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Autor Tópico: Raízes  (Lida 2044 vezes)
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Pedro Ventura
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« em: Janeiro 02, 2009, 00:26:47 »

Capítulo I

Conheci a Joana na faculdade. Nessa altura, Lisboa era grande demais, até assustadora, para uma moça que tinha acabado de fazer vinte e dois anos, e que saíra pela primeira vez da casa dos pais, para vir estudar na grande metrópole. Joana vinha da pacata e amistosa Vila de Cuba no Alentejo; e eu, mal travei conhecimento com ela, entre corredores murmurantes da faculdade, prestei-me como cicerone para as primeiras voltas de reconhecimento pela cidade mais ocidental da Europa. Rossio, Chiado, Praça do Comércio, o Castelo, enfim, para começar, os pontos de referência da Baixa, que o nosso Marquês de Pombal se obstinou a erguer depois do cataclismo de 1755, até chegarmos ao Tejo, o embrião de Lisboa. Com o tempo ela habituar-se-ia a descobrir o seu novo habitat, a sua nova realidade, como qualquer animal que se liberta da alçada dos progenitores, e que sente a necessidade de descobrir por si só o mundo que o rodeia. A única vez que Joana tinha visitado a cidade das sete colinas tinha sido numa visita de estudo ao Mosteiro dos Jerónimos, e as recordações dessa visita tinham-se volatilizado com o tempo.
A sua nova moradia passara a ser a casa da tia Filó, mulher solteira por opção e espirituosa por natureza, funcionária pública num ministério, que lhe ofereceu um quarto na Graça, comida e roupa lavada, a troco de que ela lhe desse somente o orgulho de ser sua sobrinha, sendo bem sucedida nos estudos. Contavam-se pelos dedos aqueles que o foram na família, pelo menos aqueles que levaram os estudos tão avante. Os dois irmãos mais velhos cedo largaram a escola e escolheram como seu ofício a enxada e alguns biscates que aparecessem no ramo da construção civil. Joana, a mais nova da família Videira, sempre fora mais empreendedora e sonhadora; aspirava ser tradutora ou professora de línguas. Amava a literatura, venerava Pessoa.
Eu também gostava do poeta de Lisboa, apesar de ter lido escassas coisas da sua autoria. As minhas leituras eram outras. Era mais virado para as leituras musicais. Todavia, já tinha lido Kundera, Suskind ou Henry Miller, e tinha uma biblioteca apreciável. A leitura requer tempo e isso era o que me faltava muitas vezes. Nunca mais vou olvidar o fulgor dos olhos de Joana quando a levei a tomar café na esplanada d`“A Brasileira”, outrora poiso assíduo de artistas e intelectuais, ao lado do seu estimado poeta. Quase dava mais atenção a ele do que a mim, como se o homem estivesse ali em carne e osso, como se falasse e respirasse. Cheguei a questioná-la, ingenuamente, enciumado, como é que era capaz de me trocar por uma estátua imóvel, alheia.
- Apenas estou feliz. Não é todos os dias que se toma um café com o Sr. Fernando Pessoa – respondeu-me entre risinhos.
Não obstante conhecermo-nos há pouquíssimas semanas, perante tais palavras, nesse ápice, apeteceu-me presenteá-la com um beijo terno. Mas a juventude tem destes receios, por isso resguardei-me, não o fiz. Sendo assim, que mais lhe poderia ofertar senão um sorriso? E nessa altura parecia o suficiente para ela.
- Pois agora podes tomar os cafés que quiseres com o Sr. Pessoa, que ele aqui estará à tua espera. Terá sempre uma cadeira vazia a seu lado, à espera de companhia. Mas se lhe quiseres oferecer uma bebida, talvez seja melhor pedires um licor – respondi-lhe humoradamente, conseguindo assim remeter o Senhor do lado para segundo plano. Conversámos ininterruptamente, sobre os mais variados temas, enquanto o Sr. Pessoa se mantinha ao nosso lado, quedo, mudo, mas, quem sabe, atento às nossas locuções.
Nessa tarde solarenga de fins de Setembro, alheios aos transeuntes, aos animadores de rua, a tudo o que nos rodeava, com o manto de céu azul e limpo que cobria a cidade, dando-lhe vida e alma, tive a convicção de que se alicerçava e medrava, uma relação frutífera entre mim e Joana. Que diga o Senhor do chapéu.


Capítulo II

O tempo foi passando. No terceiro ano universitário, Joana e eu éramos unos. Não partilhávamos outras amizades, não por egoísmo, mas simplesmente por não termos necessidade, porque nos complementávamos. Para onde ela fosse eu ia atrás como um sombra, e o mesmo acontecia com ela. Após as aulas, deambulávamos juntos pelas ruelas íngremes e becos dos bairros antigos – Bairro Alto, Mouraria, Alfama… Estudávamos e dissertávamos sobre as gentes alfacinhas, entrávamos nas tasquinhas para bebericarmos uma ginjinha, apreciávamos as fachadas e a sua arquitectura, com as suas clarabóias e varandas estreitas pejadas de vasos com flores e roupa estendida, sorriamos aos catraios que brincavam, perdíamos horas nos alfarrabistas. Nunca nos faltavam afazeres durante essas tardes. Íamos ao cinema, ao Saldanha e ao King, subíamos e descíamos colinas, no eléctrico 28, dos Prazeres à Graça e eu, nesses percursos, vestia o papel de guia turístico apontando-lhe os pontos interessantes por onde passávamos (a Sé Catedral, o palácio de São Bento, a Basílica da Estrela, etc.). Visitávamos museus e algumas igrejas mais afamadas, contemplávamos os céus e os astros no Planetário, sítio que já não visitava desde a infância, fruíamos da zona ribeirinha, e, depois de jantarmos num qualquer restaurante típico e recôndito, em que o cardápio exposto na vidraça nos fizesse crescer água na boca, ainda nos sobejavam forças para nos embrenharmos na noite. Sempre juntos.
- Lisboa é linda, à noite. Tem tanta luz e vida. – dizia-me por vezes.
- Lisboa é sempre linda, de dia ou de noite – retorquia-lhe. – Que gostas mais dela?
- Aquilo que não conheço. Há sempre um espanto ao virar de cada esquina. Tens de me mostrar uma casa de fados. Tenho curiosidade.
- Claro. Assim que houver oportunidade levo-te ao Dragão de Alfama, vais ver como se canta o fado vadio.
Sentíamo-nos tão apegados e dependentes, que não conseguíamos ir para as aulas um sem o outro. E nos fins-de-semana que ela ia matar as saudades paternas, eu mal saía de casa. Agarrava-me ao contrabaixo e às partituras de jazz que tinha, de revistas da especialidade que comprava numa loja da Avenida da Liberdade, e dedilhava durante horas todo o meu ser, até os dedos ficarem em carne viva. Talvez fossem saudades - eu sabia que eram. E ao domingo, ao cair da tarde, lá estava eu no terminal à sua espera para lhe oferecer a mão à saída do autocarro, para a ajudar a levar as malas até ao táxi, que serpenteava pelo trânsito até à Graça, ao som de Quim Barreiros, Emanuel ou o hino do Benfica.
- São estas pequenas coisas que caracterizam Lisboa e as suas gentes – dizia-me por vezes, referenciando os homens da praça, que quase sempre laboram ao ritmo de melodias populares.
Tinham toda a razão de ser, estas palavras de Joana. Por vezes quem vive em Lisboa, e não se abstrai do seu ritmo apressado, acaba por se esquecer das peculiaridades da cidade, que a tornam aquilo que ela é. Sempre daremos mais valor àquilo que não temos. Não foi a saudade que fez cantar o fado? Digo isto porque, todos os anos, quando vou de férias para fora de Lisboa, passada a primeira semana, acontece um fenómeno misterioso dentro de mim: fico com a necessidade de absorver o Tejo e de avistar os cacilheiros no seu movimento pendular entre as duas margens. Enfim, explique-me este fenómeno quem tiver apetência para tal.
Por incrível que pareça, eu e Joana sempre fomos adiando a nossa paixão. Talvez por padecermos do mesmo mal, por sermos ambos pessoas tímidas. Sempre nos fizemos crer, enganando-nos até ao limite, que o que coabitava entre nós era somente uma forte amizade, e nada mais do que isso. Até que chegou o dia, ou melhor, a noite em que nos foi impossível ignorar o que havia de mais puro e sincero dentro de nós. Numa noite na esplanada do Adamastor, que nos mirava com aqueles olhos profundos - dá-me a sensação que em Lisboa estamos constantemente a ser observados por figuras paradas nos seus pedestais -, entre goladas de cerveja gelada e tremoços, com a lua a assemelhar-se a um holofote luzidio, que se reflectia nas águas murmurantes e silentes do Tejo que corria descansadamente para a sua foz, um cenário que não poderia ser mais propício - para além do rio, avistávamos o imponente Cristo-Rei com os seus longos braços abertos, a ponte com os seus fiozinhos de luzes - para eu desatar o nó que tinha na garganta e me libertar do aperto que me estrafegava o peito.
- Joana?! – disse-lhe, interrompendo-a das animadas rememorações da sua infância em Cuba. Da Fonte dos Leões onde se refrescava com as suas amigas nos dias mais soalheiros – nessa altura ainda não havia piscinas na vila – das brincadeiras no Largo da Estação, sempre na curiosidade que a chegada do comboio trouxesse alguma novidade à terra; as tardes passadas a contemplar a planície junto à Ermida de São Pedro, o parque do coreto e as suas feiras, os bailes, etc.
- Sim?!
- Há muito que ando para te dizer…
- Sim?! Diz, diz… – interrompeu-me sofregamente, como se esperasse que o primeiro passo de afoiteza coubesse a mim.
Respirei a noite enchendo o peito de ar, e prossegui.
- Acho que a nossa amizade poderia dar um passo mais adiante…
- É este o passo que ansiavas?
Num ímpeto, puxa-me pelo pescoço e, sem temor, resoluta, prova-me os lábios, uma e outra vez. O meu ritmo cardíaco galopava desenfreadamente. Foi assim, nesse cenário encantador, que nos osculámos pela primeira vez.
Se ao cimo do Chiado foi o Sr. Pessoa que testemunhou e apadrinhou o encetar de uma bela amizade, ali, num dos mais aprazíveis miradouros de Lisboa, como testemunhas da consumação, da fortificação dessa amizade, ficaram o gigante Adamastor, o Tejo, a noite, a lua.
Dali, gaudiosos como crianças, fugimos para a Meca da vida nocturna alfacinha, para a roda-viva do Bairro Alto. Precisávamos de celebrar.


Capítulo III

Eu e Joana éramos felizes. Tínhamos uma relação afortunada em que não havia espaço para arrufos e indelicadezas. Éramos parecidos e tínhamos muitos gostos em comum e jamais deixámos aquietar as batucadas dos nossos corações, do nosso amor. Todavia, o tempo e a idade foram passando, e era altura de começar a perspectivar um futuro próximo. Joana estava a findar a sua etapa de estudante e já pensava no mercado de trabalho. A mim, tinham-se aberto duas janelas importantes e que contribuíram, de certa forma, não de imediato mas sim mais tarde, na viragem da nossa relação. A primeira é que tinha deixado o ninho dos meus pais, na Estrela, e tinha alugado um T2 no Campo Mártires da Pátria, de onde vislumbrava, da minha janela ao acordar, a estátua de Sousa Martins, e as constantes manifestações de devoção ao doutor milagreiro. Morar sozinho tinha sido um capítulo vivencial importante para mim. E a segunda, é que conseguira ingressar no Hot Club, um sonho que eu nunca desprezei, muito por culpa das rodelas negras de vinil de Chet Baker e Miles Davis, que giravam na aparelhagem obsoleta do meu pai. Tinha uma colecção digna, o meu pai. Durante anos, aos sábados, madrugou e rumou à Feira da Ladra em busca de raridades. Eram escassas as vezes que vinha de mãos a abanar. Eu era miúdo, mas recordo-me como se fosse hoje. Ele entrava em casa com o vinil debaixo do braço e corria logo para a aparelhagem. Vinha sempre tão contente, que parecia ter-lhe saído a taluda. Limpava o grande achado com a escova própria para o efeito, e moldava-se no cadeirão a deleitar-se com o som que saía das colunas. Eu ficava de joelhos na carpete, com os meus olhos de menino postos nele, a tentar assimilar aqueles devaneios musicais, que para mim, na altura, soavam estranhamente aos ouvidos. Bons tempos aqueles, que passei na Estrela.
Mas também foram bons os tempos que passei na minha casa alugada, sozinho com a Joana. A sua tia, sendo uma mulher dada a liberdades, de quando em quando, vendava os olhos e deixava-a dormir lá em casa. Nesses tempos, as visitas de Joana à casa de seus pais eram menos regulares. Havia sempre a escusa de que tinha de estudar. Uma pessoa quando ama, arranja sempre uma justificação para dormir no mesmo leito com o amado. E era bom acordar ao lado de Joana. Era bom sentir-lhe a respiração de noite, enquanto dormia, e o calor do seu corpo, colado ao meu, depois de saciarmos as nossas vontades.
Certa noite, durante um jantar surpresa que lhe preparei com devoção, onde nem a chama apaziguadora de um par de velas faltava, perguntei-lhe:
- Já pensaste o que vais fazer depois de acabares o curso? Já não falta muito…
- Pois é meu amor, está quase. Ainda não ponderei bem sobre o assunto. Tenho me aconselhar com o meu travesseiro. Mas talvez regresse a Cuba e lá tentarei arranjar trabalho. É lá que estão as minhas raízes. – replicou-me.
Foi nessa altura, entre momentos de pura felicidade, que começámos a questionar o destino da nossa relação. E foi a partir desse dia, que começámos a viver o nosso amor com um amargo sabor a despedida.


Capítulo IV

Entretanto Joana acabou o curso com sucesso. A sua estada em Lisboa estava a terminar.
Tínhamos uma semana para matar saudades, antes que ela tornasse à sua vila onde uns pais saudosos reclamavam a sua filha para lhe darem as felicitações, depois dos anos de esforço e dedicação. O deles, que a abonaram enquanto estudante, sabe-se lá com que dificuldades e privações, e o dela, que conseguiu levar a bom porto as suas tarefas estudantis, as suas convicções.
Subíamos o elevador de Santa Justa, contemplávamos a vista privilegiada, a sul sempre o Tejo, e desembocávamos no Largo do Carmo, onde um amontoado de varões reformados se reuniam à volta de uma mesa, a partilhar uma sueca ou um dominó, esquecidos do passado da praça e das movimentações militares de 74 que, porventura, terão sido protagonistas. O Guarda-republicano mantinha-se imóvel na sua sentinela, tal como as ruínas do convento. Nessa tarde, numa esplanada (procurávamos sempre boas esplanadas) dessa recordável praça, depois de termos passado tempos e tempos a conversar sobre a importância daquele lugar para o nosso povo, onde um brasão se confunde com a calçada com a inscrição “A Salgueiro Maia, lembrando o 25 de Abril de 1974 – Homenagem da cidade de Lisboa”, inoportunamente perguntei-lhe.
- E agora nós? Como vai ser?
- Vamos ter de viver com a distância que nos separa – disse-me.
- Achas que o nosso amor vai resistir a essa distância?
- Apenas estamos separados por duas horas de distância. Basta querermos. O futuro arranjar-nos-á uma solução à altura dos nossos desejos.
- E Lisboa? Não ponderaste ficar por cá? Sempre temos a minha casa, onde cabemos bem os dois – insisti.
- Acho que não, pelo menos por agora. Lisboa é uma cidade maravilhosa, cativante e inspiradora, não falta nada por aqui, mas é lá que tenho tudo, os amigos, a família, os meus sobrinhos que mal os vejo crescer… E a minha Luna, tenho tantas saudades da minha cadelita.
Eu até compreendia Joana, mas custava-me aceitar essa sua ideia. Todavia, sempre vivi na esperança que ela virasse as ideias e ficasse por cá.
Não tardou o dia em que lhe fui dizer adeus ao terminal. O autocarro arrancou alcatrão fora e eu fiquei ali quedo e absorto. Confesso que não foi fácil e que me  humedeceram os olhos. “E agora, como vai ser? Ela mais alguma vez virá?”, pensei.
A resposta tive-a duas semanas mais tarde, quando dei comigo naquele mesmo lugar, a contar os minutos para a sua chegada, para lhe oferecer a mão à saída do autocarro, para a ajudar a levar as malas até ao táxi, que serpenteava pelo trânsito, agora até ao Campo Mártires da Pátria, ao som de Quim Barreiros, Emanuel ou o hino do Benfica.
Durante quase dois anos, ela vinha cá uma ou duas vezes por mês, conforme podia. Eu nunca cheguei a ir lá, porque não teria onde dormir. Os seus pais, com certeza não iriam dar guarida ao namorado da sua única filha, pelo menos assim pensava. E nesses interregnos, escrevíamo-nos e falávamos ao telefone durante horas a fio. Aparentemente, tudo parecia estar no bom caminho. Até que eu insistia:
- E Lisboa? E Lisboa? Não pensas em te mudar para cá, para ficarmos juntos?
Acho que foi essa minha perseverança que fez com que as suas vindas a Lisboa fossem cada vez mais espaçadas. Talvez se assustasse com a eventualidade de um passo mais firme. Pressentia que, paulatinamente, o nosso elo de ligação se estava a desconjuntar. Que o nosso amor se estava a desvanecer com a distância. E foi por palavras redigidas, talvez por Joana não ter tido a bravura de me dizer tais palavras num frente a frente, olhos nos olhos, que fria e inevitavelmente, tudo terminou.


Olá Miguel!

Gosto muito de ti. Juro que gosto. Sem dúvida que passámos momentos únicos nessa linda Lisboa, que não é minha. Mas é aqui que eu pertenço e jamais teria coragem de sair daqui de uma forma definitiva. Os laços que tenho por aqui são demasiado fortes. O meu cordão umbilical está preso a esta terra de casas caiadas e de gente que me viu crescer e que me diz olá quando passo. Aqui nunca me hei-de sentir perdida. Este é o ar que quero respirar e é este o céu que eu quero olhar antes de dormir. Eu sei que tu acabarás por me compreender. Por isso, acho que chegou o tempo de não adiarmos mais o que é inevitável. É tempo de procurarmos o nosso destino, cada um no seu lugar. É tempo de sermos felizes e de guardarmos os bons momentos no coração. Jamais te esquecerei, acredita. Jamais esquecerei o quanto fui feliz em Lisboa, contigo.

Com muitas saudades
Um beijo
Joana

PS: dá um abraço ao Sr. Pessoa por mim


Capítulo V

Mesmo depois do término entre nós, continuamo-nos a corresponder. As cartas iam e vinham assiduamente. Todas as semanas, metia a chave à caixa do correio, e lá estava a carta de Joana, sempre de papel cheiroso, que eu aspirava sofregamente, numa tentativa de reconforto. Subia as escadas apressadamente, desenvelopava-a e lia-a avidamente. Depois de a ler uma série de vezes, tentando descobrir uma nesga de esperança nas entrelinhas, guardava-a junto às demais.
Os anos voaram depressa, e fui olvidando o amor da minha juventude. Comecei a andar demasiado ocupado e mal tinha tempo para pensar nela. O tempo sempre cura estas coisas. Sempre foi um prodigioso curandeiro de maleitas afectivas. Entretanto, tinha-me enamorado de novo. Desta vez, por uma rapariga da minha cidade e com a qual me casei na Igreja do Santo Casamenteiro e Padroeiro de Lisboa.
Na última carta que Joana me escreveu, esta já não tinha o perfume de outrora, dizia-me que casara, que esperava o seu primogénito, que arranjara um emprego que a realizava, e que, coincidência das coincidências, o seu marido também gostava de jazz, mas não tocava como eu. Fiquei feliz por ela. A sério que fiquei.
Intriga-me deveras, porque é que decorridos tantos anos me estou a lembrar deste passado remoto. Talvez porque tenho em cada canto da cidade uma recordação com Joana, talvez porque estou aqui no cimo do Chiado sentado ao lado do senhor do chapéu, do seu ídolo. No fundo, ela tinha toda a razão quando dizia que as distâncias encurtavam as relações e que lhe era difícil desligar-se das suas raízes, da sua Cuba. E passada esta distância de tempo, corroboro os seus argumentos. Tenho a certeza de que a decisão que tomou me custou a aceitar na altura, mas hoje sei que foi a melhor para ambos. Agora compreendo-te Joana. Porque eu, tal como tu, também era incapaz de largar as minhas raízes. A minha eterna Lisboa.


2005



1º Prémio de Conto Livre - XXVI  Jogos Florais do Algarve 2006

2º Prémio da 8.ª Edição do Concurso Literário Dr. João Isabel 2007 - C. M. de Manteigas
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Tim_booth
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Queria escrever à velocidade com que penso.


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« Responder #1 em: Janeiro 02, 2009, 03:52:57 »

Agradável, sim, sem dúvida. Não consigo dizer muito mais porque me é demasiado próxima, o juízo fica toldado. É, talvez, um pouco previsível o enredo, comum - o que não é necessariamente mau - mas interessantíssimo num sentido menos óbvio: o sentimento de pertença que é o mesmo a Cuba e a Lisboa. Só uma coisa que não gostei, hoje estou picuinhas, é verdade, o primeiro parágrafo do capítulo V tem demasiados advérbios de modo. De resto, impecável.

Cheers
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Luis F
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Nas asas do sonho, escrevo...


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« Responder #2 em: Janeiro 02, 2009, 09:36:07 »

Um excelente momento aqui no escritartes, originando um excelente conto.

Gostei de ler e solicito mais...

Com amizade
Luis
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Janeiro 03, 2009, 19:11:06 »

Gostei de ler este conto. O inevitável estava desde o início apresentado. As raízes e a distância a evitarem o crescimento do amor.
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Goretidias

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britoribeiro
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« Responder #4 em: Janeiro 03, 2009, 19:43:51 »

Alem de um excelente conto proporcionaste-nos um passeio por Lisboa, levados por mão conhecedora. Parabéns!

Abraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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