Dentro de um corpo
Pôr as mãos dentro de um corpo
seria invadir um calor sagrado
Porque um corpo
é como um astro implÃcito,
frágil, cuja órbita intersecta a pureza,
descaindo de sombra em sombra
até à memória tangÃvel
em que aparece
Um corpo desenhado a giz,
arrancado ao ar, agora táctil, vivo,
furtando-se ao precipÃcio frio
que ameaça os flancos do espaço,
dançando nas muralhas da noite
Corpo que não se deve possuir,
mas escutar, escutar
Deve haver música no interior de um corpo
- Vasco Gato, Imo
Queria, nesta análise, romper com a tradição de intitular as crÃticas com o nome dos livros de onde originam. Apetecia-me chamar a esta pequena resenha algo como “Tão Ãntimo como o esqueletoâ€, “A profundidade corporal de um Gato†ou “Pureza carnalâ€. Não o farei agora, não desta vez, porque Vasco Gato conseguiu captar numa palavra apenas tudo aquilo que eu diria com muitas mais - sou um ser palavroso, é um defeito meu.
Imo, do
Grande Dicionário da LÃngua Portuguesa (2002), “adj. [q]ue está no lugar mais fundo ou profundo. || S. m. O âmago; o Ãntimo†é a palavra perfeita para este livro. Consequentemente para esta recensão também. Vasco Gato explora o profundo do ser humano, não da tradicional visão romântica (bem, na verdade um pouco também) mas de um ponto de vista quase anatómico. É a dissecação do corpo como maneira de chegar não só ao interior do homem, “dura um homem que diz baixinho / assim quase para fora // A ferida por baixo da cicatriz / - quem cura?†(pág. 29), como das coisas, “E há sempre vozes no interior das paredes, / subindo das fundações, / inchando toda a casa†(pág. 20), como até do próprio poema, “Levas a agulha à pele virgem e escreves / - inicias o segredo†(pág. 33).
Algo que surpreende pela positiva na poesia de Vasco Gato é o bom domÃnio da riqueza lexical da lÃngua portuguesa. Atente-se logo no tÃtulo, imo, representativo do tipo de lexemas que podem ser encontrados. Os dois maiores defeitos normalmente apontados aos autores jovens, Gato nasceu em 1978, são evitados. Diz-se da nova poesia que ou é pobre em diversidade lexical, ou é barroca, arcaica, em tudo o que de pejorativo estes termos podem conter. Em
Imo encontramos um suave equilÃbrio entre o brio de um jogo semântico que usufrui de um vasto património lexical e a simplicidade de um discurso claro, tanto quanto um discurso poético pode ser.
O que incomoda neste
Imo é que Vasco Gato não se coibiu de ir também ao imo do comum dos assuntos lÃricos, não que o amor tenha algo de comum. Não será fácil, obviamente, falar de Ãntimo sem se falar do mais Ãntimo dos sentimentos, ninguém poderá dizer o contrário. O que acontece é que Gato parecia ir nesse caminho até certo ponto no livro, até que decide tomar o atalho mais usado do que a estrada. Talvez não seja correcto criticar Vasco Gato por escolher esse atalho, como autor ele tem todo o direito de escolher os atalhos que quiser, mas enquanto leitor crÃtico reservo também o direito de lhe recusar o prémio de bravura. E recuso. Os poemas de amor, embora em número relativamente reduzido, dão um travo de adolescência a este livro que de outra maneira poderia ser algo mais. Gato não se conseguiu livrar do estigma que é tantas vezes colado imediatamente aos novos autores, o de uma poesia adolescente, inconsequente, até aborrecida. Toda a gente sabe que no mundo das pessoas crescidas não há amor, isso é coisa de
teenager.
Vasco Gato é, sem qualquer dúvida, um autor a ter em conta. E as boas notÃcias são para os leitores, porque apesar de toda a sua qualidade, há ainda espaço para crescer. Sabe-se lá se este gato não chega a leão*.
*Mil desculpas pela chalaça previsÃvel e foleira - resisti durante todo o texto, não aguentei mais.Originalmente aqui.