marcopintoc
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« em: Maio 15, 2008, 15:38:28 » |
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O olhar cabisbaixo envolto em profundas olheiras do homem de meia-idade, primeiras curvaturas de derrota a formarem-se nas costas , roupa de pouca qualidade e calçado desconfortável. O olhar denota uma certa intranquilidade quando os dedos não alcançam, ao primeiro rebuscar, o ansiolÃtico aninhado num canto mais recôndito do bolso. Um gesto seco, sem ajuda lÃquida, ingere as primeiras miligramas de uma tranquilidade que há muito não conhece de outra forma. Parado mira o sinal vermelho para os peões, as figuras alinhadas no passeio oposto; uma largada de maratona para a pasmaceira. O frio da manhã de Lisboa aprofunda ainda mais o desconforto que, pela persistência com que percorre o seu corpo tão debilitado pelas inúmeras noites em claro, não pode ser destrinçado de interior ou exterior. O homem triste procura uma face bonita e não a encontra. Do outro lado da estrada todos os rostos lhe parecem marcados de preocupação , resignação . Todos com muita pressa. O verde do sinal lança as multidões agasalhadas em choque frontal. Sobretudos cinzentos, vestuário desportivo , sapatos sujos das eternas obras do Metro encetam o “slalom†da profilaxia do contacto humano. Do outro lado da avenida engarrafada a boca do Metro cospe mais dezenas de homens e mulheres. Sentindo já os primeiros efeitos do tranquilizante entrega-se ao esmagamento colectivo sem grande agitação; há um profundo desprendimento nos olhos feios e gastos que focam o azul claro fora de moda de um blusão barato. São assim as suas manhãs. Todos os dias, há anos. Depois de ter estado doente. Estava melhor na vida mas um dia desatou a chorar no meio de uma operação de aquisição hostil e a sua carreira promissora no mundo da finança foi terminada. Assim. «Não aguenta a pressão». Volvidos uns curtos minutos, onde a presença de transpiração na atmosfera aumentou exponencialmente, o ex-corretor percorre, no mesmo desanimado passo lento ,o cimento do patamar e o metal sujo da escada rolante. Denota, com agrado, que agora não são visÃveis quaisquer beatas no pavimento. Dezasseis degraus de retorno a superfÃcie trazem a luz do sol a nascer entre as torres de escritórios e um brilho insuportável à retina. A mão esquerda protege, em pala, os olhos; a direita rebusca de novo o bolso em busca de mais calma processada quimicamente. Todos os dias, há muitos anos aquela visão o atormenta. Ao fundo, espelhada e cintilante a sede. Onze andares de eficiência injectam, em ascensores optimizados para a produtividade, uma multidão apressada. O rodar do pulso notifica que faltam quatro minutos para o acesso requerido ao “ tag†electrónico que balouça, pendurado na correia de cores corporativas, contra o seu peito. Na tristonha secção sem importância para o sucesso da instituição financeira onde trabalha o conjunto de cartão e fita é conhecido como o “badaloâ€. Algumas memórias do que era ter razão para ir trabalhar apressam-lhe imprudentemente o passo perante a mudança de cor do semáforo. Talvez o esgazear fixo na imponente fachada que o chama não se tenha apercebido da sombra rápida à sua direita.
O ruÃdo da travagem do autocarro foi um guincho demasiado tardio. Um som de osso a partir e vidro a estourar antecedeu o voo desconjuntado do homem já sem vida. Os serviços de urgência foram até bastante lestos a resolver a situação. Passadas algumas horas o corrupio da cidade já espezinhava os restos de sangue no asfalto. Na morgue o funcionário que processou o cadáver pausou, uns segundos, o gesto do lençol perante a visão daquele rosto defunto que não apresentava vestÃgios de dor ou medo de derradeiro instante. Impávido e sereno, alheio. «Este tipo não percebeu do que morreu». A brusquidão do acto em cobrir aquela expressão de alienação foi apenas mais um dos milhares de gestos que naquele momento aconteciam na cidade; o cadáver ficou esquecido e alinhado na fileira de macas. Entretanto a alma do atropelado deambulava, entre os outros finados do dia ,numa ordenada fila em direcção à s portas do céu.
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