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Autor Tópico: Rendez-Vous (18)  (Lida 1390 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Dezembro 02, 2009, 17:16:29 »

18. “O recrutamento de Moonchildâ€

Moonchild gostava de pensar que era o último galho de uma árvore genealógica profundamente encravada na História, cujas raízes escavavam o tempo para irem buscar os seus nutrientes à Revolução Francesa. Para ele, a Revolução prosseguia. Sentia que a necessidade para se desenvolver uma Humanidade digna de uma sociedade revolucionária permanecia ainda por satisfazer. Os Projectos Novo Paraíso vinham no seguimento dessa ideologia, onde os intelectos mais brilhantes da Expansão cerebral se reuniam para delinear um plano para conquistar o futuro. O verdadeiro futuro, aquele que estava ainda por vir. Mesmo que cabeças tivessem de rolar. Mesmo que a primeira tivesse sido a sua, quando os liberais de Domus Regia começaram a espiolhar as actividades dos Projectos Novo Paraíso.

Da clandestinidade dos Projectos Novo Paraíso para o mais completo anonimato. Uma mudança de ritmo que não lhe agradava, como também não lhe agradava não lhe terem sido apresentadas outras opções. Uma forma inventiva que a Schola Belicus encontrou para deixar cair no esquecimento a existência de muitos dos Projectos Novo Paraíso foi negar a existência dos cientistas por detrás deles. Cientistas que se movimentavam nas sombras, dum lado para o outro, tornando a ciência mais estranha, mais volátil, sem que ninguém desse conta do que faziam ou deixavam de fazer. Moonchild recebeu um crédito bancário infinito, uma mensagem vinda de cima a dizer-lhe que nunca mais o queriam ver, e uma passagem só de ida para uma das colónias mais distantes nos Anéis Exteriores onde o pó governava supremo em eternos torvelinhos e até era usado como condimento, à falta de tudo o resto.

Os anos passaram por ele, uns atrás dos outros, o exílio a perder o apelo inicial desde o primeiro dia em que chegara a Meridiana, a colónia convenientemente longe de tudo, cuja única actividade económica consistia em separar os grãos de areia fina dos grãos reluzentes de merídio, um minério pelo qual o Corpo Espacial combatera os esporos da maquinaria selvagem que ocupara aquela bola de pó durante dois mil anos até ao dia em que sondas da Companhia descobriram o filão, e salivaram. O merídio era usado para construir motores de 4Espaço de última geração, mas também servia perfeitamente para dar cabo dos pulmões e das vozes de rouxinol de quem vivia enterrado nele até aos olhos, raiados de sangue. Meridiana não era o paraíso que um cientista louco com um resto de vida à conta pela frente desejaria, mas era o que se podia arranjar. Por sorte, Moonchild tinha aprendido nos Projectos Novo Paraíso a regenerar os seus tecidos com o poder da mente. Tinha também eliminado todos os imperativos fisiológicos relacionados com o sono, e deixado de envelhecer quase por completo. Seria um longo degredo.

Não existiam grandes cidades em Meridiana. As colónias eram razoavelmente recentes. Pequenos cogumelos com menos de cem anos, semi-enterrados numa paisagem habitual de fesh-fesh, dunas sensuais e ondulantes, como mulheres adormecidas. Local ideal para se passar uma vida despercebida, mas com poucas distracções. Moonchild aninhou-se na existência que tinha sido escolhida para si, passando os anos a imaginar-se como uma perigosa serpente imóvel sobre um tapete cheio de padrões coloridos. Se a serpente se movesse cuidadosamente, e se imobilizasse nos momentos certos, a olho nu pareceria que não existia nenhuma serpente, apenas o tapete de padrões coloridos. A vida era apenas um padrão garrido, e Moonchild era uma graciosa criatura cheia de veneno que se ocultava nos lapsos da memória humana, e esperava pacientemente pela altura certa de se voltar a mexer. Um dia.

Nesse dia, Moonchild tinha esperado que o sol fizesse a sua aparição acima do horizonte de dunas como um círculo vermelho encoberto pela areia em suspensão. As noites estavam a ficar mais demoradas e o arquivo do OMNIspectrum mais rarefeito de coisas que valessem a pena assimilar. Quando o sol iluminou as fileiras de igloos que se podiam ver pela janela, Moonchild levantou-se da cadeira e desligou a parafernália de interface com uma ordem mental distraída. Ele tinha uma cama, mas apenas a utilizava para os encontros sexuais partilhados com outras eventuais vítimas da solidão. Mais para manter uma aura de normalidade à sua volta do que para preencher uma necessidade afectiva ou instintiva. Já lhe era difícil satisfazer a curiosidade dos pioneiros quanto ao facto dele ser capaz de articular três palavras seguidas sem tossir ou sentir a urgência de aclarar a garganta.

A colónia parecia acordar tarde. Como alguém sem objectivos imediatos, ou grande razão para lutar por eles. O café de sempre ficava a três quarteirões de distância. O caminho até lá exigia que se usasse um aparelho de projecção de aura que mantivesse a areia longe da roupa, dos olhos e dos cabelos louros que Moonchild fazia questão trazer sempre resplandecentes. Àquela hora, os mineiros já tinham tomado o pequeno-almoço e seguido para o trabalho em lagartas de transporte, arrastando atrás de si os seus sonhos desfeitos e os enfisemas que os tornariam dependentes da medicina do Concelho Científico até ao fim das suas vidas. Ou seja, o café estava vazio quando entrou.

Sentou-se junto de uma das janelas encardidas, pediu um pão de fruta e um jarro de shinzu sem o mínimo de delicadeza à rapariga morena e triste que passava os dias a tentar perceber como a sua vida fora parar ali. O insucesso escolar era a resposta óbvia, mas a rapariga era burra demais para o perceber. Toda a sua capacidade intelectual havia sido exaurida, ainda miúda, num derradeiro e heróico esforço de tentar passar a um teste de matemática de nível quatro, quando ela ainda sonhava em ser piloto aeroespacial da Schola Belicus. Uma nota final de 0.9 obrigara-a a uma aterragem de emergência, e ela comia pó desde então.

«Este copo de shinzu sabe a urina» disse Moonchild, olhando com desgosto para o líquido que se queria cristalino. «Mais ainda do que é habitual.»

«O meu gato anda mal da bexiga» respondeu a rapariga, não devia ter mais de vinte e cinco anos. «Mais do que é habitual, pobre Menino.» Estava sentada ao balcão, a mão apoiada no queixo, a olhar para o chão. Levantou os olhos vermelhos para a sua cliente mais antiga. «Se o amigo não gosta, está à vontade. Pode ir exibir o seu aspecto saudável para outro sítio. Agradecemos. Todos nós nos sentimos deprimidos ao pé de si. Nem sequer transpira…!»

«Porque devia transpirar, criatura?» Perguntou Moonchild, fazendo uma cara feia ao dar mais um gole. Olhou para a outra, genuinamente intrigada. «Faz calor em Meridiana? Sinceramente, já não consigo dizer…»

Uma súbita boca cheia de areia entrou pela porta do estabelecimento quando alguém a abriu. Uma mulher de aspecto jovem, alta e de cabelos negros, trazendo uma túnica em preto e sem ombros debaixo da capa anti-partículas. Deixou-se ficar enquadrada pelo caixilho da porta, observando a sala.

«Feche a porta!» Pediu a rapariga, tentando proteger-se do pó de areia que entrava trazido pelo vento.

A mulher obedeceu sem dizer palavra, e deu os passos necessários para se acercar da mesa da única cliente da rapariga que, ao balcão, revolvia o cabelo com os dedos, tentando em vão livrar-se dos grãos de areia branca. A recém-chegada e a cientista olharam-se por momentos, ambas sabendo que nenhuma delas pertencia àquele sítio.

«Doutor Moonchild» disse a mulher dos cabelos pretos, num sotaque que o Doutor reconheceu como sendo de algures nos Anéis Exteriores, talvez Athen.

«Isso não me pareceu uma pergunta» respondeu Moonchild, alerta, mas fingindo-se despreocupado na forma como derramava mais um pouco da shinzu com sabor a urina do Menino no seu copo.

«Não foi» confirmou a mulher, sentando-se de frente para Moonchild, sem ter sido convidada. Era uma beleza de cabelos negros a quem a areia ainda não fizera descascar a maquilhagem. «O meu nome é Sulandra.»

«Acho que é prematuro da sua parte dizer-me o seu nome» retorquiu Moonchild. «Não me estou a ver beber um copo consigo. Não faço amizades assim tão depressa.»

«Tenho amigos de sobra» garantiu Sulandra. «Faltam-me, isso sim, cientistas. Especialmente com o seu valor.»

«Hss hss hss…»

«A sua ciência continua a fascinar os principais intelectos nosso século, Doutor Moonchild. As suas ideias sãos as únicas capazes de decifrar os mistérios que a nossa Expansão enfrenta à medida que nos aproximamos da concretização da nossa promessa como espécie suprema e nos preparamos para aceitar a responsabilidade de proteger o Universo dos constantes ataques do tempo.»

«Palavras e palavras e mais palavras…» desvalorizou Moonchild, olhando para a mulher da voz forte e dos ombros largos.»

«Não, Doutor. Não apenas palavras. Isto é uma convocatória. As pessoas com quem eu trabalho gostariam de o ver devolvido à posição de ponta-de-lança na ciência do Amanhã.»

«Vá-se embora, menina. Antes não tivesse vindo lá de onde veio escarafunchar este monte de areia.» Moonchild estava a falar a sério.

«Queremos oferecer-lhe de volta o seu antigo emprego.»

«Eu já tenho um emprego» informou Moonchild, com um sorriso mais amargo que a shinzu que bebia. «Pagam-me para ser um fantasma. Pagam-me muito bem.»

«Nós pagamos muito melhor» prometeu Sulandra. «Com a vantagem de ter onde gastá-lo e poder gozá-lo. A não ser que o Doutor ainda não se tenha aborrecido com a sua colecção de raros grãos de pó ou pelos ocasos de um sol vermelho eternamente ofuscado pelas tempestades de areia.»

Moonchild olhou para a empregada.

«Traga à minha amiga um copo de shinzu» disse ele. «Do mesmo jarro.»

« Última modificação: Dezembro 16, 2009, 13:17:40 por NunoMiguelLopes » Registado
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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