Era Outono serrado em Saeglo. As chuvas intricavam as folhas esparramadas pela superfície. Saeglo era uma aldeia enorme, que servia de fortaleza contra os povos índigo que lançaram uma maldição sobre a Terra outrora, deixando cada recanto na Luz e ao mesmo tempo nas Trevas. Em tempos remotos nasciam ali cavaleiros, em partida escoltados para proteger aquele território montanhoso dos combalidos Indigo, depois acabou por nascer uma organização que interagia activamente, reiteradamente, com vista a facultar o crescimento dos jovens, fortalecendo-os até que a armadura já não lhes pesasse.
Saeglo era visitada periodicamente por camponeses que procuravam alguém perdido naquela orla desnivelada. A primeira ideia que as visitas tinham era de uma faixa translúcida de luz cerrada sobre o pasto seco de que os animais de Saeglo se alimentavam durante o dia. A segunda era algo magnificamente abstracto, deleitada pelas lendas que ouviram acerca daquele local desde a sua infância. Desde cabras que em tempo de guerra se transformavam em criaturas carnívoras e devoravam as almas moribundas, neutras ou más, a vacas que mastigavam qualquer ser que vegetasse. Obviamente que cada conhecedor de tal profanação achava uma tremenda injustiça para um local histórico que aspirava a protector da humanidade. No entanto, olvidavam que as intenções desses seres não era defender o bem. Enquanto isso, havia sempre um dos visitantes que observava mais de perto os animais aparentemente normais e pensava que a sua intenção era simplesmente acabar com a vegetação deste mundo, seca ou viva, desde que vegetasse era um bom motivo para a furarem com as dentuças.
Um velho aldeão era um dos propósitos de quem engrenava por aquelas bandas. No meio dos prados e distante da neve característica de tais altitudes. Embora para quem não soubesse de uma justificação para a ausência de neve fosse dito que o sangue nobre de tais guardiões impedia desde há séculos que a neve se instalasse num raio de regiões relativamente a Saeglo.
Sim, aquele ponto do mapa era Mágico.
Em redor, nesses prados os camponeses de enxada provavam a terra, num acto magnífico de criação — o seu suor era o cultivo, as sementes, a fertilização, o amor.
A única história de mérito satisfatório como cerveja que transborda da taça era o caso de um mensageiro que inscrevera a mensagem num cinto e a perdera pelo caminho quando derreara a calça. Dera-se postumamente o fim de uma civilização por tal calamidade do cinto e tal alívio do mensageiro.
Além do que foi descrito sobrava alguns pedintes que ficavam pelas cabanas que estremeciam de noite, as tabernas de madeira. Muitos pensariam que se trataria do velho Oeste. Ainda que estivessem errados, poder-se-ia dizer que alguns detalhes eram capazes de cair que nem o Velho Oeste nas telas de cinematografia.
Também havia a história de Saeglo, essa claramente deveria ser contada terra adentro.
Saeglo era um pequeno rapaz que em cada dia salteava Saeglo. Corria desgovernado de camisas às riscas castanhas e vermelhas. De boina. Dantes era um violinista exímio, aos 8 anos. Anos atrás o pai ensinara-lhe a tocar. Um Stradivarius.
Mas numa arrebatadora noite, os trovões ricocheteavam como chicotes, o céu tenebroso, as nuvens a cerrarem a noite dando a sensação que o abotoavam. Saeglo penetra numa pequena moradia, a vitalidade era transcendente, as janelas das casas ao redor pareciam incrustadas no seu interior, numa posição de ‘mais que fechadas’. Uma carroça prostrava na dianteira, desleixada, coberta de musgo nas estacas que a apoiavam sobre a Terra. Era mítica a fachada. Desarranjada. Uma greta da casa oposta gritava por atenção a Saeglo. Um reduzido olho, desgasto pela espionagem exercida, espreitava o menino.
Aquela seria a mítica noite que marcaria a infância de uma lenda que pelo trovejar e os arrepios que sentia na pele consciencializou prematuramente a imperícia de se poder um dia comparar aos nobres cavaleiros voláteis que ganharam guerras e domaram tempestades, cujos pulmões conseguiam impulsionar rochedos que arrasavam catedrais. Seria até com um desses sopros que um dos mais importantes chefes Indigo fora derrotado.
Visualizava finalmente no compartimento desarrumado da casa do velho Giovanni, Giovanni, admirava-se que as janelas estivessem abertas ao invés das habitações nas vizinhanças. Na cara do montesino as rugas germinaram analogamente aos pequenos sinais que insuflavam a barba branca. Os músculos haviam desaparecido. As enormes espadas penduradas nas paredes pareciam lâmpadas. E tudo era gigantescos monstros Indigo que flagelavam os sonhos da criança à vista da criança.
— Ah Saeglo, como estás tu? — Soluçava de dentro dos dentes, a pousar a garrafa vinda da Escócia. — Ainda te lembras…
— Sim. Haverei de conseguir. Explicar-lhe-ei este Universo de uma ponta à outra. — Apressara-se a desencantar a velha promessa. Uma reacção química, obra de criança idealista.
— Oh, já não me referia a isso. Lembras-te das velhas histórias sobre os grandes lutadores desta terra, dos mercenários? — Giovanni regressara a Saeglo ao avesso, do mesmo modo que uma peúga de um covarde revolvida pela corrida até que o folgo acabe. O Olimpo ali tão perto e nele não era reflectido qualquer honra dos Deuses, nem quando o Sol era alto. Possivelmente os ares de Portugal da juventude e da guerra arraigaram demasiado os seus avós e bisavós e pai. Talvez a espada ficasse em demasia perto da sua garganta, ou os tecidos que o vestiam não eram demasiados nobres para o tornar no infinito combatente que cada mãe-da-terra esperava do seu filho.
Entretanto, num abrir e torcer de olhos, Giovanni abre a boca, implanta as palavras na mente de Saeglo.
Num momento de silêncio, num mundo de sonho e de fantasia, aquela casa de madeira torna-se num mundo de chamas e de estacas, de armaduras e cavalaria, de luta e gritos, de sangue e batalha. Saeglo agarra numa espada e vê os Ansiães majestosos latentes, sem reparar em mais nada, num fôlego profundo, a espatifar as lanças só com os escudos e a empurrar o inimigo inspirados pela Mãe-Natureza que perscrutava cada progredir e recuar da bulha do cume do maior monte da região, onde a neve não podia assentar porque o sangue fervoroso dos militares consumava na terra os calores altíssimos do Inferno.
Saeglo atinge o exterior da cabana, já não necessitava das palavras do solitário Giovanni, na ombreira especulava os visitantes que se transformavam em pasmos Indigo, de dentes enormes e aguçados, felpudos, cobertos de espinhos venenosos, anomalias, tão possantes que eram capazes de desmoronar a muralha da china com um dedo, ou de esmigalhar as pirâmides do Egipto com as suas caudas rochosas, ou de abrir um caminho no oceano pacífico de uma ponta à outra como fez Moisés. Já tenciona derrotá-los, agarrando firme na espada, mesmo sabendo que nunca seria como os ancestrais cavaleiros de Saeglo, embalsamados e que se encontravam no cemitério dos Deuses. Contudo, naquela derradeira vez, numa procura da explicação para o Universo, Giovanni desembrulha o corpo dos lençóis e sentindo o ar nos pulmões corre, como nunca correu, nem quando seis babilónios entrecruzaram o seu pai e o deglutiram, nem quando acreditou que tudo não passava de um sonho e admirou o seu avô, porque o seu bisavô já tinha morrido e esse era fraco.
A espada afiada era apontada directamente para os visitantes, o enorme Giovanni de barbas agitadas segura-a com uma mão e prende Saeglo nos seus braços, desabam os dois no chão, de joelhos. Saeglo percorre o seu olhar pela aldeia, os telhados ardem perenemente, revira o pescoço e nos visitantes vê os Indigo que ouvira em histórias, de barba vastíssima, de cabelo castanho, musculados, armados até aos dentes, humanos rejeitados por Vénus.
As portas de Saeglo descosiam-se e de lá evaporavam os grandes guerreiros do antigo arco da memória.
E foi assim que aquela aldeia entrecruzou mais um conto de batalhas para cada aldeão contar aos pequenotes num recife esculpido para esse trato. Ainda assim a narração mais imponente daquela aldeia era a do mensageiro. As folhas caíam, chovia. No monte arriba, via-se a povoação secundariamente. No intenso acerco da paz, para lá dos camponeses que cavavam, além dos gritos das batalhas, fora dos espinhos dos antepassados, mais além do Outono, nos confins do Universo, em pleno Nada, tal proferia Saeglo aos ouvidos do velhote, no meio do embutir das espadas e dos gritos, tal dizia repetidamente, a chorar com a pele arrepiada e por tal ali sabia que nunca seria um guerreiro da Região, enquanto via muitos conhecidos a morrer e o sangue se derramava pelo solo como se fosse um fertilizante, um adubo para a Terra, abraçava Giovanni no trejeito de um filho que nunca teve, e cumpria a promessa, ‘lá se encontra a explicação…’