NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Outubro 25, 2009, 22:18:24 » |
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O tempo passava, mas a noite demorava-se por ali Enfiados num empoeirado quarto de casal a apodrecer nos confins de um mundo desolador, Bliss e Worms escutavam o relato vacilante de Pace, memórias transmitidas na frequência baixa e serena da voz dele, rasgadas a intervalos irregulares pelos gritos nada baixos e serenos de alguém que eles ainda tinham de encontrar e resgatar para poderem, se era que podiam, o hóspede mumificado achava que não, deixar o Motel da Escuridão e regressar ao caminho que os esperava lá fora. Worms sentia as bocas maiores que viviam no seu corpo semi-devorado impacientarem-se. Estavam a ficar com fome. Quanto tempo tinha passado desde a última vez que as alimentara, era a pergunta de sempre para uma resposta que não vinha nunca. Teriam de esperar, decidiu Worms, fascinado pelas coisas que Pace dizia, pelas palavras que ele não conhecia e pelas coisas que ele nunca tinha visto nem conseguia imaginar. Bliss também escutava, pairando de pé acima do chão. O ouro no seu corpo brilhava com maior intensidade nas partes do relato que envolviam acção.
Pace estava a falar sobre as criaturas nocturnas e forasteiros que se iam amontoando no pátio da frente da sua casa. Os elementos agiam sobre os cadáveres com uma sofreguidão mais aguerrida do que anteriormente e em pouco tempo pouco ou nada restava das vÃtimas da boa pontaria de Pace e estas, decompondo-se assim tão depressa, nunca serviam de aviso à s próximas. De vigÃlia à noite, Pace e o pai levavam a cabo longas conversas murmuradas sobre todos os assuntos que viessem à baila. A mãe devia ser o tema mais frequente, mas Pace não podia afirmá-lo com toda a certeza a Bliss e a Worms. Falavam de tudo, pelo que o regresso da mãe devia ser entre eles debatido. Era puramente especulativo afirmá-lo, mesmo porque a única conversa de que ainda se lembrava tinha a ver com as tentativas do pai para explicar a nova realidade. O pai de Pace estava convencido de ter desvendado o mistério e, como originava da sua cabeça desgrenhada, a resolução foi-lhe transmitida no seu habitual estilo epidérmico de filosofar.
- Filho – disse-lhe o pai, talvez não nestas exactas palavras, - imagina um Criador que não consegue concluir as suas ideias. Porque tem demasiadas ao mesmo tempo, ou porque é simplesmente incapaz. Não é muito dedicado, se calhar, este Criador, às suas criações, ou à sua, digamos assim, arte. Um preguiçoso ou um indeciso. Um frouxo com manias de grandeza ou um verdadeiro génio que tem de fazer opções sobre quais ideias, por serem tantas e tão boas, irá devotar o seu tempo a desenvolver. Não importa. Imagina-o. Estás a vê-lo?
Pace provavelmente não estava, mas pensou na quantidade de máquinas que o pai nunca terminaria, esquecidas no cada vez mais longÃnquo barracão, e disse que sim. O conceito, de resto, não era novidade para si. Era uma tecla que o pai muito gostava de bater.
- Este Criador tem uma imaginação que goza de uma fertilidade proporcional à sua inépcia em dar uma conclusão decente a cada uma das suas ideias. Vamos mais por aà e menos pela hipótese do génio. E isto a ver pelas coisas que temos visto, filho, certo? O estranho nem sempre casa com a originalidade, não são mutuamente inclusivos. Pensa nisto, porque é importante.
Pace pensou, concordou, mas não percebeu onde o pai queria chegar. Da mesma forma que Worms e Bliss também não percebiam onde ia dar aquele passeio pelas possÃveis memórias do homem alto de chapéu de abas. O pai deste, à distância dos tempos mortos, prosseguiu a sua dissertação.
- Ideias são fins em si mesmo. Um homem mais simples pode defender que de nada valem se não forem concretizadas mas essa visão é redutora. Cinge as ideias apenas ao mundo fÃsico, à realidade palpável, certo? Não que terminar e dar uso e destino a uma ideia seja um feito menosprezável, estou a falar da ideia como uma noção que se realiza no momento em que alguém a tem. Que não precisa de consequência para continuar a existir. Através do fenómeno de emergência, já te falei dele?, já discutimos Hayek e Popper, não já?, quem poderá afirmar com todo o rigor que um conjunto de ideias não possa ganhar consciência da sua existência e derramar-se para a realidade fÃsica sem o auxÃlio do seu Criador ? Podemos olhar para os exemplos da matemática, economia, religião, todos os sistemas polÃticos à face da Terra e da História e até para a tua adorada Internet como fenómenos emergentes que ganham forma a partir duma ideia e depois progridem muito para além da ideia original, independentemente do desÃgnio humano. Até a Evolução, que como sistema que se auto-organizou de forma soberba para sobreviver e superar as probabilidades, é um fenómeno que encaixa na teoria de emergência. O Criador pode esquecê-las, perdê-las nas profundezas da mente, mas quem pode dizer que as ideias não são capazes de encontrarem o caminho sozinhas?
Pace começava a perceber a filosofia da coisa, apenas esperava que fosse capaz de a transmitir a Bliss e ao amigo mumificado. Se o pai estivesse com eles no Motel da Escuridão, talvez dissesse:
- Aquele tipo de quem tu tanto gostas e nunca te calas, estás sempre a falar nele, como se chama? Moore? Alan Moore. Foste tu que me disseste que ele falava muito na sua teoria do Ideiaspaço, uma dimensão paralela à nossa onde os criadores vão buscar as suas ideias. Lembro-me. Deu-me que pensar. Faz sentido, se quisermos, que os melhores escritores, inventores ou cientistas sejam aqueles que conhecem o caminho para o Ideiaspaço. O caminho mais curto para as ideias. Ou tropecem uma vez no caminho certo, para aqueles que têm uma grande ideia na vida, e depois nunca mais se lembrem como lá ir ter. Não interessa, é só para perceberes o que estou a dizer. As ideias existem, quer as tenhas, quer não. E quando as tens, elas não morrem só porque as esqueces ou as pões de parte. Não se pode voltar a meter a pasta de dentes dentro to tubo, pois não?
- O que é que essa conversa tem a ver com o teu braço postiço? – Bliss gostava de saber.
- Já lá vamos – respondeu Pace. – Imagina, Bliss, por exemplo, um escritor…
- …com ideias que nunca levou a bom termo – continuou o pai, - e que simplesmente cristalizaram na fase da premissa, do conceito, ou mesmo aquelas ideias que tiveram mais sorte e chegaram à fase mais avançada de um projecto. Mas todas elas ficaram aquém duma realização efectiva. Um livro de poemas, um romance publicado, um filme, não interessa. Todas se perderam. Permaneceram no vácuo e ficaram por lá, amontoando-se ao longo da vida, sem dúvida frustrante, deste Criador inábil. Más ideias, se calhar, na maioria. Mal pensadas, mal executadas, deixadas a meio, meio pensadas, se quiseres, mas como te disse, uma ideia é uma ideia, uma coisa que existe, mesmo que não no plano onde eu e tu existimos. Existe, porque alguém a teve. Certo?
- Certo – disse Pace.
- Certo – disse Bliss.
- O que é um filme? – Disse Worms.
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