Maria Gabriela de Sá
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« em: Dezembro 07, 2013, 19:09:12 » |
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O dia amanhecera dourado na planÃcie.
O verão crescia a olhos vistos e, nos pastos, o verde teimava em ficar mais uns tempos, antes que o sol ressequÃsse também o vale, onde o rio se assemelhava agora a um regato preguiçoso e indolente.
Ao lado do moinho velho e abandonado, erguia-se aquele casarão cinzento, debruçado sobre as águas infectas pelo lodo malcheiroso que substituiu a brancura da farinha derramada em tempos pela pequena azenha. O lugar era o mesmo. As árvores haviam crescido e as pedras do rio estavam mais gastas pela força da corrente. O ditado "água mole em pedra dura tanto dá até que fura" adquiria aqui todo o seu sentido.
Só o aroma mudara. O perfume das madressilvas dera lugar a um cheiro nauseabundo e pestilento que inundava o ar a quilómetros de distância.
Diziam uns:
− Foi o progresso que conduziu a este estado de coisas e a estrada, aberta até ao vale, a grande culpada. Para outros fora a energia eléctrica, cujos postes passavam ao lado, que tinha dado o golpe de misericórdia na beleza e tranquilidade daquele sÃtio paradisÃaco e sem outra coisa agora que não fossem as memórias de quem ainda o pudesse recordar belo como outrora fora.
De qualquer modo, fosse como fosse, o mal estava feito e nada havia a fazer.
Sentado na sua camioneta de carga, o homem dirigia-se devagar para o rio, cumprindo mais uma rotina. No banco, ao lado, estava descuidado um molho de chaves, à espera que alguém as metesse na altura própria e na fechadura devida. Uma chave tem sempre verso e o anverso, conforme o querer de quem a usa.
Ainda longe, orelha à escuta, o silêncio ouvia-se com acuidade e, no chão barrento, eram visÃveis marcas recentes do rodado de um veÃculo pesado, que tivera necessidade de usar os pneus duplos traseiros para transportar sobre a lama algum peso.
Mal constatou os vestÃgios no chão, do homem apoderavam-se as mais tenebrosas sensações e, mesmo sem se inteirar em concreto da situação, vislumbrou o que se tinha passado, quando o vale, agora silencioso, se tinha debatido com uma invasão nocturna, que alterara por completo a vida no lugarejo.
Sentia, como se a ela tivesse assistido, a enorme gritaria daquelas criaturas, aquando da tormenta de que o seu abandono as tornara vÃtimas, enquanto a alma dele ia sendo invadida por um violento sentimento de remorso, sem saber muito bem se tal sentimento tinha ou não razão de existir. No dia anterior deixara-as tranquilas, no negrume da noite e à mercê dos predadores da planÃcie. Todavia, no seu prato, escorregava, dourada, aquela febra em vinho de alhos da hora do jantar, que lhe reconfortava o estômago e lhe mergulhava o cérebro num sono moribundo, fazendo-o agora lamentar-se por não ter sido mais premonitório. Ao ponto de mudar o futuro dessa mesma noite...
− Como é que pude ser tão negligente? – perguntava-se. Os pensamentos iam-lhe aflorando à mente e os remorsos ficavam mais violentos. Além disso, era-lhe também difÃcil suportar a ideia de que aqueles seres tivessem sido sequestrados pelos brutos algozes, enquanto ele, prazerosamente, resfolegava nos lençóis brancos da cama lavada, tão diferentes do lodo existente no rio, onde desaguavam os restos de tudo e de nada que las animais saÃam por todos os buracos do corpo, como acontece com todo os seres vivos.
De chaves na mão, o homem pegou na que se ajustava à fechadura do portão e abriu-o.
Lá dentro, o vazio era absoluto e, o que na véspera era uma orquestra de rec-rec, estava agora transformado no mais aviltante silêncio, sem nada nem ninguém que lhe desse as boas-vindas, ainda que a sinfonia de vozes lá existentes sempre tivesse sido pouco harmoniosa.
Do peito do homem saiu um dilacerante gemido e à sua boca acudiram palavras de lamento:
− Roubaram-me os porcos! Roubaram-me os porcos!
O grito ecoou pelo vale, como se de um rastilho de pólvora, seca e espontânea, se tratasse, deixando, contudo, no ar uma sensação de júbilo.
Muito embora todos tivessem assistido à cena, as árvores, o rio, os pássaros e até a velha azenha, onde outrora o moinho gemera o pão de muitos homens, ninguém se atreveu a acusar o ladrão do camião que, durante a noite, tinha levado do vale aqueles porquitos, vizinhos fedorentos, mas, apesar disso, tremendamente inocentes.
− Roubaram-lhe os porcos! Ah! Ah! Ah! − Gargalhavam todos, repletos de contentamento, agradecendo a Deus por, finalmente, se verem livres da maldita pocilga que tão má fama tinha dado ao ambiente nos últimos tempos.
O dia do furto ficou célebre e, sem saberem que de certa forma estavam a cometer plágio, chamaram-lhe o dia do triunfo dos porcos .
A festa instalou-se.
Estendeu-se, rio abaixo, rio acima, numa procissão de vai e vem sem fim. Tanto que os seus ecos chegaram a terras de sua majestade a Rainha de Inglaterra, onde George Orwell, lá do túmulo da sua imortalidade literária e precurssioniosta, ria, ria, ria a bandeiras despregadas…
PS - Este conto terá, seguramente, 20 anos...
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