depois a quitéria ria-se. estamos fodidas, dizia. estamos todas fodidas com estes homens. a maria da graça perdia o olhar, pensava que, se ao menos o maldito se apaixonasse por ela, poderia sair dali, ser usada como ele quisesse para os entusiasmos que lhe davam no meio das pernas, mas viraria uma senhora, rodeada de coisas cheias de história e pompa humana, coisas a lembrarem museus e livros e inteligências de todo o mundo.
- valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores
mais uma vez encontramos valter hugo mãe, o tal do autor português que se recusa a usar maiúsculas para destronar uma ideia feita de que algumas palavras são mais importantes do que as outras, como o próprio o diz em entrevista a carlos vaz marques no programa pessoal e transmissÃvel da tsf (pode ser ouvido
aqui), com o seu mais recente romance,
o apocalipse dos trabalhadores. mais uma vez, em parte em homenagem ao autor, em parte preguiça, também eu adopto a intenção de escrever tudo em minúsculas, não que partilhe da ideia de valter, mas isso já era um discurso inteiramente diferente que não tem lugar neste
blog.
o apocalipse dos trabalhadores é um dos livros que mais sucesso tem tido neste tempo que já decorreu desde o seu lançamento, por um lado movido pela promoção normalmente associada a estas coisas e por outro a um grande número de crÃticas positivas que tem vindo a coleccionar. aviso desde já que, se isto que aqui faço se pode qualificar de crÃtica, engrossará o número já mencionado.
é a busca de uma mulher-a-dias e da sua amiga, também empregada e carpideira profissional em
part-time, pelo paraÃso; o que a primeira pensa encontrar na morte a segunda encontra nos braços de um emigrante ucraniano. Juntam-se a elas o cão portugal que, aparentemente, é obrigatório figurar em todas as recensões deste livro devidamente qualificado como um "quadrado castanho cheio de pulgas, ternurento e imprestável", o marido que é pescador de alto mar, daqueles que se ausentam por seis meses seguidos, o velho maldito, patrão da maria da graça, a primeira mulher, e mais uns quantos emigrantes de leste.
maria da graça tem um sonho recorrente, não será propriamente o mesmo de todas as vezes porque pormenores se vão alterando, em que se encontra no átrio do céu, carregada por todos os lados de vendedores que lhe impingem
souvenirs da estadia na terra, tentando em vão entrar no paraÃso enquanto é impedida por um s. pedro pouco simpático com as carestias da vida da maria da graça. vê-se, pela morte do seu patrão, o maldito senhor ferreira, sem emprego, forçada a acompanhar a amiga quitéria no serviço de carpideira profissional e a aceitar poucas horas por semana na casa dos antigos companheiros de quarto de andriy, o ucraniano de quitéria. paralelamente vemos tambéma luta da mãe de andriy em korosten, na ucrânia, contra a fome e a loucura crescente do marido, sasha, que constantemente se acha perseguido. por oposição, o augusto, marido da maria da graça, quase não se vê, embarca aos seis meses de cada vez para a pesca em mar alto. tudo isto na provinciana bragança dos nossos dias.
para quem leu
o remorso de baltazar serapião não é difÃcil encontrar alguns temas comuns a este livro, a saber, a fragilidade feminina numa sociedade que é claramente patriarcal. em ambos vemos mulheres que são abusadas ou agredidas e em ambos elas conformam-se ou justificam-se com isso. a principal diferença, sem dúvida, é que este é um romance visto pelo outro lado, pelo lado da mulher, que assume os maus-tratos como um mal menor, algo a ultrapassar para atingir o paraÃso. isto era o que escreveria se estivesse a construir algo sobre o percurso e evolução literária de valter hugo mãe, que não estou, mas fica aqui registado para quem estiver interessado.
o que interessa agora é este livro em particular,
o apocalipse dos trabalhadores, e a visão que nele encontramos de um mundo singular de mulheres que apenas o são de vez em quando, em certos dias. em primeiro lugar, e voltando a comparar com o anterior livro, é de admirar a maneira como a escrita se reinventa a si própria não perdendo a sua marca caracterÃstica (e aqui só se fosse mesmo muito superficial a análise me estava a referir à s minúsculas), isto é, mesmo num estilo completamente diferente reconhecemos as palavras como de valter hugo mãe, tal como o portugal reconhece na maria da graça a sua dona. isso é de espantar, por duas razões, a primeira que sendo o estilo do romance anterior tão marcado seria difÃcil reconhecer uma escrita normal depois disso, a segunda que o autor foi capaz de adaptar a escrita ao conteúdo de cada livro sem nunca se deixar dominar por isso. a nÃvel linguÃstico é sem dúvida o que mais me impressiona neste livro. existem, é claro, outras razões que fazem de valter hugo mãe um homem com uma destreza superior na arte de bem escrever, mas essas são comuns ao seu estilo que já foi brevemente estudado na recensão de
o remorso de baltazar serapião.
concentrado finalmente nesta história recuso-me à s normais e mais que óbvias simbologias que leio em toda a parte. acho que esse foi o grande erro de valter neste livro (na verdade não é bem um erro, antes pelo contrário, uma maneira de pôr crÃticos e os leitores mais preguiçosos a falar do livro com facilidade, não querendo com isto dizer que o portugal tenha sido uma simples manobra de
marketing, nada disso, apenas que me parece ligeiramente desenquadrado do resto da imagem) o facto de se limitar a caracterizar o paÃs como um cão cheio de pulgas. porquê? porque toda a gente fica por aqui na sua análise a um livro estrondosamente mais profundo do que um simples retrato social. quem disser que
o apocalipse dos trabalhadores é apenas um retrato social do portugal contemporâneo das duas uma, ou o leu apressadamente, ou não o leu de todo. existe sim, o tal retrato, mas o retrato é apenas um quadro na parede da enorme casa que é este livro, ou nele não convivessem pescadores xenófobos com ucranianos tristes. pedaços da história em que as duas amigas ficam nas traseiras do prédio, à noite, a sonharem em voz alta, a conversarem sobre o mais Ãntimo dos pensamentos a entregarem-se uma à outra com mais prontidão do que alguma vez se entregaram a alguém não podem ser deixados despercebidos. uma mulher que sonha morrer para encontrar finalmente o seu paraÃso que nunca encontrou em vida, não é um retrato social, não é sequer um retrato humano, é uma acção pura e dura, a acção da busca que todos, de uma ou de outra forma, repetimos.
muitos ficaram-se pelo retrato primeiro, eu preferi ir ao encontro das almas que assombram o livro. impossÃvel ficar indiferente à mãe de andriy, mesmo ao seu pai que lentamente mata a mulher com a sua loucura. porque o empobrecimento do corpo leva inevitavelmente ao empobrecimento da mente. este homem que passou fome toda a vida, que tirou do seu prato para que o seu filho pudesse comer deixa-se sucumbir perante os fantasmas da sua cabeça. impressionante a construção do passado de andriy e da sua famÃlia. aliás, todos os personagens que compõem este livro mereciam outro só para eles, como a mulher que vê uma criança cair do seu telhado para a morte, como a irmã da quitéria que volta para descobrir que não é mais irmã de ninguém. começo a perceber porque tanto se têm centrado na figura do cão portugal, é sem dúvida o mais fácil de apontar e o de mais curta análise.
cada um dos homens e mulheres que entram neste livro mereciam uma cuidada reflexão. eu já fiz a minha e se parece pouco aquilo que escrevi é porque o é na verdade.
o apocalipse dos trabalhadores é um livro enorme sem ser maior que um livro normal. é um daqueles que nos deixa a pensar. e pensando bem, todos os livros deviam ser assim.
Escrito originalmente aqui.