não faço qualquer ruÃdo ao ler estas
palavras. busco o silêncio agora, enquanto
o espectro ilumina o meu caminho
e não tenho para fazer algo que lhe
seja mais parecido. colaboro. já o sol
se esgota na minha cabeça e os
dias não são mais que a intermitência
com que abro e fecho os olhos
- valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde
Diz-se que o novo ano é sinal de mudança. Não sei se sim, mas é, sem dúvida, sinal de evolução. Ou não fosse o primeiro livro do ano um livro de poesia. E quem melhor para estrear o género do que o
poeta que
tenho vindo a estudar nas últimas semanas? Muita gente. Mas já lá iremos.
Antes dos injuriosos nomes que chamarei a valter hugo mãe, não posso deixar de sublinhar a dificuldade que é, para mim, escrever sobre um livro de poesia. Mais difÃcil do que dizer algo de novo sobre o maior mestre da literatura mundial, seja ele quem for, é falar, pouco ou quase nada que seja, mesmo sobre o pior dos livros de poesia. Aproveito, portanto, esta oportunidade para salvaguardar a crÃtica menos repreensÃvel que tenho feito a romances, contos, e a todos os outros géneros em prosa, desta que me aventuro agora, onde sou inexperiente e, veremos, incapaz. Ainda assim a teimosia e o crescente amor à poesia dizem-me para continuar e tentar analisar um livro, aponto já um dos trunfos de
estou escondido na cor amarga do fim da tarde, a coerência temática que o torna num livro e não numa simples colecção de poemas.
Este é, se os dados disponÃveis não me falham, o sexto livro de poesia de valter hugo mãe, editado pela Campo das Letras, no Porto, em 2000. É também, a julgar pela sua exclusão em
folclore Ãntimo, um dos livros considerados menores pelo autor, segundo uma
entrevista recente a Carlos Vaz Marques na TSF. E detesto concordar com ele, mas é verdade.
estou escondido na cor amarga do fim da tarde é um livro pouco conseguido. Diria mesmo mau mas há nele pedaços de qualidade que evitam tal consideração. Considere-se o poema transcrito no excerto e confronte-se com este:
sofro o fio que o
cabelo alinha no chão. a
noite que vem comer a luz
ao dia. minha voz
superior. deus certamente
corrige os meus olhos. vejo o
frio, a paralisia do
vento. e preocupo-me
lentamente. um estar vivo
sem qualquer obrigação. vou
dizendo o escuro pormenorizadamente
A rima em advérbios de modo salta aos olhos e não por a ter destacado. Não só a rima fácil mas também a colagem de imagens poéticas que transtorna, “vejo o / frio, a paralisia do / ventoâ€, imagem aliás bastante repetida ao longo do livro, logo na página seguinte lê-se “o vento que possuo, mas / não se mexeâ€. Muitos dos poemas contidos em
estou escondido na cor amarga do fim da tarde sofrem deste mal, assemelham-se a uma colagem infantil de frases bonitas. O próprio tÃtulo do livro, parte de um dos poemas, revela bem o tipo de conteúdo. As sinestesias são constantes e, atrevo-me a dizer, uma das sensações que misturam é a náusea causada pela repetição. Constante também é o tom reflexivo no futuro, presente em grande número. De certo esta é apenas uma quezÃlia pessoal com o tempo dos verbos mas, ainda assim, mencionável. “o que / a luz fará aos meus olhos / será indescritÃvel e impedir-me-á de / raciocinar por longo tempo†e outros versos proféticos que tais abundam em especial na segunda metade - apesar de ser a mais bem conseguida.
Claramente, nem tudo é fraco. O poema com que apresentei o livro demonstra já uma qualidade acima da média. “os / dias não são mais que a intermitência / com que abro e fecho os olhosâ€, um claro realce na componente visual que corrobora a ideia de que não há “qualquer ruÃdo ao ler estas / palavrasâ€. A vida é, portanto, silenciosa, iluminada pelo “espectro da morte†quando “já o sol / se esgotaâ€.
Outro dos pontos fortes, aliás muito fortes, é, como já referi, a coerência do livro que o torna um livro. Num mundo onde os livros de poesia mais parecem colecções de textos sem qualquer referência,
estou escondido na cor amarga do fim da tarde ganha relevância. O tÃtulo carrega não só a sinestesia enjoativa como o tema global - o sujeito poético que se esconde da vida nos lugares mais inóspitos. Este desejo ou fatalidade de passar ao lado do mundo é constante e presente em qualquer dos poemas aqui encontrados. Esta precisão encontra-se, aliás, em outras obras poéticas de valter hugo mãe, como no fascinante
a cobrição das filhas de que um dia aqui falarei.
estou escondido na cor amarga do fim da tarde é um livro para quem quer ter uma desculpa para não gostar de valter hugo mãe. Existem nestas páginas muitas razões para uma zanga com o trabalho do autor. Não é um livro memorável mas possui poemas com qualidade suficiente para merecer uma leitura atenta.
Originalmente aqui.