Antonio
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« em: Outubro 05, 2007, 22:50:11 » |
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O Tenório era um finório. Sempre vivera de expedientes, sem um trabalho seguro e consistente, e gostava de mostrar ser um macho. Dizia poder aquilo que não podia e ter aquilo que não tinha. Um bazófias! E bem esperto fora ao casar-se, depois de vários anos de vida mais ou menos em comum, com a Miquelina. Esta, trabalhadora e submissa, era o exemplo acabado de quem se deixou converter num ponto bem pequenino deixando para o seu amor de juventude o palco e as luzes. Mas para o seu homem andar bem vestido, com os sapatos engraxados, brilhantina no cabelo e bigodinho de arame, esfalfava-se ela para ganhar um salário numa fábrica e para tratar da casa e do marido durante o resto do tempo. Do Tenório e do filho Tiago, rapaz que não negava a paternidade ao navegar na vida como um barco que parava em cada mulher como se fosse um porto. Ultimamente andava metido com uma alternadeira dum bar manhoso que, segundo as más-lÃnguas, o Ãa sustentando e aos seus vÃcios. Raramente vinha a casa dos pais e sabe Deus por onde andaria. Também no prazer pelos copos os dois eram parecidos bem como no gosto de dar umas porradas nas mulheres. Volta e meia a Miquelina aparecia com um olho negro ou com umas nódoas noutras partes do corpo que, ao contrário do que dizia, não eram resultado de fogosas noites de sexo mas de umas “pancadinhas de amorâ€. A diferença de gerações não era nada notória nos dois homens e para isso seguramente contribuÃram os bons conselhos que o Tenório dera ao herdeiro. Alguns bons conselhos e muitos maus exemplos, diga-se. Mas, com o passar do tempo, a Miquelina começou a detestar o amor da sua juventude e da sua vida. Começou a ficar farta do fala-barato e custa-caro. Cada vez mais saturada. Cheia até à ponta dos cabelos. Numa tarde outonal de um domingo em que o homem ficara a dormir para curar a bebedeira do sábado à noite, e em que uma chuva miudinha afastava as pessoas das ruas daquele bairro de casas de renda económica, foi a mulher fechar a persiana da janela no quarto de casal do pequeno apartamento no 3º andar elevado onde viviam. Mas não conseguiu. Estava presa em cima e teimava em não obedecer aos puxões que a Miquelina dava na fita enroladora. Só havia uma solução: tentar que o homem anuÃsse em dar uma ajuda. Nessa altura já ele se levantara do sofá da sala onde adormecera e estava a engalanar-se para mais uma saÃda. Mas, para não chamar alto e assim ferir os ouvidos sensÃveis do consorte, ela preferiu chegar junto dele e dizer: - Oh homem! A persiana do nosso quarto não desce. Podes ir lá dar um jeito? - Não desce? E que raio é que tu fizeste para ela não descer? É sempre a mesma merda! Mexes numa coisa...estragas! – refilou o cada vez menos querido marido. - Eu sei que faço muitas asneiras, Tenório, mas tu tens habilidade para arranjar estas coisas. Vai lá, está bem? – disse a mulher numa representação cénica de alto gabarito. - Pronto! Eu vou já! – condescendeu o chefe da famÃlia. E pouco depois a vidraça estava aberta e o homem sobre o parapeito da janela. Após algumas tentativas infrutÃferas, berrou: - Oh Lina! Traz-me a caixa das ferramentas e acende a luz. Ela foi buscar o material e aproximou-se da janela entregando-lhe a velha peça de madeira carunchosa onde estavam guardadas as coisas com que eram feitos os arranjos em casa. Ele segurou-a com uma mão e a Miquelina, rápida como um raio, deu-lhe um forte empurrão. O corpo do Tenório tombou para o exterior e a força da gravidade fez o resto. Ainda se ouviu um grito estridente mas que depressa se tornou abafado e, logo a seguir, um barulho surdo atestava que o homem tinha atingido o fim da viagem. A Miquelina veio à janela e gritou: - Socorro! Acudam! O meu homem caiu à rua! E repetiu. E repetiu. Mas interiormente, sorriu e pensou: - Acabou a escravidão! O Tenório jazia ensanguentado e um lÃquido vermelho Ãa lentamente tingindo o pavimento molhado junto do corpo inerte. Alguém chamara o 112. Depressa levaram o homem, mas já era cadáver. Depois, tudo se processou como mandam as regras: autópsia, luto, burocracias, funeral, investigação sumária e, como vira muitas vezes na televisão, a Miquelina achou que tinha cometido o crime perfeito.
Durante os dias em que tudo isso decorria, a persiana continuava teimosa, sem baixar. Com a auto-estima no alto, certo dia a Miquelina decidiu-se. - Raios partam a persiana que não desce! Mas eu trato do assunto. E, resoluta, abriu a parte envidraçada e empoleirou-se no balcão para dar um esticão forte na maldita. E conseguiu! A teimosa cedeu e desceu, mas a Miquelina também desceu indo cair mesmo junto do sÃtio onde jazera o corpo do seu antigo amor.
Nota do autor: Este conto obteve uma Menção Honrosa (juntamente com outros 15) no Concurso de Contos promovido em 2007 pelo site "Ora, vejamos...". Concorreram 21 autores com um total de 67 contos. Está publicado numa colectânea não-comercial (Um Mar de Contos) juntamente com todos os outros premiados.
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