britoribeiro
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« em: Março 02, 2009, 21:55:41 » |
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Tentou mover a perna, mas ela não lhe obedeceu. Agarrou a grade metálica que contornava a cama, fez força para elevar o tronco. Apenas um pouco, o suficiente para mudar de posição que lhe aliviasse a mortificante dor nas costas. Na cama seguinte, do outro lado do biombo, ouviu a tosse seca do senhor Carvalho, que já ia na segunda trombose. Desviou os olhos para o relógio pousado sobre a mesinha cabeceira metálica e aguardou pelas visitas que iriam entrar a conta gotas, uma de cada vez. Eunice, a enfermeira de turno, passou apressada, foi dar a injecção ao paciente junto à janela e no regresso abeirou-se da cama, sorriu como só as enfermeiras sabem fazer, subiu-lhe a almofada, compôs o lençol, deu-lhe uma palmada cúmplice na perna que não sentia e acenou-lhe uma despedida. Um jovem de fato escuro entrou no quarto com ar carregado. Pousou as mãos sobre o barão dos pés da cama. - Então pai, estás bem? - Estou… e vós? - Também… A mãe está lá fora, vai subir com a Lurdes porque não está em condições de andar sozinha. - Tem tomado a medicação? - Tem… Olha, eu vou andando para elas subirem… precisas de alguma coisa? - Não… – responde o AlÃpio para o filho, que já virava as costas para se afastar. Enquanto esperava pela mulher e pela nora, pensou nas voltas que a vida dava. Tinha afrontado todos os perigos que um pescador podia sonhar, amealhara bom dinheiro ao longo de quarenta anos de trabalho e quando começava a gozar a reforma, via-se atirado para a cama do hospital com um quadro clÃnico reservado e um futuro pintado em tons cinzentos. Tivera um acidente vascular cerebral e só a pronta intervenção do INEM e da equipa que o assistira no Pedro Hispano evitara o pior. Passou uma semana em coma, lentamente recuperou as funções vitais, excepto o braço e perna esquerda que continuavam paralisados. - Força de vontade, senhor AlÃpio, força de vontade – rogara-lhe a neurologista. Era fácil de dizer, ele estava para ali atirado e o coração apertava-se não só com as suas maleitas, mas com a Rosa que a cada dia estava pior. Casados há mais de trinta anos, era uma moça viçosa, vistosa e vaidosa, trabalhadora como poucas, palavra fácil e ideias no sÃtio. Ele andava ao mar na “Jerusalémâ€, uma traineira que se dedicava à sardinha e quando estava em terra, como muitos outros, deambulava pela lota de Matosinhos a ver o movimento da compra e da venda. Logo os olhos lhe caÃram na jovem peixeira que ajudava a Tia Ana do Refojo. Era a mais desembaraçada, amanhava o peixe num abrir e fechar de olhos, nunca a cliente ficava sem conversa. Freguesa que lhe caÃsse nas mãos saÃa bem aviada… e era bonita a rapariga! Cortejou-a, ela aos poucos foi aceitando as suas atenções, namoraram e casaram ao fim de dois anos. A sardinha era uma vida de miséria, embarcou no “Madalena†um bacalhoeiro de Viana, junto com outros conterrâneos ancorenses. Pagou a tropa com campanhas de bacalhau, com muitos doris carregados, com muitas horas ao frio, perdido no nevoeiro traiçoeiro que tudo engolia. Passou uma semana no Gil Eannes, mal do estômago que tudo rejeitava. - Isso são nervos, rapaz - dissera-lhe o enfermeiro Marques a bordo do navio hospital – São as saudades da rapariga que deixaste em terra. Ainda fez mais três viagens e passou a salto para França, onde se juntou à irmã e aos primos que tinham nascido pescadores e agora eram pedreiros e estucadores. Trabalhou algum tempo na construção civil, em Paris, mas aquela vida não lhe estava destinada. Longe do mar, longe da Rosa, longe do Carlos, o Carlinhos que eram os olhos da mãe e o cabelo do pai, ondulado, negro como o carvão. Regressou a Matosinhos, à sardinha, à s intermináveis redes de cerco, ao bulÃcio da lota, aos pregões das peixeiras, onde a sua Rosa continuava a ser a voz que mais se escutava. Como ele gostava de a ouvir embalar o pequeno Carlos, como ele se deleitava a vê-la organizar a vida na casinha onde moravam, nas traseiras da casa do sogro. Um dia correu a notÃcia que precisavam de pescadores para a Alemanha, ainda mais longe que a França. Três dias de comboio até Cuxhaven, uma terra perdida no norte da Alemanha perto da fronteira com a Dinamarca, onde um navio fábrica o aguardava para se fazerem à pesca no Atlântico Norte. Meia dúzia de alemães a mandar, o resto da companha distribuÃda por portugueses e espanhóis. Chorava todas as noites no escuro do camarote, de raiva, de saudade, de cansaço. Todas as madrugadas se levantava a pensar se iria aguentar a lide do convés, por entre as vagas alterosas, os cabos retesados que seguravam as portas de arrasto e os sacos que se recolhiam cheios de peixe avulso, para ser engolido no ventre do grande navio. Por lá aguentou vinte e cinco anos, enquanto via os filhos crescerem, nas férias escassas, entre duas viagens de mar. Dois rapazes que eram o seu orgulho e por eles se sacrificava, longe de casa e da Rosa, que continuava a negociar peixe na lota de Matosinhos. Meteu os papéis para a reforma, a Alemanha também já abatia barcos ao efectivo e as cotas de pesca no Atlântico norte tinham sido drasticamente reduzidas; a Rosa largara a banca do peixe e viviam tranquilos, tendo os netos como centro das suas atenções. O mais velho jogava nos iniciados do Leixões, o outro estava mais virado para a música e aprendia piano. O mais novo, filho do Américo, frequentava o infantário e todos os dias era um fadário, ir buscá-los à escola, dar-lhes a merenda e levá-los aos treinos ou ensaios. Uma vez por outra, ia até ao porto beber uma cerveja com os velhos camaradas, discutir o jogo da semana, os penaltis que ficaram por marcar, as injustiças do campeonato, aquele palpite para a próxima jornada. A Rosa sentiu a falta do convÃvio diário na lota e a responsabilidade do seu homem todos os dias em casa. Fez a primeira depressão, fez a segunda e em breve teve de ser internada no Magalhães de Lemos. Durante dois anos, ora melhorava e fazia uma vida quase normal, como apresentava sintomas depressivos e tinha de ser cuidada como uma criança. Foi durante uma dessas crises, que o AlÃpio, desesperado com a situação, teve um AVC que o atirara para o quarto 14 de neurologia, no Hospital Pedro Hispano. (continua)
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