Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes do que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
- José Saramago, Memorial do convento
Como classificar o (provavelmente) mais famoso trabalho de José Saramago? O que dizer acerca de um livro que todos, pelo menos, ouvimos falar? O que referir mais quando todas as personagens foram analisadas, todos os cenários foram caracterizados, todas as metáforas elogiadas, todos os parágrafos comentados? Não posso fazer mais do que oferecer a minha limitada visão acerca da obra, verdadeira obra, que seguro neste momento nas mãos.
O
Memorial do convento trata de muito mais do que simplesmente da construção do convento de Mafra, ao contrário do que as sinopses mais simplistas referem, redigidas claramente por quem nunca leu o livro, ou lendo nunca se deu ao trabalho de o apreciar. Nele encontramos, pelo menos, três pontas diferentes, das quais a construção do convento não é de todo a mais significativa, apesar de dar o tÃtulo à obra. A relação de Baltazar e Blimunda, a construção da Passarola são temas tão ou mais centrais do que o convento de Mafra. No entanto, se um é o amor entre homem e mulher do povo, outro nasce da ideia de um simples padre, o convento que nasce do capricho de um Rei é mais imponente para tÃtulo. Talvez já aqui Saramago nos esteja a dar uma pista para a permanente crÃtica social que se encontra ao longo do livro.
Quem nunca se deparou com um romance de Saramago, certamente terá algumas, muitas, dificuldades no princÃpio da leitura. Frases que ocupam páginas inteiras, parágrafos que são capÃtulos, vozes misturadas e apenas dois sinais de pontuação usados - a vÃrgula e o ponto final - são difÃceis para o mais atento dos leitores. Nos diálogos, escritos na mesma frases, a troca de vozes é feita pela capitalização da primeira letra da nova voz. Pode parecer difÃcil, e é, mas este não seria o mesmo livro se fosse escrito de outra forma. É a tal voz que se senta na nossa mente, como anteriormente escrevi acerca de Todos os nomes, aperfeiçoada e levada ao extremo, contando-nos um entrelaçado de histórias, com um cenário histórico.
O
Memorial do convento centra-se no reinado de D. João V e no seu desejo de ter um filho herdeiro do trono. Como promessa, edifica em Mafra um convento franciscano. Há, no reino, um padre, Bartolomeu de Gusmão, que tem o sonho de voar. Há um soldado maneta, que perdeu a mão esquerda na guerra e uma jovem mulher com um estranho poder de visão e cuja mãe é enviada em auto-de-fé para Ãfrica. Estes são os principais personagens de um romance que apenas de uma maneira reduzida podemos considerar como histórico.
Baltazar conhece Blimunda durante o auto-de-fé da sua mãe. Era já conhecido do padre Bartolomeu de Gusmão que os convida, a ambos, para o ajudarem a trabalhar na sua invenção secreta, a Passarola, onde se veio a revelar imprescindÃvel o estranho poder de Blimunda. O sonho do padre é concretizado e os três voam, mas vêem-se perseguidos pela Inquisição e forçados a esconder a invenção perto de Mafra, de onde Baltazar é originário. Nesta altura os trabalhos de construção do convento estão a começar e trabalho não falta na localidade, Baltazar e Blimunda ficam a viver com a irmã de Baltazar, o seu cunhado e sobrinho na velha casa dos pais do soldado enquanto o padre Bartolomeu foge dos seus irmãos na fé que o perseguem por heresia.
Gostava de ser capaz de enumerar todos os pormenores deliciosos de que o
Memorial do convento está recheado. Mas são tantos, e por vezes tão caricatos, que apenas uma leitura atenta da obra pode fazer justiça à sua qualidade. Temos preciosidades como “Quem vai à guerra empadas levaâ€, a propósito de uma manifestação de freiras no Terreiro do Paço, a fantástica descrição da fertilidade do Rei, que apesar de parecer incapaz de fecundar a rainha foi capaz de espalhar a real semente por inúmeras freiras que visitava com regularidade fazendo um número sem fim de bastardos reais. Temos a deliciosa descrição das relações sexuais que Rei e Rainha mantinham duas vezes por semana, com protocolo próprio, quase cómico se não se aproximasse tanto da verdade daqueles dias. Enfim, um sem número de verdadeiros pedaços de génio de que apenas um grande contador de histórias é capaz.
A voz narrativa ao longo deste livro é, no mÃnimo, peculiar. É omnisciente e omnipresente, é quase uma voz conscienciosa capaz de traçar juÃzos de valor acerca das acções de cada personagem, capaz de saltar no tempo para referir que passados muitos anos o gosto português pela cor verde vai-se acentuar numa república, é capaz de divertir com uma constante ironia dos costumes reais e das tradições do paço. É, verdadeiramente, a voz de Saramago.
Encontramos uma tremenda crÃtica ao poder. O poder absoluto que vai contra a vontade da população, que mata gente debaixo de pedras, aos milhares, para cumprir um capricho real, um poder que amarra homens e os tira das suas casas para serem practicamente escravos de uma obra que, se apenas da vontade do Rei dependesse, seria tão grande como a BasÃlica de S. Pedro em Roma. E mesmo neste Portugal do séc. XVII (ou será do séc. XX?) encontramos em duas pessoas, homem e mulher invulgares, um amor que não precisa da palavra amor para assim se definir. Baltazar e Blimunda são um poema em forma de história, talvez um dos mais belos poemas de amor que alguém alguma vez escreveu.
A realidade da história de Portugal, misturada com a irrealidade destes dois seres torna o
Memorial do convento num livro único dentro do seu género. A nossa atenção é desviada dos acontecimentos para a relação que, apesar de parecer ter um papel secundário na história, tem o papel principal da nossa leitura.
Para além disso, há preciosidades linguÃsticas que mostram o porquê deste ser o único Nobel da literatura português: Saramago domina a lÃngua de Camões como poucos, sem preciosismos desnecessários. A sua escrita não é formal, não está carregada de pretencionismo, está sim carregada de recursos estilÃsticos que parecem tão naturais, por se aproximarem tanto da oralidade, que nos fazem pensar duas vezes se realmente existem ou não.
Escrito originalmente aqui.