Maria Gabriela de Sá
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« em: Janeiro 23, 2016, 22:19:56 » |
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A casa apresentava alguns defeitos de construção. O ralo da cozinha estava submerso debaixo do fogão, situado a um canto. O escoadouro tinha de ser adivinhado. Usado para desentupimento se fosse necessário nunca. Era como se não existisse. Foram indicações da dona, quando comprou o apartamento, ainda em construção, e ninguém soube ou não quis alertá-la para algumas impossibilidades técnicas em satisfazer as exigências dela. Foi por isso que o futuro lhe trouxe problemas. Ela quis a cozinha assim e, bajulada pelo comprador, teve-a assim mesmo. A construção da casa, mais do que complicada, ao menos em alguns sítios, era arrevesada. Depois, era o marido que se estava nas tintas para um sem número de coisas: um prego que se solta, a silicone que, de repente, começa a deixar vazar. Coisas assim, como a caixa eléctrica que, desde as infraestruturas, ficou soterrada na parede do quarto de banho sob o espelho, e quando os circuitos eléctricos entraram pela primeira vez em colapso, lá teve que funcionar um grosso íman para arrancar o vidro e fazer o necessário conserto. Desta vez era o gás. A cidade adoptara recentemente as condutas debaixo da terra para levar a todos os lares esse invisível fluído. Quem quisesse aderir ao novo sistema tinha de recorrer a uma empresa para transformar o miolo de aparelhos como o esquentador e o fogão, adaptando-os às exigências do novo combustível.
O prédio inteiro, numa das últimas reuniões de condomínio, tinha-se decido por esta nova comodidade, com o marido dela, dessa vez, também presente. Não foi contra. Era menos uma preocupação. Andar de bilha para cá e para lá já não dava com nada. Ele que sempre morreu por não fazer nenhum. Para isso lá estava a escrava. O jantar aparecia feito sobre a mesa, na gaveta tinha sempre cuecas, meias e peúgas lavadas. Era o que a mulher fazia, enquanto se sentia engordar e depois o marido lho atirava à cara quase com desprezo. Chamava-lhe velha e gorda. Sobretudo quando chegava do treino semanal das corridas à beira-mar com os amigos, a cheirar a suor, faminto e a reclamar o almoço. Era uma acusação por ela não ter tempo para essas frescuras.
Quando soube que os homens do gás tinham de ir lá casa fazer as transformações necessárias, como sempre, delegou na mulher a responsabilidade de estar presente. Ela que andava há tempos a remoer sobre a foca que tinha em casa deitada constantemente no sofá a fazer zapping na televisão, e sobre os seus desatinos desencadeados quase desde o início do casamento.
Sentia, mais do que nunca, que o casamento de ambos fora um consórcio a prazo, e o divórcio luzia no horizonte mais forte do que um pirilampo brilhando na escuridão. Era apenas uma questão de tempo até ela chegar àquele limite de quando já não há mais volta e quando o caminho, dessa vez, tem de ser para a frente, sem recuo. Não devia deixar-se influenciar pelas reconciliações do passado que nunca a tinham levado a lado nenhum.
Os homens que iam tratar do gás para os electrodomésticos tocaram-lhe à campainha mal entrou em casa, depois de sair um pouco mais cedo do emprego. Eram dois, um deles brasileiro que nunca perdera nem o sotaque, nem a sedução em que os brasileiros são exímios.
Depois, o outro, o português, vendo a carga de trabalhos que o colega tinha pela frente, tratou de dar à sola, propondo-se voltar apenas quando tudo já estivesse solucionado. Nessa altura, ela, sozinha em casa, não teve consciência da gravidade das coisas. Mas, aos primeiros sinais de que nada iria ser fácil, tratou de avaliar a situação. Mal o brasileiro arrancou o fogão pelo buraco que ficou à mostra, viu um mar de azeite que se tinha escapulido pelo silicone já gasto, e foi sem perda de tempo que se muniu do balde, da água, do detergente de limpeza e dos esfregões de arame, enquanto, deitada de barriga sobre a lura aberta, começava a escanhoar o lixo, até ao vértice do triângulo formado pela implantação do fogão, que, não fora a transformação do equipamento, morreria ali até às ruínas da casa quando a civilização deixasse cair as construções como se tudo fosse um imenso Coliseu igual ao de Roma demolido pelo terramoto dos tempos.
E o brasileiro ali a mirar-lhe o traseiro enquanto ela, certa, entre outras coisas, de estar a atrasar o já difícil trabalho ao homem, lhe pedia desculpa obtendo como resposta que, só pela visão, tudo estava a valer a pena. E ela ali sem poder recuar na tarefa em marcha.
Tudo ocorrera numa ocasião em que derramara, por descuido como não podia deixar de ser, quase uma garrafa inteira de azeite. E, por agora, não lhe restava outra alternativa senão limpar e limpar, fingir-se inocente e ignorar a cantada brasileira. Na altura, quando a garrafa se partira, lembrava-se de ter pensado no mito urbano que atribui azar ao facto de se verter azeite, mas, hoje, ali e agora, via claramente que azar, azar foi mesmo o ter de limpar aquele mar de lodo e gordura. Ainda por cima com um brasileiro sedutor a admirar-lhe o traseiro encantado com aquele bodo erótico que lhe aparecera pela frente sem ninguém contar.
Para ela, limpadora habitual mas em má posição momentânea, todo o resto eram pormenores irrelevantes. Era preciso resolver aquilo. A seguir, o trabalho do homem complicava-se como se previa. E foi quando ela percebeu que se prolongaria até à eternidade caso não tomasse providências. Já constatara que era tecnicamente impossível uma criatura sozinha levar a bom porto aquele imbróglio que o construtor deixara na cozinha para sempre.
Uma vez que o seu traseiro já se insinuara o suficiente junto do brasileiro, pensou que exibi-lo mais uns instantes não iria fazer diferença. O que queria era, o mais rapidamente possível, ver tudo no sítio outra vez. E foi de mangas arregaçadas que se meteu de novo no buraco. Era necessário que uma mão segurasse na curta ficha do fogão, lhe atasse um fio e que outra mão agarrasse o dito fio no outro lado, de onde as gavetas do armário já haviam sido removidas e em que o buraco se via, depois do corte que os construtores de armários tiveram de lhe fazer para a tomada ficar relativamente acessível e utilizável. E a mão dela era a mais pequena.
Espapaçada no buraco, com as pernas sobre o cimo do fogão que, entretanto, tivera de ser aproximado mais um pouco da entrada por causa do pequeno comprimento do fio eléctrico, o chão estava agora todo ocupado e ela não tinha outro sítio para por as pernas senão a parte superior do bendito fogão.
Naquela estranha posição, depois de ter usado detergentes para remover a gordura, sentiu as mãos deslizarem sobre o azulejo do chão começando a perder o equilíbrio, enquanto pedia ao homem um pano seco para o chão.
Teve de lhe indicar o sítio onde o ir buscar. E quando a primeira dificuldade ficou sanada, disse-lhe para prender um cintinho delgado de umas calças velhas lilás na ficha, que, quiseram as coincidências e a providência divina, estevam mesmo ali à mão de semear, no cesto vazio da fruta.
Enquanto obedecia, o brasileiro perguntava-lhe se ela não estava a machucar-se ao que ela respondia que não. E, finalmente, ele do lado das gavetas e ela do lado do buraco do fogão mais a sua mão pequena com a tira segura, as mãos de ambos encontraram-se, até já não mais ser possível perder-se a ficha presa com uma fita lilás lá do outro lado da mão brasileira. A ponta da tira, do lado das gavetas, dava ao fio comprimento suficiente para a ligação à tomada quando ela saísse do buraco, de barriga para baixo como sempre estivera e o fogão se lhe ajustasse para o encontro final entre a ficha e a tomada. Mas agora urgia sair daquela posição de sapa recuando como um caranguejo, ali com o chão a escorregar-lhe outra vez debaixo das mãos enquanto perdia o equilíbrio.
A situação era de risco, e salvá-la daquele chão escorregadio tinha mais a ver com bombeiros do que com especialistas de electricidades, gás e esquentadores. Contudo, só estavam ali os dois, e o homem, sem fazer o pedido de autorização - as circunstâncias não eram de molde a perder tempo - puxou-lhe as pernas começando desde o calcanhar até cima, com o cuidado de quem está numa cama a acariciar uma mulher por quem se esteja apaixonado sem que ela pudesse aconselhá-lo a ter calma com o andor.
No fim, quando já estava de pé, o brasileiro, que ainda não tinha perdido o sotaque, olha-a com olhos de carneiro mal morto e diz-lhe naturalmente:
- Sabe, a senhora me excitou viu!?… Desculpe… Não fiz por mal…
Com um sorriso irónico a bailar-lhe, não tanto na boca como na cabeça, entendeu desvalorizar a questão, enquanto o homem prosseguia com o trabalho.
Depois, sempre divertida, deu consigo a lembrar-se do marido foca que passava os dias no computador a fazer zapping e a chamar-lhe gorda. E pensou que, querendo, tinha ali uma ocasião soberba para se vingar de anos e anos de insultos e traições. Ainda que numa vulgar rapidinha e após saber que, mesmo gorda e a cheirar às vezes à cebola dos estrugidos com que lhe fazia feijoadas, ainda era capaz de despertar o desejo de um homem.
Sentiu-se mais sensual do que nunca e, sempre de sorriso nos lábios, disse para com os seus botões: - Anda lá, Óscar, hoje foi o teu dia de sorte… Vais permanecer ainda algum tempo com a cabeça sem enfeites. Valeu-te o homem de gás não me fazer tremer nem um pouquito as pernas…. Mas, não me voltes a chamar gorda!...
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