marcopintoc
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« em: Junho 04, 2008, 11:00:05 » |
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Hoje a cantora chegou tarde. Talvez um ensaio a tenha retido até horas que lhe são pouco comuns, talvez um furo no abnegado Opel Corsa que, com uma precisão helvética, a leva e devolve ao rés-do-chão esquerdo onde habita. Só, a cantora vive só e nunca, nas minhas vigÃlias de insónia coscuvilheira, lhe percebi alguma amizade ou outra relação mais Ãntima. Se não fosse o dom a cantora seria uma mulher incrivelmente aborrecedora. As roupas são de gente remediada, sóbrias, flutuando entre o negro luto e o azul-escuro conservador. O corte é largo, ocultando as curvas desinteressantes que a torneiam de uma forma infeliz. O seu passo é firme mas lento, o calçado é sempre a peça de melhor qualidade de toda a sua indumentária. Pelo desgaste evidenciam longos percursos e romarias, o pé esquerdo é ligeiramente desviado para fora. No verão já revela algumas varizes. No entanto tudo isso é irrelevante quando se escuta a voz que jaz, magnÃfica, dentro da mulher baixa de peito rola que um dia me salvou a vida pela manhã. Foi em Fevereiro, chovia e fazia um frio agressivo que se embrulhava, para meu grande desconforto, com um céu cinza feio e a minha pobre condição emocional. Tecnicamente estava deprimido, auto medicado, a alguns dias de implorar uma baixa ao médico da minha famÃlia de um. De certa forma existiam na minha mente desejos sórdidos por doenças terminais e outras desgraças. A minha medicação ganhava tons de perigo público quando o pasmar quÃmico retardava o meu pé no travão. A iminência do choque era recebida com inusitada, e clinicamente grave, complacência. Arrastava eu os meus pés e olhar pelo passeio, pleno de resÃduos da tempestade da noite, quando a voz me chegou. Através das frinchas de um estore mal fechado, uma ária de Mozart era entoada em plenos pulmões e alma pelo ribombar de umas cordas vocais dotadas e treinadas. Estanquei. Ali, com a chuva a chamar-me tolo, fiquei; perplexo, estático, a escutar, encantado. A parte de mim que crê em Deus ouviu naquela música algo de celestial e redentor. A partir desse momento deixei de desejar a morte. Esse desejo quase permanente do meu quotidiano foi simplesmente irradiado na luz e elevação que brotavam da peça do grande mestre. A voz mudou a minha vida. Não me perguntem porquê mas mudou. Desde então que cometo a ousadia de estacionar o carro sempre em frente à janela térrea e de, furtivamente, me sentar ao volante , janela ,aberta , a escutar os ensaios da cantora . Por vezes aborreço-me e volto para casa, isso sucede normalmente quando efectua exercÃcios muito técnicos e não canta nada que mereça esse nome. Contudo hoje algo de muito belo me espera. Tenho essa fé. Recolho o sobretudo grosso do cabide junto à porta de entrada e desço à rua. Não se avista vivalma. Atravesso a distancia até ao carro de pescoço encolhido na gola e mãos firmemente cravadas nos bolsos. Já no interior tento bater os pés e esfregar as mãos para manter a circulação. Penso que devia ir para casa. Então, como um milagre , o belo canto recomeça .Desconheço o compositor mas a peça é de natureza sacra. Sem perceber uma palavra sei que fala de Deus e ,quando o tom atinge as proporções de uma marcha épica ,saio do veÃculo e sento-me no chão gelado, costas na parede , o escutar na janela que está alguns centÃmetros acima da minha cabeça e deixo-me ir neste meu enlouquecer agora bem mais sereno. Talvez seja da pastilha que troquei há uns dias por duas lamelas de anti depressivos mas juro-vos, por tudo o que é sagrado, que vi, enquanto esgazeava para o grande prato lunar , dois anjos descer do Céu para ouvir a cantora. Não quis acreditar e fechei os olhos. À reabertura os papudos seres ainda permaneciam no meu campo de visão. Limpei a baba e esfreguei os globos oculares. Para meu enorme espanto um deles encarou-me e ,cintilando um sorriso perfeito, comentou: - Grande som ! A cantora interrompeu o ensaio perante os meus gritos de alegria infantil. Saltava pela rua , cabriolas totalmente impróprias num individuo de meia idade. Toda a vizinhança veio ver o que se passava. Alguém chamou a autoridade. No carro-patrulha a janela semiaberta permitiu-me encostar os lábios à frincha e urrar à cantora, que observava a cena à janela aberta do seu estúdio, todos os bravos que consegui até uma estalada de um dos agentes me remeter à minha condição de detido. Pelo canto do olho vi-a encostar a mão ao peito e inclinar a cabeça em agradecimento. Como uma grande diva perante a plateia em ovação.
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