Um novo dia II

Vera atravessou o átrio de rosto impenetrável. Era obvio que estava furiosa, possessa, um horror de má disposição. A saudação do vigilante foi correspondida com um olhar agressivo que dizia “ Nem sonhes” .
Já deixara duas mensagens no correio de voz da sua ginecologista. Gritara bem alto a sua indignação:
- E você, sua incompetente, com essa ideia de mudar a pílula para uma coisa mais fraca. Já viu o que fez?
Ao principio não dera importância à ausência do fluxo menstrual. Era comum isso acontecer. Talvez as dietas , os “fat burners” adquiridos no ginásio, o uso da pílula desde os dezasseis anos . Talvez as linhas cheiradas em noites mais animadas.
Quando falara com José Maria sobre a sua preocupação encontrara um riso nervoso e uma desculpa que esta noite tinha “squash” com alguém. O potente carro arrancara com um chiar de pneus. Uma mensagem subliminar de quanto rápido era a ir-se embora.
Abriu a porta do gabinete que lhe era reservado como directora de imagem . Trancou a porta . Hesitou um segundo antes de acender um cigarro . Sentou-se e seleccionou no celular topo de gama o número da sua amiga.
- Olá, Olá . A estas horas? Deve ser um drama horrendo – grasnou a voz afectada de Margarida.
- Oiça nem quer imaginar, estou grávida.
- Do José Maria ? – Inquiriu lasciva a voz do outro lado – ou entusiasmou-se tanto com um outro amigo que se esqueceu da borrachinha?
- Não seja idiota. Só ele é que tem direito ao natural. Mas a culpa foi daquela pirosa ginecologista que me mandou mudar de pílula. Uma coisa mais fraca mas segura disse ela. Bah ! - A ultima parte da frase foi dito num tom já algo elevado.
- E já tomou alguma coisa para esses nervos?
- Oiça Margarida. Eu estou grávida. Não devo tomar comprimidos!
- Ah pois é – subitamente Margarida animou-se – Mas isso é óptimo. Já pensou? Está garantidíssima. É seguramente do José Maria?
- Sim e...?
- Ora , com o que ele ganha você tem garantido. Claro isto se ele portar mal. Mas dizia eu, tem garantido pelo menos dezoito anos de para aí... Deixe ver. Dois mil por mês, não acha?
Vera abriu a gaveta, empunhou a calculadora e rapidamente digitou. Doze vezes dois, vinte e quatro .Ora... vinte e quatro vezes dezoito.
Um sorriso iluminou-lhe o rosto embora o olhar não tivesse emitido um lampejo de emoção.
- Não seja tonta. Sabe que o José Maria irá ficar felicíssimo.
- Quatrocentos e trinta e dois mil – cortaram Margarida – Não é óptimo?
- É. Beijocas

A chamada terminou. Vera apagou o cigarro já que o potencial rendimento proporcionado pela coisa dentro de si acabara de justificar a dispensa do aborto.
Saiu do gabinete, atravessou o corredor de cubículos dos chatos da contabilidade sabendo que tinha, pelo menos, cinco a nove pares de olhos fixos nas suas nádegas.
Gingou-se mais um pouco. Uma esmola para os pobres.
Abriu de rompante a porta dos recursos humanos e ordenou à secretária:
- A Doutora Amélia por favor . Vera Espírito Curto , Directora de Imagem.
Trinta e dois segundos depois estava sentada frente a Amélia, depois de terem trocado o beijo único da gente bem-educada ela informou:
- Oiça vou ser breve. Estou grávida . Eu sei ,é uma chatice . Mas o meu pai vai ficar todo babado e preciso que me trate da papelada e dessas coisas todas dos subsídios. Está a ver?
- Com certeza, não se preocupe. Ai estou tão contente – A saliva brotava dos cantos da boca da balofa directora de recursos humanos. Dois minúsculos montinhos de baba nojenta. Vera sentiu-se nauseada e saiu rapidamente.
Amélia olhou em frente para a porta fechada durante longos minutos. Depois marcou a extensão da Engenheiro Macedo.
- Estou? Outra vez? O que é .. Não me diga que temos outra?
- Pois temos..é verdade senhor engenheiro mas...
- Mas o que ?? Caralho ! – Explodiu o dono da empresa. Em ruído de fundo escutavam-se os costumeiros pontapés na secretária – Deve estar a brincar comigo! Por Amor de Deus. Quem é desta vez ?? Ahhh ! Outra mangas-de-alpaca? Uma cabra da logística, Uma oferecida das vendas???
- É a Doutora Vera , senhor engenheiro – respondeu Amélia sabendo que a noticia era bombástica.
- A Doutora Vera?? A filha do presidente da concelhia?
- Sim, Senhor Engenheiro – confirmou Amélia.
Do lado do escritório mais importante da empresa, coberto de mogno, escutou-se o cair do pesado corpo no gigantesco trono de cabedal. Fez-se silêncio
- E já se sabe se é menino ou menina?– inquiriu Macedo ,num tom aparentemente gentil que lhe ficava tão mal como a gravata de riscas vermelhas e branca.
Amélia arregalou os olhos e quando se preparava para responder foi interrompida.
- Mande vir um grande ramo de rosas e quando chegar avisa-me que quero ir pessoalmente dar à Vera um grande beijinho. Obrigado
Amélia teve grande dificuldade em tratar do pedido do seu patrão pois nunca aquela empresa tinha oferecido flores a alguém e portanto desconhecia os meandros da tarefa.
Quando chegou a casa nessa noite Amélia sentiu-se ainda mais triste do que o costume.

Cinco meses depois

Vera já adiantada na sua gravidez recebeu a sua nota de não renovação contratual. Tentara falar com o Macedo mas nunca tinha sido atendida. Pousou a mão na barriga e pensou que a culpa era dela. Mas não. Sabia bem que o motivo era o pobre resultado eleitoral do partido do seu pai . O tal contrato de fornecimento exclusivo não iria existir e a sua redundância nos quadros da empresa fora decretada.