vitor
Membro da Casa
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Olá amigos.
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« em: Novembro 01, 2008, 17:37:58 » |
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A porta abria-se. Trazia consigo um vento refrescador e eu, continuava, explorara o vazio que por dentro de mim me aliviava a curiosidade, queria, não sei bem o quê, vasculhava o resto de papéis perdidos e uns ali, peguei e levei até ao quarto e vasculhei, li, reli, e descobri, que…, estava a tempo demais lá, dirigidos a mim sem que eu os lesse, tarde demais…? Não. Bem, nem sei, mais, que importa agora? Que adiante, garantido não é e logo assim sendo, largo tudo e sigo, virado de pernas para cima a escutar, quem me trás de longe um assunto de futuro que ouvira eu antigamente, como a recordação esquecida neste baú velho na sala da casa onde a tia, velha, costura a vida num silêncio absoluto, encontrado após anos e só nela, discorrer consigo o tempo que, sei lá, possa ainda existir-lhe. Do lado, ou que casa, a mesma vizinha antiga, a mesma pessoa vestida comigo no pensamento e crua, azeda, castiga as horas possuindo a vida seca e crua, raiva e despudor, por cima, faleceu a dona Silvéria, a dona Silvéria, imaginem! e como parecia estar bem demais e foi-se, hoje nada espanta, acreditas? Não sei da Nina, da filha, delas, nada sei desde que daqui partiram. Onde estarão elas? Onde? Eu, aqui, de roupa crua, azul, aqui estou, sem que vejam, entenda tio, sabe bem demais o relento deste varandim desvestido, e mais cedo ou tarde, lá vem ela, tia Luísa, magra e bela, compor de núpcias como só ela sabe, varrer e limpar, e nós, tio, nós, para onde vamos? O Loures está bem hoje, a Mara, o Castro, bem, como era e está hoje, encontrou a Margarida e vive como sempre desejou. Eu, meu tio, como a coxa velha desse bairro, ou como num livro que li em tempos, de pernas às avessas, a coxear na alma tanto tempo sem saída. Sem resíduos. Sem resquícios. Bem, sigamos. Voltemos onde estávamos, à varanda ou então, não sei. - Marco, és tu? Ela, na mesma, no corredor agora pergunta, em voz alta e eu, pena, pronto, não consigo reagir, não lhe posso valer porque não existo aqui, estou onde nunca ela pensará, apesar do barulho da porta que ela, certamente, ouviu. Vendo quadros e paredes e de barriga sôfrega, pudesse eu atendê-la, entenderia que eu, não sou como eu, aqui, onde estou, quem sabe um dia a vida volte e tudo se recomponha? Longe da família, grita tia, talvez um dia possa responder-te, não agora, que, penso eu, não iria conseguir dizer-te de mim, aqui, no meio escuro do corredor desta casa, tua, sei, e do campo, de onde apenas me vejo de vez em quando, como imaginar a minha mãe, às avessas com a vida, novamente, sempre, na campa do meu pai a colocar flores. A tua casa é fria. Bebo chá e refaço a ideia, mórbida, vazio? - Sim tia, sou eu, consegues ver-me? Ouvir-me? Não me viam. Ninguém conseguia descobrir-me, transparente de vícios. Eu ali, passeava de costas curvas, meio às avessas, o tio Noco na oficina de mecânica preparava desvairos e consertava as máquinas, eu a ouvi-lo nos movimentos, longe, a janela da casa aberta, deixava a luz entrar, estava dia ainda, e a tia Luísa nos seus afazeres, nos de sempre, nunca a vi fazer outra coisa, costurava para as vizinhas e era assim que conseguia uns dinheiros para a sua vidinha. - Aquele rapaz, meu Deus, a esta hora e ainda nada, nem ai nem ui, não vem para jantar e uma pessoa aqui preocupada, bolas! O seu pensamento, ouvi, garanto, senti, não me faço notar naquele imenso escuro, às voltas com nada mais, vou a cozinha e faço um chá e tomo, e volto a sala e entro no quarto, volto ao corredor, passo pela sala, e ela, na varanda, de costas para a porta que dá para o interior da casa, cose, a maquina no seu triturar, badala furos de linha na roupa ou tecidos que ela prepara, faz a camisa velha e vestirá a amiga, nunca a vejo com mais ninguém mas sei, conhece muita gente, mais agora, desde que o tio Noco faleceu, se sente mais realizada, acabaram os maus tratos, os gritos dele, tarde fora e noite dentro, embora fale dele com saudades, pois, agente sempre se recorda das pessoas, especialmente das coisas boas de cada um, dos mortos, apenas nos lembramos das coisas boas que nos faziam. - Tens de olhar para o que faço, atento, meu rapaz, um dia quem sabe, serás tu aqui, mãos sujas neste óleo a fazer da vida a tua forma de viver, aqui, esta oficina que espero deixar-ta, para ti. Quem sabe meu tio. Quem diz que não? Eu certamente nada digo, nada, e olho para si, com uma atenção de bradar, a recolher os seus movimentos com o olhar que se perde na vida, carros e carros por todos os lados, velhos e semi-novos a espera das suas mãos para que os coloque novamente nas mãos dos seus donos, um dia aprendo e torno-me, como você diz, um sucessor dos seus afazeres e consertarei, com umas mãos como as suas, todos os outros carros que para aqui vierem, ou, quem sabe, alguns dos que ainda aqui estão, continuo eu, caso você os deixe como estão, sem tempo para continuar neles a sua tarefa, a sua vida a perder-se tio, velho, cada vez mais, muito mais, vejo em si o cansaço da vida, as costas a vergarem-se ao destino e a vida a sair do seu corpo, lá dentro, a tia Luísa, velha também, mais velha ainda enquanto você cá estiver, e você vivo, e ela viva, e eu, vivo, ninguém me vê. O ricochete da maquina nos badalos de triturar a roupa, dia e noite, a mesa posta e nos, eu e você, jantamos o que havia, eu no banco branco e velho e você na cadeira, na mesma onde sempre senta, a tantos anos, sempre com os mesmos moldes, consumimos a refeição deixada por ela, que a si, via, e a mim nunca, nem me ouvia, ninguém conseguia escutar-me, apesar das minhas tentativas, apenas o meu tio, por todos os lugares onde estava, na oficina, preparava o que queria que fosse um dia o meu futuro, e eu não sei, acredito, porque duvido, até eu, do que conseguirei, continuar a sua vida com as minhas mãos para mim mesmo, fazer da mecânica dos automóveis o meu ganha-pão um dia. O primo Zé na faculdade de arquitectura, no Porto, as dificuldades que o miúdo tem para concluir o curso, trabalha, pelo que sei, numa casa de pasto, longe daqui, vem sempre tarde e é aqui que dorme também. Três quartos tem esta casa, muito pequena, uma varanda sempre ocupada, a máquina não pára e ela, tia Luísa, lá vai na sua contenda, a costurar coisas e roupas, velha, cansada e eu, velho e cansado, e o Zé na rua, nos seus estudos ou na casa de pasto, vem tarde, ou nem vem a casa, acredito, pois nunca o vejo, ou já durmo quando ele chega, ou não estou quando ele sai, outras vezes, aquelas em que provavelmente nos cruzamos, ninguém vê um e outro, a tia Luísa também, não me vê quando se cruza comigo no corredor, quando na cozinha, prepara o café para o pequeno-almoço do tio Noco. O grito dos talheres, ninguém além dela na cozinha. Todos, tomamos o pequeno-almoço. - Farta disto, caramba, venham comer, já está pronto o leite e o café, ouvem-me? Provavelmente ninguém.
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