(...) este Tejo que não corre pela minha aldeia, o Tejo que corre pela minha aldeia chama-se Douro, por isso, por não ter o mesmo nome, é que o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
- José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
Estou, em completa honestidade, há já largos minutos sem saber o que escrever à cerca de
O ano da morte de Ricardo Reis. Não que não haja nada para dizer, não que o livro seja linear, não para obedecer àquele adágio "se não tens nada de bom para dizer não digas nada", nada disso. É precisamente o oposto: este livro é tão esmagador em todos os sentidos possíveis, que para além de boquiaberto, colado às suas páginas e imerso no Portugal dos anos 30, Saramago deixou-me sem palavras, roubou-mas todas, às poucas que ainda consigo juntar em condições, e usou-as numa obra magnífica.
Começando pelo princípio, pelo conceito genial que está por trás deste livro, um homem que não existiu a não ser por outro materializar-se após a morte do primeiro. Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, regressa à pátria de onde voluntariamente se exilou por ser monárquico, segundo o seu biógrafo e criador, assim que soube da notícia da morte prematura do poeta de
Orpheu, através de um telegrama do seu amigo Álvaro de Campos que parte para Glasgow, quem sabe para resumir as suas funções de engenheiro naval até ser também levado pelo braço frio da morte.
Ricardo Reis regressa então a Lisboa, ele que é filho da Invicta cidade, e, através dos seus olhos, ficamos a conhecer a realidade (ou a realidade permitida nos jornais) da Europa num dos mais conturbados períodos da sua história. Ganha forças em Itália
il Dulce, as camisas castanhas alemãs são exemplo para todas as ditaduras do velho continente, em Espanha revolução bolchevique e contra-revolução fascista é assunto vital para a nação Lusa que se auto-intitula na impressa como o exemplo a seguir, prosperidade sob a mão forte e suave de Salazar, salvador da pátria.
Ricardo Reis assiste a tudo da mesma maneira que sempre viveu, como um espectador que vê passar o rio e nele vê espelhado a sua vida com Lídia, como nas suas odes, que aqui é a empregada de quarto do Hotel Bragança. Coicidência de nome apenas, segundo o próprio. No Hotel Bragança, onde Ricardo Reis viveu durante três meses antes de assentar residência no alto de Santa Catarina conhecemos também Salvador gerente, Pimenta paquete, o empregado de mesa Rámon e os outros hóspedes mensais, Marcenda e o seu pai o Doutor Sampaio.
Ricardo Reis tem ainda a visita mais ou menos regular do seu único amigo, morto que esteja, Fernando Pessoa segundo o qual, tal como no nascimento, a morte tem um período de incubação de nove meses, sendo o poeta livre de passear pelas ruas enquanto não se esquecer do mundo.
Nada mais há a dizer à cerca da escrita de Saramago. Tudo o que eu pudesse escrever era e sempre será insignificante aos pés do grande senhor da literatura portuguesa. Pelo contrário, muito há a dizer sobre este livro, mas não me sinto digno ou capaz de o fazer, apenas de o recomendar. Se neste humilde
blog fizesse como o
José Mário Silva e atribuísse notas aos livros sobre os quais escrevo,
O ano da morte de Ricardo Reis era um indiscutível 10.
Atrevo-me ainda a referir pequenos aspectos deliciosos da história? Atrevo-me sim. Como poderia ignorar a mão morta de desgosto de Marcenda, que apenas existe como um peso, talvez como o próprio Ricardo Reis existe após a morte de Fernando Pessoa? E o hábito de encher um copo de vinho para um convidado invisível que o poeta tem quando janta em casas de repasto? E o trágico final, que não me atrevo a revelar embora da história faça parte, dos marinheiros do Afonso de Albuquerque? São tantos e tão geniais os pequenos pedaços desta história que parece não ter sentido, que não tem enredo mais que uns quantos amores e encontros do poeta imaginado, que é fútil da minha parte tentar enumerá-los e tentando fazer mais do que isso, tentar explicar a genialidade por trás deles. Esse é um trabalho que apenas a Saramago cabe.
Apenas posso dizer o que senti quando li este livro, e mesmo isso sendo já dizer de mais, sem saber como entristeceu-me pela solidão, revoltou-me pela história, divertiu-me pelas personagens caricatas eternas, apaixonou-me pelas relações intensas, espicaçou-me a mergulhar ainda mais em todos os Pessoa e mais que tudo, marcou-me bem fundo para sempre, como um dos melhores livros que alguma vez vivi.
Levo, como Ricardo Reis e o seu
God of the Labirynth acidentalmente furtado, este livro para o resto da minha vida com a certeza de que por várias vezes o voltarei a folhear.
Escrito originalmente aqui.