E eu cismava que beleza de menina assim, pura e longÃnqua, só ela justifica a vida parda dos homens que deixaram de sonhar. Que linda menina vi hoje! As árvores nuas balançam ao sabor do vento, as ruas tornam-se num longo vestido acastanhado, composto por folhas tecidas nas costuras dos passeios. Enquanto a chuva cai lentamente sobre as enormes árvores de braços abertos, os movimentos assimétricos das pessoas entram em diálogos ziguezagueantes com os recantos da cidade. Multidões correm de um lado para o outro, estou mergulhado num mundo particular, edificando enormes muralhas à minha volta. Os encontros furtivos são a quebra da solidão, trocam-se algumas palavras inócuas e continuo a minha viagem sem esgueirar um olhar, demonstrando um completo desinteresse pelo mundo que me rodeia. Todos os dias, um após o outro entro continuadamente na carruagem do comboio de uma forma ansiosa, escoltado pelos batimentos apressados do meu coração. O comboio vai cheio. “Já não dá para fumar um cigarro…†Por mais que tente, raramente consigo chegar à estação a tempo de poder contemplar, em forma de exercÃcio matinal, o estado de espÃrito dos passageiros quotidianos, que se lhes estampa nos rostos, roupas e posturas, observatório das dores das almas e das alegrias que lhes vão determinando os trajectos, sem que disso se apercebam. Dia após dia, insistimos em percursos que não nos pertencem, retirados ao acaso de uma bola gigante que não pára de girar. A linha sinuosa lembra uma serpente que nunca se cansa, que nunca pára. O comboio parece contente com isso, ou é o meu coração que satisfeito, corre igualmente serpenteando ao sabor ferroso dos carris, como se soubesse de cor aquele caminho, como se cada curva mais acentuada fosse um sulco familiar nas minhas mãos de palmas quase indecifráveis. Os meus olhos mal poisavam no vidro da janela, era como se eu pudesse fechá-los, como se tudo em mim soubesse de cor todas as rectas, a totalidade das curvas, todas as estações, todos os declives ameaçadores. Olho as árvores, a fraga repleta de pinheiros e ignoro a estrada que não há em mim. No regresso a casa, depois de mais um entediante dia de trabalho, novamente em circulação no meio de todas aquelas gentes, em velocidade desadequada aos sonhos de todas daquelas pessoas, aceitei finalmente a ideia de que nunca descobriria o que afinal lhes deformava as feições. Para além do sangue, das hormonas, das mãos, do coração, para além do óbvio, muitos há que já perderam a alma. Outros estão surdos que nem ouvem a música do vento, do mar, do canto das gaivotas. Existem outros como cegos que não vêem a cor do céu, nem das flores, nem o encanto de toda a natureza. E que outros são frios de coração que não sentem o calor do sol, nem o fresco da sombra ou a magia da neve que cobre a serra. Meu Deus e os homens egoÃstas, mudos que não repartem com os outros a abundância do pão nem a voz fraterna do amor. E, porque há homens assim permanecem crianças que choram todos os dias. Regressei ao meu percurso, por esse mundo fora, por onde percorro diariamente alguns quilómetros fictÃcios para depois me fixar repentinamente, assim sem mais, ao acaso, nos olhos de alguém. No meio de todas aquela multidão urbana, distingui uma rapariga de cabelos muito escuros. Aparentemente mais uma estudante, embora os seus olhos e mãos, revelem, em tom de compromisso, um tom escuro, de vida vivida, sem vida. Por descuido, empurrei-a. Enquanto me tentava equilibrar novamente e lhe pedia desculpa constatei que nada daquilo lhe parecia importar. Não se ouviu qualquer resposta. Bem, talvez aqueles olhos esbatidos sem expressão e as mãos pardacentas e agrestes a dispensem das palavras, justificando o silêncio que se impôs. Aqueles olhos pousavam sobre uma determinada queda, reflectindo a certeza de um não regresso, o definitivo abandono de um sorriso e a falta da bênção que nos enche o coração. Todos os dias, aquela rapariga de cabelos muito escuros, olhar baço e fixo, declara a falta de algo tão banal como um esgar de sorriso. Julgo que no espaço de vinte minutos, ela sonha a vida de outros. De todos quantos enfrentam perigos nas páginas Ãmpares de um qualquer livro, lutam com monstros inóspitos na capa de um outro, perseguem suspeitos no meio de qualquer parágrafo, ou fazem amor capÃtulos a fio. Sempre silenciados na última página. Julgo que mais ninguém a vê. Acredito que hoje sou mais eu, e menos quem pensava ser. Obra do acaso ou não, finalmente a mente parou de chorar e o coração abriu-se, como envolto num mar de rosas, cujos espinhos desapareceram. Porém o sentimento, envolto em alegria, deixou de ser rejeitado, deixei de chorar, de sofrer, de ter pesadelos acordado enquanto penso, deixei de ser quem era, e abri o mundo a um novo eu, a um novo tu, que me completa e me deixa feliz. A ti devo a alegria que voltei a sentir, a alegria de criança, a inocência, tudo aquilo que pensei ter perdido um dia. O comboio vai cheio. O sol outonal entra pela janela agredindo os meus olhos sensÃveis. As pessoas ora entram, ora saem. São figuras muito diferentes, mas todas têm um tom único. A vida atravessa o meu corpo tal como a luz perfura os carros que, em dias de sol, se embrulham no meio de uma estrada rodeada de árvores. Os longos ramos das árvores fazem a luz dançar com o movimento das folhas, atingindo entusiasticamente o vidro do carro. O comboio vai de facto cheio. As pessoas cruzam olhares e desviam-nos de seguida, como se fosse uma iniquidade, como se eu fosse um ladrão que pudesse roubar-lhes a alma apenas com um lance do meu olhar. Apenas uma menina me olhava com os seus enormes e rasgados olhos azuis. Ela parecia sorrir com o olhar. O cabelo escuro, revoltoso terminavam numa bela franja que lhe escondiam as sobrancelhas bem torneadas. Dois sinais junto aos lábios carnudos transmitiam-lhe o ar da menina que eu nunca tive. Sentado no banco e apoiado com o cotovelo na janela, tentei de maneira camuflada olhá-la. Sempre fora rebelde, na forma de crescer, agir, escrever e até de vestir. Ao vê-la sentada naquele banco, pude comprovar que pouco tinha mudado. O seu porte altivo e o seu olhar fixo sem desvios para nenhum dos lados, fez-me estremecer. Lembrava-me dela muitas vezes. Mas nenhuma recordação me afectava tanto como aquela. A capacidade que ela tinha de sempre me desarmar quando me olhava, sem ver. Era rebelde, extravagante e imprevisÃvel. Mas nas mesmas doses de bravura que a caracterizavam, possuÃa ao mesmo tempo uma serenidade estranha. Nunca se descodificava o que estaria a pensar quando os seus silêncios duravam horas ou até dias. Nem no que a levaria a cometer as loucuras e os excessos que levaram muitos a considerá-la uma força da natureza. Continuo a olhar distraidamente para as outras pessoas. Assim como se jogassem à s escondidas, elas olham e fixam o olhar para depois desviarem-no para que não se cruzarem directamente, evitando dessa forma um choque invasivo do interior dos seus corpos. O corpo; lugar esconderijo da nossa alma, onde sentenciam alguns segredos agitados pelo receio de serem descobertos. Através da janela dos olhos que trazemos connosco, dia-a-dia, revelam-se silêncios inexpressivos, Ãntimos, tão secretos quanto banais. Eu tinha desvendado o meu segredo. A filha que nunca tive.
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