britoribeiro
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« em: Setembro 20, 2008, 23:25:26 » |
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À sua frente as sombras moviam-se, bailavam fora do compasso da música imaginada. Piscou os olhos, esforçou-se por afastar as malditas sombras que lhe tolhiam a vista. Encostou-se à parede, arrotou e o ultimo golo de vinho subiu-lhe até à garganta. Recomeçou a andar lentamente, tacteando a parede com a mão esquerda. “Esta é a porta do Acácio, a seguir a janela, depois a entrada para a barbeariaâ€. - Então Silvino, hoje vais carregado! “Que lhes importa se bebi?â€, mais um tropeção, alguém tinha posto um par de botas de borracha a secar fora da porta, “raios os partamâ€. Dos olhos remelosos correu uma torrente de lágrimas, que limpou com as costas da mão esquelética e trémula. Atravessou cambaleante a estrada, tropeçou na beirada do passeio, alguém o segurou pelas costas impedindo-o de cair. “Merda do passeio, pensei que estava mais longeâ€. - Vê lá por onde vais, que ainda te aleijas. “Ultimo copo no Zé da Fragataâ€, tomou alento, subiu o degrau apalpou o balcão, arrotou e encostou-se a um banco pernalta. Não valia a pena sentar-se. Tal como estava ainda se estatelava. - Então já estás cá outra vez? Andas a dar a volta à s capelas… Tinto? Encolheu os ombros, “tanto dá, já nem sei o que bebi antes. É o último copo†Levou a mão à mancha escura que o Zé deixara na sua frente. Pegou no copo com cuidado, boca aberta, beiços arreganhados, sôfrego como se fosse o primeiro copo. Deu-lhe uma tremura quando ia a meio caminho entre o balcão e a boca, entornou um bocado, bebeu o resto de uma golada. - Estás com pressa, para beber tudo de uma vez! Assim nem te sabe o vinho… Já estava de saÃda, o sol ainda lhe avivava mais o manto de névoa que se abria à sua frente. Ao longo do passeio manteve-se encostado à parede, parou as vezes que lhe apeteceu “puta que os pariu, não devo nada a ninguémâ€, estava a chegar à esquina do hotel… - Hoje vais cedo para Vilarinho, Silvino. “Cedo? Cedo?... Já tinha tocado para a missa das seisâ€, daqui a nada vinham as beatas que se iam meter com ele, que lhe iam ralhar, que lhe iam lembrar a falta de tino. - Tu não ganhas juÃzo, homem de Deus! Olha para isto, nem se segura nas pernas… “Também não preciso de ir chatear o padre todos os dias. Raio das velhasâ€, limpou os olhos mais uma vez, respirou fundo, desencostou-se e atravessou a rua com passos que pretendeu decididos. O carro travou desesperadamente, os pneus gemeram no asfalto quente. O impacto provocou um som abafado que o peão já não escutou. Aterrou dez metros mais à frente, metade do corpo na estrada, outra metade sobre o passeio, uma das pernas fazia um ângulo impossÃvel, o sangue atapetava a cabeça contra o solo duro e quente. Do silêncio que se fizera saltou um grito de terror, um testemunho vivo que nunca mais seria esquecido. Correram céleres as ajudas, alguém berrou pela ambulância, a pequena multidão confluiu para a esquina do hotel. - É o Silvino, foi atropelado! - Ainda respira?... Deixai passar, vem aà o Senhor Doutor… A personagem, séria, circunspecta, observou, apalpou, abanou a cabeça com ar desconsolado e sacudiu o pó das joelheiras das calças. As velhas que vinham da missa benzeram-se, murmurou-se um Padre-nosso em surdina. - Coitadinho, ia amanhã ao hospital para ser operado à s cataratas…
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