TELEMÓVEIS PERDIDOS

Utilizo o telemóvel estritamente para a função para que foi inventado - ligação telefónica sem fios à distância que estivermos dos destinatários. Para mim basta e é excelente. Obviamente não embarco nos emepêstrêsquatroeporaífora. Para músicos bastam-me os meus colegas de profissão. Pessoalmente desde que o meu telemóvel se lembre, quando necessário do número com que pretendo contactar, é o melhor do mundo. E merece o estatuto honroso de amigo. Num empane na estrada, para um recado realmente urgente e importante, dum atrazo, num acidente, para o 112, ( infelizmente... ) e nunca para relatar as pechinchas nas prateleiras do hiper ou mais principescamente para fotografar os seios e demais gostosos atributos da beldade na mesa do lado na esplanada, encoberta por um pseudo-surdo-mudo-inexistente diálogo com o além.
É minha prática habitual abandoná-lo no interior do tablier do carro, resguardado do calor por causa da bateria, umas vezes ligado ao mundo, outras vezes, muitas, coitado, nem moribundo com falta de saldo ou carga. Desligado, apenas. E esta boa prática tem-me proporcionado uma terna e constante crítica proveniente de todos os quadrantes e rectângulos, desde familiares, amigos e colegas: - De facto serve-te de muito o telemóvel, porque não o matas de vez e o atiras ao lixo?-. Nunca, porque nunca seria capaz duma tal barbaridade. Posso asfixiá-lo no tablier do carro mas nunca o atirarei ao lixo. Nunca. Apreciei na história os Espartanos e outros povos exemplares!, continuo a admirar a Sofia Loren mas nunca admiti nem elogiei as mortes dos condenados nas arenas, amigos. Fosse por um leão ou mesmo por um irresponsável macaco.
Há meses atrás dei pela falta dele apenas e somente porque me queria despachar dum indesejável jantar. Não por causa da ementa, que nem conhecia mas pelo acompanhamento demasiadamente indigesto. Tudo rebusquei, no meu gabinete de trabalho, no automóvel, mas sem qualquer êxito. O mail não me resolveria o problema e por tal acabei dando-me por vencido e resignado compareci e padeci aquilo que já adivinhava ter de sofrer. E sofri. Claro que sempre com um sorriso terinado nos tempos em que fui actor amador, subtil, mesmo charmoso, mas traiçoeiro. Cuidado comigo.
Durante cerca de duas semanas nada soube do meu amigo telemóvel, mesmo contando com toda a boa vontade da família, dos mais chegados que ligaram para ele mas sem resultado. Mudo. Absolutamente.
E tomei então a decisão derradeira. Esquecê-lo e comprar outro para o seu lugar.
No dia seguinte, sábado, cumprindo o ritual da lavagem ultra-brilhante e desinfectante do interior do meu carro, através duma fortíssima aspiração para eliminar os milhares de bactérias badalhocas que os cientistas estudaram, descobriram e afirmam com elas partilharmos tal espaço ( só na maneta das velocidades mais de 400... ), pasme-se, quando a meio de tal rigorosa operação, precisamente por debaixo do meu banco de condutor e proprietário do veículo, o curto mas perspicaz cano do aspirador sugou o meu amigo telemóvel, desligado. Que é o mesmo que morto. Com paragem cardíaca no mínimo.
Cancelei imediatamente a ideia da sua substituição e pu-lo a sorrir de novo para a vida. Liguei-o, dei-lhe o pin como todos os dias, tipo biberão das sete da manhã e ele voltou a sorrir.
Comecei então, entusiasmado e percorrer o menu das chamadas não atendidas para colocar as conversas em dia com os meus amigos. Anulei em primeiro lugar as ligações dos melgas, depois dos indesejáveis e fiquei-me com as dos amigos mais longínquos e queridos.
Tinha uma, a do meu amigo Mário, há muito por esse mundo fora.
Liguei, mas ninguém me ouviu do outro lado.
Repeti cinco, seis vezes. Não contabilizei. Recordei então um familiar do Mário cujo número também estava na memória do meu amigo telemóvel e liguei.
O meu amigo Mário desaparecera sem aviso. Ninguém sabia do seu paradeiro.
Corri os restantes números e anulei mais três que ainda mantinha na memória do telemóvel mas que me lembrava já terem desaparecido.
Que nunca mais me ligariam nem voltariam a atender do outro lado.
Esses sim, telemóveis definitivamente perdidos.