O GANSO CARLOS

Recordo-me com os meus oito anos, sentado no soalho do sótão aonde o meu pai trabalhava, fazer os trabalhos de casa, à altura " deveres", com as pernas cruzadas servindo de esconderijo para os patos e gatos recém-nascidos, tapados com uma tábua que para além de mesa os escondia. Só a minha mãe sabia do esquema porque me ajudava a transportá-los para o esconderijo. Mas toda a estratégia desabava quando um gato decidia miar ou um pato piar. Tinha então poucos minutos para os arrumar junto das mães e continuar com os deveres.
Acostumado a este ritual, acompanhava ansiosamente a gravidez das gatas, das cadelas, das coelhas, que nunca entendi porque estavam sempre a parir coelhinhos, da chocadeira das galinhas e das patas.
Passou lá por casa uma gansa, amarela, bonita e grande, o dobro das patas, que foi trágicamente assassinada por um perú racista que se fartou de saltar em cima da desgraçada com fortes bicadas na cabeça, só a largando quando o meu pai lhe assentou forte e certeira pancada com a vassoura no lombo.
Dela, a minha mãe havia guardado dois ovos que colocou debaixo duma pata de cor castanha e cabeça matizada de verde, que chocava os seus ovos, civilizada ao ponto de nos responder quando por nós chamada pelo nome. E foi ela que sem qualquer objecção dispensou o seu calor aos dois ovos da falecida colega de capoeira gansa, mesmo que um pouco maiores que os seus. Solidariedade pura.
Os patos começaram a picar os ovos desesperados e com falta de ar, prontos para virem a este mundo. Ingénuos. E dos dois ovos da gansa, um descendente. Maior que os patos mas nem por isso rejeitado pela mãe pata que se desdobrava em carinhos e cuidados.
Tomei a liberdade de o baptizar com o nome dum primo meu, que tinha uma pose permanentemente hirta, tipo poste de iluminação pública, tal como os gansos, e o pescoço elevado girando a cabeça como a torre de radar dos aeroportos. De nome Carlos.
Todos cresceram, claro que o ganso Carlos mais que os patos, até votarem corpo de adultos.Mais forte que eles, ganhava todas as corridas e voos, mas nem por isso se sentia superior e comia e dormia com eles, entrelaçados para vencerem o frio da noite na capoeira.
Um dos desportos que sempre gostei de treinar com toda a bicharada que passava por casa dos meus pais, exceptuando os porcos, porque nunca atinaram, era o futebol misturado com andebol, quando os pés falhavam.
O ganso Carlos desde muito novo que demonstrara grandes aptidões para o futebol embora cometendo muitas faltas, por vezes graves, porque não corria atrás da bola mas apenas das pernas do adversário, eu, para bicar, na melhor das hipóteses as calças.
Uma tarde, depois de findados os " deveres ", reuni os meus atletas, a cadela Violeta, o ganso Carlos e a equipa de patos e atirámo-nos ao treino no pátio do quintal. Tudo corria bem até surgir um remate traiçoeiro que batendo no muro fez ricochete e chocou indignamente no pescoço do Carlos. Como este não se queixou, continuámos.
Na manhã seguinte a minha mãe notou que o Carlos simplesmente não endireitava o pescoço. Pediu o conselho dum vizinho habituado às maleitas dos animais e o mesmo deu por sentença o seu abate para não continuar a sofrer até morrer, pois nada poderia engolir.
Ela assim o fez e cozinhou com todos os temperos possíveis de o fazer confundir com o paladar do lombo de porco.
Colocou a assadeira na mesa e ninguém lhe tocou.