Maria Gabriela de Sá
|
|
« em: Dezembro 09, 2013, 21:10:12 » |
|
Passava a vida à janela a regar o vaso de sardinheira rosa que por lá estava desde o tempo da mãe, morta de velhice depois de muita renitência em abandonar o mundo.
A razão de tanta longevidade foi, durante muito tempo, entendida pelo próprio tempo, que se dilatara compreensivo de maneira à senhora cuidar da filha, já cinquentona, mas de quem o juÃzo se escapulira por alturas da adolescência, quando a rapariga devorava livros que iam desde os clássicos da literatura até as propaganda belicistas. Quando a pobre mãe surpreendeu, pela primeira vez, a filha a insultar os transeuntes da rua, perto da janela, compreendeu que a jovem não passava de uma louca capaz de tudo, mesmo até de pegar fogo ao solar. Isto apesar das longas ausências, quando se trancava no quarto numa aparente serenidade, que outra coisa não era senão uma manobra oculta para prosseguir uma senda maquiavélica. Logo a seguir à s primeiras manifestações de insanidade, surgiu a única consulta ao meu consultório.
ï€ Dr. Henrique, a minha filha, coitada, não anda bem − disse a mulher, entre a tristeza e a vergonha, enquanto se lembrava das enormidades da criatura.
Não precisei de muito tempo para compreender que a cura para o mal não estava nas paredes do meu modesto consultório de clÃnica geral, morando sim na porta ao lado, sobre a qual havia uma placa a dizer “médico psiquiatra†e para onde, com a subtileza de que fui capaz, acabei por mandá-la. Depois, o tempo foi passando e já quase ninguém ligava à mulher. Só os que não a conheciam e os loucos como ela lhe concediam um primeiro crédito. Mas, até mesmo estes acabavam por deixá-la a falar sozinha, no seu jogo de patetices ostensivas arremessadas ao vento da indiferença. Já para os vizinhos, ela era apenas “a maluca da casa das sardinheirasâ€. Um dia, passando na rua, vi-a à janela a regar, como sempre, a planta, cuja sorte era o vaso ter bastantes buracos por onde a água se escapulia rapidamente. De contrário, a pobre da sardinheira já teria morrido afogada com tanta água, no tempo de todos os disparates da dona.
Contudo, parecia mais calma e atinada. Os quÃmicos estariam, provavelmente, a fazer algum efeito, apesar de andar com a mania de que a casa pertencera a Ernest Hemingway. Achava ainda que aà houvera grandes tertúlias no passado, a que não faltara Camilo Castelo Branco, e que fora até lá que o autor se inspirara para escrever A Doida do Candal.
A mulher, numa parvoÃce congénita, já tinha mesmo solicitado à Câmara uma placa que dissesse: “Aqui viveu o escritor Ernest Hemingway, por quem os sinos dobramâ€. Mas as palermices do requerimento rapidamente atestaram o débil estado psÃquico da criatura e o papel apenas mereceu o destino mencionado no art.º zero do código das importâncias.
Assim, a cinquentona, que, mais dia, menos dia, fará sessenta anos e que, nessa altura, talvez até desgrenhe os cabelos, aguarda o decorrer do tempo e, finalmente, uma lápide honrosa numa campa que diga, com alguma misericórdia: "AQUI JAZ A LOUCA DA CASA DA SARDINHEIRA", por quem os sinos dobram... Digo eu, que sou um humilde médico de clÃnica geral.
Porto, 9 de Abril de 2003
PS - Houve um tempo em que os frequentadores do JN on-line travavam duras batalhas verbais com emigrantes americanos...Este pequeno conto é dessa altura, quando os "amaricanos" se julgavam melhores do que nós... Mas acho que a destinatária nem chegou a perceber o que estava aqui em jogo... Eu é que me diverti muito a escrever....
|