Maria Gabriela de Sá
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« em: Agosto 20, 2014, 13:35:58 » |
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E de repente o universo expandiu-se, tomando-a nos braços como tema para fantasias. Uma vida inteira em que parecia tê-la esquecido e agora colocara-a sob os seus holofotes, abrindo-lhe caminhos de veludo onde colocar os pés e receber carícias lhe sabia como a mais estranha das sensações. Tudo assumia a proporção das coisas tarde de mais, uma ironia, quando havia pela frente mais inverno do que verão. O tempo já lhe tinha escrito em cada pedaço de pele demasiadas marcas, e quando o mundo ficara mais pequeno e os oceanos pareciam um só, sentia talvez já não ter fôlego suficiente para o transpor e ir ao encontro daquele conto de fadas, justo e injusto simultaneamente. Entre uma coisa e outra havia uma babel erguida. As palavras, toda uma razão de existência, teriam de ficar, daí para o futuro, pela metade do seu sentido, quando o sentido do futuro nunca como agora adquira a dimensão de incógnita. Uma incógnita maior do que o mar que teria de transpor para atender o amor, talvez só uma fantasia de amor, que a chamava tão tardiamente, uma espécie canto de cisne que lhe impunha deixar o passado para trás com a toda uma vida lá dentro. E só o solo pátrio tinha, ele e só ele, o direito de a maltratar, se fosse caso disso, numa língua a que ela conhecia todos os recantos e subtilezas, que lhe acariciava a alma quando se sentia só, dando-lhe alento no caminho como se Deus a levasse pela mão sem ninguém lhe roubar o direito de decidir por e para onde ir. Mas hoje precisava de um conselho metafísico que lhe indicasse, sem margem de erro, se a felicidade estava naquele solstício de verão ou se teria de prosseguir naquela precisa estação, iniciada sob a égide do último, no inverno. Entre um e outro, duas realidades distintas, ou talvez uma única realidade e um sonho, que nunca nenhum desvendador de futuros e de sonhos lhe vira no céu, em nenhum astro, nem mesmo através da clarabóia do mundo. Olhando o presente, via que a realidade e o sonho eram quase a mesma coisa, ou talvez coisa nenhuma, e o dilema de ter de decidir entre dois nados estagnava-a. Mesmo assim, um alumiava-a mais do que o outro, agitava-a por dentro, num se que lhe falava de cobardia se não ousasse atravessar os oceanos para ir ver que cores, ou sombras, tinha o amor no fim daquelas águas, por muito que a astrologia não lhe vislumbrasse coisa alguma do outro lado. Onde estava, ficava a maior parte do tempo sozinha, à mercê de si mesma e da sua própria solidão quando ela vinha, e uma e outra bem poderiam mudar de sítio. Todavia, aquele modelo virtual de construção do amor, se às vezes se parecia com uma promessa risonha de um paraíso na Terra, noutras adquiria a dimensão de abismo, que a poderia lançar no gelo concreto da desilusão, depois de um passo em falso. Era a eterna dúvida acerca do futuro, conquanto esculpir o amor só com palavras, como se elas fossem escopro e cinzel e como se se visasse a perfeição das coisas tangíveis nas que nunca o tinham sido, assustava-a. As palavras eram para os escritos dela, feitos letras e sentimentos para personagens de ficção e que não magoariam ninguém. A matéria de que o amor se compunha era demasiado fluída para encaixar só em palavras, sem nada de mais palpável que pudesse tocar, olhar, cheirar. Além de que se sentia uma espécie moderna de donzela medieval a quem fora concedido o direito de negociar o próprio marido à distância de um clique.
Era um dos “nadas “ onde a vida dela andava, porque o outro começara por ser pouco e se ainda se mantinha como alguma coisa fora porque ela sempre puxara para a vida algo que sem essa insistência já teria morrido há muito. Tudo lhe parecia desistência e quem desistisse de si mesmo acabaria por arrastá-la consigo para um modo de estar muito mais só do que antes. Ela já nem pedia nada. Nos últimos tempos, comportava-se como no começo, quando o que viesse seria evolução. Agora era o contrário e o que parecia a paz dos anjos talvez não passasse do prenúncio da morte do amor, ou fosse lá o que fosse, a desconstruir-se por si próprio. Já aprendera a não querer nada, como quem não tem direitos, mas no fundo isso parecia-lhe a pior das atitudes, a negação de tudo. E quando pensava na família, nos mais próximos, constatava que, de dia para dia, ficava mais circunscrita ao seu estatuto colateral e cada vez tinha mais pessoas à frente na fila dos afectos. Ela era a última da cadeia, não por morar longe mas por ser mesmo a última. Assim, talvez pudesse vir a ser a primeira noutro lado.
E era a decisão que tinha em mãos, escolher, de entre dois solstícios, aquele onde haveria mesmo mais sol e, sobretudo, dar-se ao direito de ser feliz, deixando para trás a eterna condição de mulher-lua onde se sentira mergulhar desde cedo.
Mas talvez nem precisasse de pensar muito no assunto. De repente, talvez uma luz se acendesse e lhe apontasse o caminho certo como a Estrela do Natal. Assim, quem sabe se não deixaria no baú das suas memórias algo que a Tia Victória não tinha conseguido? Uma carta a falar da felicidade…
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