Já não circunscrevem o voo e as reuniões familiares às franjas do mar e às areias da praia onde esculpem o baixo relevo das suas patas amarelas. Seja porque o peixe das zonas costeiras se escapuliu para o mar alto, seja porque, na senda de Lavoisier, nada se perde, nada se cria tudo se transforma. Até os hábitos. E as gaivotas aventuram-se na cidade cada vez mais até ao conforto da civilização que lhes disponibiliza comida sem necessidade de tanto engenho da sua parte.
Então é vê-las misturadas entre pombas, omnÃvoras criaturas a catar o milho lançado por crianças felizes com as investidas dos bandos. Para mal dos telhados, edifÃcios e transeuntes desprotegidos de guarda-chuvas especÃficos para o seu cocó, um presente do céu que ninguém deseja receber digo eu e dirá talvez toda a gente.
Em muitas cidades já é proibido dar de comer à s pombas, coitadas das aves, mensageiras da paz, mansas e incapazes de se rebelarem contra a invasão dos seus pombais pelas carnÃvoras gaivotas, estas sim, cada mais mais sagazes nas suas investidas por causa da bendita comida.
Foi o que aconteceu no domingo, dia 18 de Setembro de 2016. O local era o Palácio de Cristal, no Porto, assim chamado apesar de já não ter, há mais de sessenta anos, nada do verdadeiro Palácio de Cristal construÃdo em ferro e vidro para a Exposição Universal do Porto decorrida em 1865, no tempo do Rei D. LuÃs. E o que mais abaixo irei contar aconteceu nos jardins que soçobraram à destruição do palácio, no último dia da Feira do Livro. Rigorosamente 155 anos após o inÃcio da construção do desaparecido monumento, com inÃcio em 18 de Setembro de 1861.
Pois aconteceu que, para proporcionar aos visitantes da feira, compradores de livros ou não, bons momentos num sÃtio tão mÃtico, foi instalado no Palácio de Cristal um restaurante temporário. Estava algures de costas voltadas para a Ponte da Arrábida e para o mar, de onde as gaivotas, como os marinheiros portugueses grandes navegadores do passado, se aventuram no presente até ao Palácio para um convÃvio, tanto com as pombas como com as gerações de pavões que lá moram há décadas. Com estes até eu, um dia, tive uma estreita aproximação, quando, com a Elvira Santos da Mosaico de Palavras, tive, tivemos ambas, a simpatia e bondade de lhes dar ao bico suculentas batatas fritas a que talvez eles tenham chamado um figo. E eles aproximam-se das pessoas, com certeza não por Rui Moreira, o titular actual da Presidência da Câmara do Porto e "dono" do espaço não lhes dar de comer, mas sim por pura gula ou obesidade compulsiva própria.
Bom, mas então nesse dia, quinze ou vinte mesas de madeira a que haviam sido acoplados bancos corridos de um lado e de outro, as inúmeras pessoas, sentadas com os tabuleiros à frente, comiam em sossego, verdadeiras
Ineses com fome, na hora em que a poesia mais simples seria pior do que uma pedra no estômago. Ao lado de uma dessas mesas, ainda vazia, estava um carro de bebé com a respectiva criança sossegada e sentada. A mãe, com uma outra criança a quem dar de comer, depois de ter ido buscar o primeiro tabuleiro, colocou-o no tampo da mesa e foi então tratar de rebocar o segundo. Todavia, o abandono por momentos do local do banquete não passou despercebido a uma gaivota, ali entretida a apanhar uns mÃseros bagos de arroz, que a Zézinha, uma leitora compulsiva e que já tinha comprado uma pesada cesta de livros para alimentar o vÃcio, lhe tinha dado.
Foi num ápice que a gaivota, subindo com rapidez para o banco corrido e deste para a mesa, abocanhou o bife do prato, enquanto a Elvira se ria às gargalhadas.
E a mim só me foi dado constatar a cara apalermada da senhora depois de ter sido indecentemente roubada por uma gaivota atrevida e a quem a pobre mulher não terá conseguido sequer imaginar encarcerada numa prisão pelo seu crime