O que pensa uma mulher enquanto cose um botão?
- Gabriel GarcÃa Márquez, Memória das minhas putas tristes
Chega finalmente à mesa do
Livros (s)em critério uma obra do grande senhor das letras colombiano, Nobel em 1982, Gabriel GarcÃa Márquez. Não será a obra mais importante da sua carreira, essa honra caberá talvez a
Cem anos de Solidão, mas esta foi a primeira que tive o prazer de respirar.
O livro, que já de si é de reduzida dimensão, chegou-me às mãos em edição de bolso da
Booket, talvez por isso tenha tomado um fôlego maior que o normal e lido a pequena maravilha em menos de um dia.
A história é a da velhice. Não de uma velhice qualquer, uma velhice nonagenária, por isto quero dizer que é a história de um senhor, cronista toda a vida no jornal local, que acaba de completar noventa anos de vida. Ora este senhor decide, impulsivamente, oferecer-se uma virgem de presente e para tal faz os arranjos que toda a vida soube necessários. Curiosidade à cerca deste velho, que não é de todo uma curiosidade e sim o tema central desta história como mais à frente vai ficar claro, é que nunca se deitou com uma mulher sem lhe pagar. Arranjos feitos, o senhor deita-se ao lado de uma mulher, menina ainda de catorze anos, que já tinha adormecido quando o velho entra finalmente no quarto. Incapaz de acordar, o cronista deixa-se ficar por ali, deitado ao lado da menina quase mulher, que todo o dia tem de trabalhar na fábrica de botões e ainda assim se vê forçada à prostituição para arranjar o dinheiro que lhe falta. A noite passa e nem a menina acorda nem o velho a quer acordar, e assim começa o ano noventa deste velho senhor.
Sejamos francos, apesar de primorosamente bem escrito, de uma história enternecedora e de (algumas) personagens cativantes, este não é um romance que vá ficar como referência da história da Literatura. Aliás, nem se esforça para isso. E talvez aà se veja o encantamento de um livro despretensioso, quando tinha todas as razões do mundo para não o ser, se tivermos em conta o seu criador. A beleza aqui está na simplicidade - da história e da escrita. Não é um qualquer escritor que consegue manejar bem a arma da frase simples, na verdade é bem mais difÃcil escrever uma frase concisa e bela do que uma carregada de artifÃcios. E mesmo simples, talvez o livro não seja tão unidimensional como à partida se quer apresentar.
Uma história de amor numa vida que nunca viu amor. Este é o tema central, a tal única dimensão de que falei ainda agora. Um homem descobre o verdadeiro amor na ponta final da vida, quando por ele já passaram milhares de mulheres que não deixaram mais do que marcas fÃsicas. É sempre emotivo quando vemos um velho se apaixonar verdadeiramente. Talvez pela súbita tomada de consciência que o tempo também por nós passará, reconfortamo-nos na ideia de que na altura em que toda a gente é mais nova a vida ainda vive no coração.
Na minha opinião aqui reside a força do livro, é uma montra para a velhice que nos aguarda. A ideia de que mesmo depois do ano que já não esperávamos viver, tudo pode mudar e mudar completamente o passado que julgávamos certo. Para este homem que sempre viveu sem saber o que era o amor, tudo mudou, passado presente e futuro, no minuto que viu o corpo da menina de catorze anos, nua, deitada na cama, a dormir serenamente.
Isto não é simplesmente a história de um velho que descobre o que é o amor aos noventa anos, é a história de todos os que descobrem o amor, em qualquer idade, porque ninguém deve "morrer sem provar a maravilha de foder com amor." Não sejamos nós nonagenários quando descobrirmos isso.
Escrito originalmente aqui.