António Casado
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« em: Dezembro 07, 2013, 17:17:44 » |
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- Estão a cuidar de nós! - Mentira! Quem cuida de mim é a minha mãe. Encolhia os ombros. Nada lhe diziam. Restavam as historietas da Mocidade Portuguesa para onde o queriam atirar. Alegavam que era um miúdo esperto e como tal devia aprender a devoção à Pátria. Consideravam-se os membros desta organização uma elite disposta a morrer pelas fronteiras dando como dignos exemplos do seu sacrifÃcio personagens como Egas Moniz, Nuno Ãlvares Pereira, LuÃs de Camões e, claro, os governantes. Afastados do lema “Pátria ou Morte†usavam o “Pátria ou nadaâ€! O fundamental era darem continuidade à s ideias conservadoras aprendendo a manter emperrado o desenvolvimento à custa do trabalho escravo e da repressão sobre a maioria do povo que exigia ser livre. Nunca se interessou por aquela organização. A melhor notÃcia que a mãe lhe pôde dar naquele Verão foi a de que ia mandar instalar luz eléctrica em casa. Até aà estudara à luz de um candeeiro de vidro que funcionava a petróleo e que a mãe colocava na cozinha. ConcluÃa que se iriam ter electricidade também teriam televisão. Deixaria de se reunir com os amigos no fim-de-semana em casa de uma vizinha de rua, a única possuidora daquele mágico aparelho. Viam filmes a troco de cinquenta centavos e assim passavam a tarde. A partir dali poderia vê-los com os amigos em casa. Séries como “Tarzanâ€, “O Santo†segui-las-iam como um encontro marcado com a aventura. Os olhos saltaram de contentes e só pôde lançar-se ao pescoço dela e beijá-la. As férias de Verão começavam sob a égide de uma boa estrela. No Ciclo Preparatório do Bocage o interesse pela leitura ganhou uma dimensão maior. Foi incentivado pelos professores a participar em diversos trabalhos de grupo incluindo o primeiro jornal editado em 71. O contacto com a poesia apaixonou-o. Rabiscava textos e rimas que guardava na estante do quarto. Entendia aquela forma de expressão como um sol que iluminava a alma. Tentava desbravar as palavras como um geólogo interpreta a estrutura terrestre. Descobria em cada poema um par de asas que o libertavam e alegravam. Fazia parte de um grupo de rapazes considerados os “alunos mais brilhantesâ€. Com eles brincava nos intervalos das aulas e descobriu o xadrez. Alguns companheiros de turma movidos pela inveja denominaram-nos “as meninasâ€. Nem por isso se afastaram. As turmas reuniram-se para impedir a proliferação daquele epitáfio. Para eles o demérito aumentou na proporção da inveja. Em casa o conflito com os pais tornou-se evidente e preocupante. Assistia ao desenrolar das múltiplas discussões e acusações mútuas que só por mero acaso não terminavam em cenas de pugilato. Apercebeu-se de que na vida do pai existia outra mulher. A ideia angustiante de uma separação ganhou consistência dentro de si. Parecia-lhe que alguém vinha roubar parte do seu mundo. De um momento para o outro viu-se relegado para um plano qualquer onde não se encontrava e do qual não fazia parte. Discutiam o divórcio sem que o enquadrassem na nova realidade que se avizinhava como o papão dos pesadelos infantis. Até aà sempre se sentira apoiado. Com os pais repartira gloriosas vitórias e notáveis sucessos. Via neles um exemplo de concórdia e paz que fotocopiava para o futuro. Entronizava aquela relação como perpétua, algo que jamais se quebraria, cristal muito bem guardado no cofre da sua necessidade de protecção. Agora o cristal quebrava-se sem que pudesse fazer algo para o impedir. Assistia como espectador ao desenrolar da comédia do futuro cada vez mais inseguro e enigmático. Procurava nos confins da culpa uma mácula que justificasse aquele drama. Passava a fio os slides da vida. Enumerava as diversas ocasiões em que os contrariara. Nada justificava a situação presente. A conclusão mais certa já que o desinteresse manifestado por si era constante ao ponto de nem evitarem discutir na sua presença, era que tinham deixado de o amar e como não sabiam que fazer com ele separavam-se. Cada vez mais afastados um do outro, e de si, não compreendiam o sofrimento que lhe ardia no peito nem a dor profunda e calada que lhe doÃa nas entranhas até ao insuportável. Separaram-se de facto. As águas de Março levaram com elas o pai. Do vazio deixado germinou a revolta contra o mundo e contra si. Tudo era péssimo, mau, pesado! Urgia aliviar a dor que lhe rasgava por dentro como um bisturi afiado. Punha-se em bicos de pés a gritar baixinho por eles… não o ouviam. Perdeu o interesse pelos estudos. Aos poucos deixou para trás as outras dificuldades e os amigos. As brincadeiras inocentes, os jogos, arrumou-os na prateleira da infância. A escola passou a ser o terrÃvel algoz onde se sentia supliciado dia após dia. Deixou de se rever nos companheiros de turma, alegres e despreocupados sem razão para sê-lo. O mundo tornou-se problemático, adulto, aterrador! Conheceu por essa altura dois rapazes matriculados no mesmo ano que raramente iam à s aulas. Fizeram-se amigos antes de ribombar um relâmpago. Descobriu que partilhavam os mesmos medos, inseguranças e angústias: Todos eles eram formigas sem carreiro. A liberdade, o incumprimento das regras, conferia-lhes uma sensação de evasão à realidade. Entre as faltas consecutivas à s aulas e as eternas corridas pelos descampados começou a fumar. Passavam o tempo à procura de crias nos ninhos. Apanhavam-nas e vendiam. Com o dinheiro apurado compravam tabaco. Quando a caça era boa, cerveja. Festejavam a boda da anarquia até se saciarem por um dia. A escola convocou os pais. Só Maria dos Anjos compareceu ainda debilitada pela separação. A depressão levara-a para o quarto cujas cortinas nem corria com medo que o sol entrasse e a magoasse. Não queria ver nem ouvir ninguém. Raras vezes se levantava para ir à s compras ou preparar uma refeição para o filho. Assistia-lhe uma vizinha que tentava ajudar como podia, inclusive financeiramente. Esta atitude mudou em que os recursos falharam e as contas acumuladas já se tornavam preocupantes. Com o apoio da amiga dirigiu-se ao psiquiatra. Lentamente conseguiu recuperar a vontade de viver e trabalhar. Informaram-na da gravidade da situação do filho. As notas tinham sido negativas e as faltas ultrapassavam os limites. O ano estava definitivamente perdido! Culpou João José. Desde que saÃra de casa nunca mais soubera dele nem ele do filho. Era como se um eclipse se tivesse apagado do caminho. Não fora Alexandre e daquele homem nem a sombra restaria. Levou as mãos ao rosto redondo como a lua e cobriu os lindos olhos castanhos que agora choravam. Os cabelos compridos e negros também se debruçaram sobre as lágrimas. Decidiu tomar uma atitude. Sentados no sofá da pequena sala Maria dos anjos pediu-lhe que rompesse o silêncio e falasse com o pai. - Não posso… Vê bem se tenho o azar dele atender!? – Defendia-se com ironia das súplicas da mãe. Tomou uma postura mais enérgica. - Ele é teu pai, Alexandre! Levantou-se e fixou-a. - Pois é… Vê lá como são as coisas. E eu sou o filho! A resposta foi seca e a discussão ficou-se por ali. Os novos amigos eram cada vez mais a admiração do seu doce olhar de mel. As saÃdas depois do jantar outrora esporádicas sucediam-se com maior frequência. As brincadeiras estendiam-se até de madrugada. A vida daquele franzino e esguio rapaz de onze anos era um barco à deriva no alto mar da despreocupação. Nada tinha, nada lhe interessava, nada ambicionava. Um dia cansada desta desordem esperou-o sentada na cozinha. Quando Alexandre entrou em casa estranhou a luz acesa à quela hora. - Senta-te! – A voz metálica da mãe suou aos seus ouvidos firme e rÃspida. – Vamos conversar. Preparou-se para mais uma habitual reprimenda. Estava cansado e lamentou o discurso não acontecer no dia seguinte. - Não sei que mais fazer. O teu estilo de vida entristece-me… Sei que pretendes chamar a atenção e que essa foi a forma que encontraste. A maneira como reagi a todos os acontecimentos também não foi a melhor. Aceito que nem te interesses pelo que sinto por ti… Alexandre, tu deixaste de me ouvir. Decidi que preciso dividir a tua educação com alguém. Sozinha não estou a conseguir… Vou falar com o teu pai e pedir-lhe ajuda. A testa franziu. Que queria ela dizer com “vou pedir-lhe ajudaâ€? - Vais passar uns dias com ele. Deu um salto da cadeira como se vislumbrasse um fantasma e arregalou os olhos. - Viver com o meu pai?! – Gritou. – Estás doida? Nunca! Ainda não reparaste que ele não quer saber de mim? Também não quero saber dele! Nem dele nem da tipa que vive com ele. Será que também já te fartaste de mim? Maria dos Anjos fitou-a compassiva. - Que vida é a tua, Alexandre? Faltas à escola, não estudas, não fazes nada… Só pensas fumar e andar com esses amigos de ocasião até de madrugada. Ainda és muito novo para isso. Pensas que por teres essa altura és um homem? Não és! Se não me ouves pode ser que escutes o teu pai. Alexandre emudeceu. Não sabia o que argumentar. - Eles não são amigos de ocasião e sei o que quero. Para casa do meu pai não vou! - Que pretendes então? Que a mulher que vive com o teu pai diga que nem te educar soube? É isso?! Queres que me humilhe? Diz-me! Que posso fazer? Um silêncio de facadas e dores abateu-se sobre os dois como as asas afiadas de um condor cortam o ar. Alexandre esforçava-se por encontrar uma solução no emparedamento em que a mãe o colocara. O pai já o expurgara da sua vida. Agora… a mãe? Tratava-se do seu futuro. Um futuro que até aà não tinha passado dos planos do dia seguinte. Viu-se forçado a acrescentar horas ao relógio. Tudo lhe parecia vago e distante como uma miragem num pesadelo. - … E se prometer que passo o ano…?! – Propôs a medo com os olhos vincados no chão e a voz esbatida pela tristeza. Maria dos anjos respirou fundo. - Este ano é impossÃvel passares Alexandre e sabes disso. A escola está a acabar. Mas para ti o problema é só esse, não é? – O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça. – É mais grave, filho. Por isso é que estou triste… Aproveitaste-te da minha doença para fazer o que quiseste. Nem por um momento te preocupaste comigo. Estás de mal com o teu pai e é em mim que te vingas como se eu fosse a culpada de tudo… - Não é isso! – Cortou apressadamente. - Então é o quê?! Aproximou-se dela e abraçou-a com quanta força tinha. Há quanto tempo mão sentia aquele corpo quente junto ao seu! Uma carinhosa mão afagou-lhe os caracóis castanho-claros e rebeldes. Por momentos sentiu-se invadido por uma asa de paz trazida pelo doce cheiro daquela mulher mediana, mas forte de estatura. Sentiu saudades daquele coração a pulsar junto ao seu peito. - Filho, não quero que penses que te abandonei… porque nunca o fiz. – Disse com o ar mais maternal que a sinceridade conseguiu encontrar. – Compreendo a tua revolta em relação ao teu pai… ele até podia ter ido com aquela mulher mas nunca devia ter esquecido que tinha um filho. Quanto a ti, não é fazendo o que fazes que chamas a atenção. Eu orgulho-me de ti. Os professores elogiavam-te. Olha-te agora… Pareces um farrapo! Até os versos deixaste… - Como sabes isso? – Perguntou a curiosidade de Alexandre. - Pensas que não lia o que escrevias? Não me conheces… Foram os teus poemas que me deram algum alento na depressão. Quantas vezes os li e reli como que para ganhar coragem para enfrentar o que sentia…! Uma lágrima rasgou-lhe o rosto. A amargura assemelhava-se à mordedura de uma cascavel. Fechou os olhos. Era imperioso não reavivar o sofrimento. Alexandre sentiu-se frágil e impotente perante aquela intrusão no seu mundo mais que privado. O que escrevia na confidencialidade do quarto não era para ser lido por ninguém, nem pela mãe. Quando escondia os textos na última prateleira da estante do quarto visava isso mesmo, sigilo. - A escola deixou de me interessar…
romance O POETA DA LUA CHIADO EDITORA
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