jcbrito
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« em: Março 29, 2008, 14:22:37 » |
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Ninguém é de pau
Versículo 1. o pranto
Do escuro nunca tivera medo, mas de lugares apertados sim. E que apertado era o caixão! Mal dava para se espreguiçar. Mas, também, nunca se vira um morto a espreguiçar-se. Se bem que, às vezes, até dava vontade. Bom, mas o melhor era continuar um pouco mais pela farsa. Pelo menos, até chegar a altura certa. Mas quando seria a altura certa? Essa, de facto, era a questão. Gostava de me apresentar, como mandam as regras da boa educação. Porém, a única coisa que sei é que me devo chamar João. E é porque só ouço gritarem pelo meu nome, repetidamente, num pranto esfusiante. Mas, pensando bem, não é um pranto normal, daqueles prantos que se tem quando alguém querido nos deixa. É mais um choro de alegria, de troça, diria mesmo, se é que posso aplicar esse termo. Bom, mas a verdade é que também não faz muito sentido um morto apresentar-se. Devia tê-lo feito enquanto estava vivo e podia fazê-lo enquanto simulava uma enorme vénia. Agora mal posso mexer-me. Consigo ver umas letras mesmo ao meu lado, na parte em que o pano preto com que alguém forrou este, digamos, caixão, se rasgou. Y…N…O…S…. Sim, é o que diz, seja lá o que isso quer dizer. Percebo, ainda, que o meu féretro, na realidade, não mais é o do que dois ou três caixotes unidos por fita-cola cinzenta, colada de forma até bastante grosseira. Mesmo na morte não tive grande sorte. Saiu-me um armador forreta. Podia ser pior. Paciência. Só não percebo as iniciais. O mais lógico seria o tradicional R.I.P, à boa maneira britânica. Seria uma sigla? Ou um acrónimo? Algum significado deveria ter. Algo como yo no soy, em espanhol, talvez. Não, que disparate. Deve ser outra coisa. Mais tarde, tenho de voltar a pensar nisso. Talvez resida aí a chave do meu mistério. A morte não é um mistério. Bem pelo contrário: é a maior de todas as certezas que se tem em vida, mas o que há do outro lado, isso sim. Ontem, nunca teria pensado que era assim a morte. Outra vez a disparatar, João! Tu não estás morto, lembras-te? Estás apenas a fingir! Tudo isto não passa de uma farsa, ainda há pouco o disseste. Daqui a pouco, quando todos tiverem ido, levanto-me e pronto, acaba aqui a história, que nunca o chegou a ser. Os gritos iam-se tornando paulatinamente mais lancinantes e era perfeitamente notório que cada vez havia mais vozes a unirem-se ao coro. João compreendia, agora, depois de um violento safanão, que o seu túmulo estava a mexer-se. Melhor: que alguém o transportava em ombros (sempre quisera ser transportado em ombros) e quis levantar-se, mais pelo susto do que por convicção, mas um torpor generalizado do corpo impediu-o de consumar o acto. De repente, movido pela curiosidade, lembrou-se de um documentário que tinha visto num canal por cabo sobre a vida depois da morte. Dizia alguém, relatando uma suposta experiência do além, que, alguns segundos após ter morrido, tinha conseguido abandonar o próprio corpo e, como por magia, tinha levitado e visto, do alto, o seu corpo que jazia, inanimado e, à volta, a equipa de cirurgiões que o operava a um qualquer tumor cerebral. Vou tentar fazer o mesmo. Se calhar, consigo. Mas como se fará tal coisa. Uma vez mais, João lamentou não ter visto até ao fim aqueles documentários chatos e ter feito zapping um minuto antes do tempo. Manual de instruções era coisa de que precisava naquele preciso momento. E, se estava mesmo morto, e era, sem dúvida, uma hipótese a considerar, quanto mais não fosse só no plano académico, por que não aparecia a tal luz? Claro, a luz branca, intensa, que só não cegava, porque quem a via já estava morto… Mais vale esperar um pouco. Fechar os olhos, ou melhor, cerrá-los ainda mais e tentar concentrar-me. Já que aqui estou, o melhor é levar as coisas a sério. Porém, mais uma paragem daquilo que, cada vez mais, se assemelhava a um cortejo fúnebre com um novo estrondo, por sinal, ainda mais forte, não ajudava a concentração de ninguém. Tinha mesmo de saber que raio se estava a passar. Tenho de levitar. Tenho de levitar. Tenho de levitar. Bolas, mas que diabo estou eu para aqui a dizer? Levitar… como se isso fosse possível… Estava para desistir quando, de repente, acometido de súbita inspiração, se fez luz e tudo ficou claro! Afinal, os milagres existem, mesmo depois da morte, para desespero dos pessimistas. YNOS não era uma sigla nem, tão pouco, um acrónimo, mas sim uma palavra, numa qualquer língua morta ou em desuso, porque se nos filmes do Indiana Jones ninguém questionava a autenticidade e a legitimidade em inventar novas palavras em velhas línguas mortas (João sentiu-se orgulhoso desta metáfora), por que haveria alguém de duvidar da brilhante decifração de João, cujo nome até tinha algumas semelhanças com o da arca perdida? Claro: era uma palavra primitiva! Não “yo no soy” nem qualquer espanholada sem sentido, mas sim “ynos”, uma só palavra! Ou seja, talvez uma crase do agá, por qualquer erudito fenómeno fonético que havia ditado o descalabro do dito cujo e transformado o i em y, porque assim tinha muito mais pinta! Era “ynos”, ou seja “hinos”! Cada vez mais orgulhoso da sua brilhante dedução, João apenas se atormentava com a nova possibilidade que agora mesmo colocava: será que não era apenas “SONY” ao contrário? Tratava-se de um caixote exactamente igual àqueles que serviam para acondicionar os modernos elecêdês. Esta hipótese, embora com muito menos envolvência e mistério também não era de desconsiderar. Levitação é que nada. Nem um palmo, que era o que bastava para dar uma espreitadela lá para fora e ver o que se passava. (cont.)
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