Há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroÃna... há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas... há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro de um pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no soalho do quarto da pensão...há uma cidade de visco e de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fundo dum copo...há um sorriso e um engate e um camone e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio... há uma cidade de fome e lixo e enquanto o ciúme escorrega das mãos dos amantes... há um dedo de laminas usadas e um beco sem saÃda onde se enroscou um puto e um cão de febre...há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nocturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina... há uma navalha cortando o betão das avenidas eum pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos...há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho dum bordel e a luz do teu olhar dentro duma janela antiga...há uma cidade que se escapa para fora da noite espia avança e mata...há uma cidade de trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono dos poucos brinquedos...há uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lÃvido que se suicida... há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco com o pânico nos dentes e todo o meu corpo sangra... treme... e tem medo... e morre
Al Berto
Desafio aceite, Elvira.
Antes de mais, comentar algo de Al Berto é terrivelmente difÃcil. Um poeta genial, embora de obra relativamente curta, não consegue evitar deixar a sua prosa despida de poesia e poesia não é de todo a área em que mais me sinto à vontade. Dito isto, vejo neste texto um exemplo claro da prosa poética, a constante repetição de "Há uma cidade" que ritma a leitura e nos remete para a cidade que, aos olhos de Al Berto, não é mais que a própria humanidade, cada vez mais decadente. O que de diferente traz o texto é precisamente a falta de moral com que se fala desta cidade, apenas se relata, não se julga. O que eu anteriormente qualifiquei como 'decadente', para o autor simplesmente é. Ao longo da visão que nos vai descrevendo, o texto vai-se envermelhecendo de sangue, o leitor vai emergindo numa cidade escura, violenta, leviana e real, tão real como a morte, até não suportar mais, nem leitor nem autor, a visão que tem. ClÃmax desta morte, a visão de o único rosto que parece escapar ao ambiente da restante cidade, o 'teu' que desaparece e, com ele, também a visão do autor, em raiva e tristeza, não com a tal decadência subentendida, mas com o fim do que de bom tem a humanidade. Perdão, a cidade.
Aceitam-se outras interpretações,
go on...Cheers