Eu estava farto da guerra, Sofia, farto da obstinada maldade da guerra e de escutar, na cama, os protestos dos camaradas assassinados que me perseguiam no meu sono, pedindo-me que os não deixasse apodrecer emparedados nos seus caixões de chumbo, inquietantes e frios como os perfis das oliveiras, farto de ser larva entre larvas na câmara ardente da messe que o motor da electricidade aclarava nas vacilações hesitantes de desmaio, farto do jogo das damas dos capitães idosos e das melancólicas piadas dos alferes, farto de trabalhar, noite após noite, na enfermaria, molhado até aos cotovelos do sangue viscoso e quente dos feridos.
- António Lobo Antunes, Os Cus de Judas
Mais uma obra de Lobo Antunes, mais um grito de desespero, de dor, violenta dor, que o autor lança ferozmente nas páginas de uma das suas mais famosas criações,
Os Cus de Judas. O génio do eterno candidato ao Nobel português faz-se sentir aqui de uma forma bem mais óbvia do que na sua estreia. Em
Memória de Elefante encontrávamos isso mesmo, um Lobo Antunes que escrevia memórias da memória, que procurava apagar bocados grandes daquilo que, a princÃpio, não queria revelar aos leitores mas que acabaram por explodir, tal como as granadas que decepavam os seus camaradas em Angola, nas páginas deste livro, tido por muitos como um dos mais significativos da carreira do mestre lusitano.
Mas antes de mais, vamos à história. Há um narrador, desta vez e ao contrário do que acontecia em
Memória de Elefante a voz narrativa é clara, presente, no Portugal do pós 25 de Abril que num bar encontra uma mulher com quem decide partilhar a solidão de uma noite. Mais do que isso, decide partilhar os mais intÃmos destroços daquilo que são agora as suas memórias, agarradas pelo mesmo arame farpado que cercava o campo português nos vários lugarejos angolanos, nos vários
Os Cus de Judas onde o médico esteve destacado. Ao longo do livro, invariavelmente, no inÃcio de cada capÃtulo o narrador interpela a sua companheira de noite com comentários mundanos, pode por exemplo falar acerca das pedras de
whiskey no copo, comentar como ambos envelhecem, mas acaba sempre por voltar a sua atenção para os tempos de Ãfrica que o estilhaçaram interiormente. Temos, portanto, por um lado o relato de duas pessoas sozinhas que passam a noite juntas desde o momento em que se conhecem no bar até à manhã em que uma delas se veste envergonhada para trabalhar, e, também, o relato que nunca se sabe muito bem até que ponto é exteriorizado pelo narrador sobre os locais por onde passou os seus vinte e sete meses de serviço militar.
E brutal não é suficiente para descrever o relato. Cada palavra com que Lobo Antunes se refere a Ãfrica é como um punho bem cheio de areia do solo africano que nos é lançado aos olhos. Pior do que isso, é um punho cheio de areia da década de 60, lançada por um braço tatuado a caneta
bic "Angola 67", um braço de raiva, de dor, de negro. Talvez por isso toda a narrativa se passe ao longo da noite e termine ao amanhecer. Para o narrador, aquilo que para si ou para a sua companheira vai contando é o perÃodo mais negro da sua vida. Quando amanhece na cidade, amanhece também nele uma resignação, um esquecimento daquilo que foi e nunca mais será antes de ter embarcado naquele navio para o continente africano.
As descrições dos camaradas que chegam feridos às tendas de campanha não precisam de ser detalhadas para nos contorcermos com dor; Lobo Antunes confia na força das palavras simples para fazer esse trabalho. Talvez porque mais do que palavras estão escritas neste livro, memórias, memórias verdadeiras, cicatrizes que nunca vão sarar, que nunca vão parar de doer nos dias mais frios dos Invernos mais frios e nos dias mais quentes, quando a serena tarde portuguesa faz lembrar o entardecer africano. Assim acaba por deixar o trabalho pesado para as palavras simples que iam sendo repetidas à sua volta, os "caralho, caralho, caralho" do enfermeiro ao ver o soldado que se suicidou, como já tinha sido referido em
Memória de Elefante, numa das incursões pela guerra do narrador.
Parece existir uma certa curva descritiva do estado de sanidade mental do narrador em função dos meses que passou em Angola - enquanto que nos primeiros o clima mais perceptÃvel era o da ansiedade natural de quem sabe que está a lutar por coisas que não acredita, ao longo do relato vai-se confundindo com uma loucura ensurdecedora com o ponto mais alto dessa mesma loucura algures no capÃtulo N (isso mesmo, os capÃtulos estão numerados com letras) e que depois se vai dissipando numa acomodação destroçada no final do serviço cumprido. No final ficou a sombra do homem que saiu de Portugal.
"Estás mais magro" dizem-lhe as tias. A guerra não fez dele um homem, não faz de ninguém nada a não ser munição. E tal como munição, sobram as carcaças da pólvora no chão sujo. Este é o autor de
Os Cus de Judas, munição gasta que vagueia por Lisboa, de bar em bar, à procura de voltar a sentir-se preenchido.
Escrito originalmente aqui.