Nação Valente
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outono
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« em: Julho 27, 2020, 20:02:54 » |
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Na aldeia onde nasci e onde passei a infância, a vida tinha uma cadência serena. Era um microcosmo com vida própria, capaz de se autossustentar, sem as interdependências que hoje existem. A população dedicava-se, maioritariamente, à produção agrÃcola de subsistência e autossuficiência. A ligação com o mundo exterior era reduzida, também devida aos meios de comunicação. Quando nasci, foi inaugurada a ponte que ligava as duas margens da ribeira na estrada que conduzia ao litoral e ao Alentejo. Ainda me lembro de ser alcatroada por processos muitos rudimentares.
A vida de trabalho pela sobrevivência ocupava a maior parte do tempo dos aldeões. À pobreza chamada de remediada, poucos escapavam. Os ditos ricos seriam hoje simplesmente pobres. Este modo de vida era aceite com naturalidade, e o trabalho como uma virtude. Mas na sua simplicidade as pessoas não prescindiam dos seus tempos lúdicos. A ida à taberna depois de jantar, e aos domingos, para conviver com os seus conterrâneos, para beber um ou mais copos de vinho, jogar às cartas, ou a outros jogos tradicionais, era um escape ao trabalho diário.
Os moços e as mulheres eram um mundo à parte. Estas arrumavam a casa depois do jantar e conviviam na ida ao poço para trazer água, ou na ribeira, nos locais de lavagem da roupa. Os moços pequenos jogavam ao pião, ao berlinde (riol) ás escondidas, à apanhada, e à bola. A permanência na taberna era reservada aos homens adultos. Mas havia um divertimento onde toda a população se juntava. Os bailes, coincidentes com festividades nacionais ou locais, eram o local predilecto de divertimento, para todas as idades. As crianças sozinhas ou acompanhadas de familiares, também estavam presentes. Aà começavam a aprender a dar os primeiros passos de dança, ou a bailar como se dizia. E era o sÃtio onde os moços e as moças, estavam juntos. Até na escola primária havia separação de sexos. O baile para os jovens mais crescidos também servia para encontros que resultavam, ou não, em namoricos.
Quando frequentava a escola, veio do Norte um professor beirão, com um linguajar que trocava os vês pelos bês e os esses pelos xis. Tinha alguma dificuldade em o entender. E a sua noção de moralidade era muito rÃgida. Não nos queria ver a cirandar durante a noite, nomeadamente a frequentar locais de diversão como bailes.
O medo ia para além da sala de aula, de tal modo, que quando o avistava na rua, mudava de direcção. Uma noite atrevi-me a sair com um grupo de outros moços, e a horas um pouco tardias, enquanto subÃamos a rua principal, a fazer as parvoÃces próprias da idade, deparamo-nos com o senhor professor, a descê-la, vindo, só Deus sabe, de alguma farra gastronómica. Não o pudemos evitar: “então isto são horas de andar na rua? Voltem já para casa? Amanhã falamos. Mentalizei-me para as consequências, mas dessa vez, não aconteceu nada. Mas o senhor professor, ainda jovem, integrou-se muito bem naquela comunidade sulista. Frequentava as tabernas, participava em actividades comuns, e festividades. Quando chegou, vivia uma paixão assolapada, por uma sua conterrânea. Todos os dias recebia uma carta dessa namorada que lia, enquanto cumprÃamos as nossas tarefas. Recebeu, até ao dia em que se começou a interessar pelas moças da terra, e se enamorou de uma delas. Um dia, ficou de cama e essa namorada começou a ir à casa onde morava, para o tratar. Logo começaram a lÃnguas viperinas a dizer que lhe prestava tratamento completo. Fosse ou não fosse, o certo é que a noiva beirã, "bye, bye". Num baile, o senhor professor, para nos mandar sair, sem autoritarismo, inventou um processo fora do habitual. Da mesa onde tocava o acordeonista , e entre duas músicas, anunciou que na próxima dança todas as jovens/ adultas iam oferecer uma dança, aos moços pequenos, que a seguir deviam abandonar o baile. Assim se fez, que palavra de professor era sentença. As moças da nossa idade não gostavam de bailar com quem tinha os pés pesados, a não ser aquelas que tinham por nós alguma simpatia. Por isso o meu par era sempre o mesmo. Por sinal uma moça bem gira. Naquela dança especial, fui escolhido por uma prima dez anos mais velha, com as formas femininas já bem desenvolvidas. Para mim foi mais uma dança a levantar o pó do chão com pés de chumbo. Mas para aminha parceira, deve ter sido uma corveia, a puxar-me ao longo do salão de baile, na dança dos moços pequenos. Vieram dias, vieram noites, vieram e foram danças. O senhor professor casou, teve filhos, e partiu para horizontes mais promissores. Eu fiquei a arrastar os pés nos ladrilhos do salão de baile, com quem tinha pachorra para me aturar. Mas o que fica, na memória, dessa poeira, é a minha falta de jeito para a arte da dança, e a dança sem consequências com as jovens casadoiras.
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