gdec2001
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« em: Å¿etembro 05, 2018, 17:23:40 » |
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A primeira visita
Esperavam-me todos no fundo da escadaria interminável. Avancei o pé direito e atirei-me suavemente no espaço; planei alguns segundos antes de atingir o pavimento atapetado com uma muito ligeira flexão que não alterou a dignidade do meu porte. Rodearam-me imediatamente exprimindo por leves risos a alegria que lhes dava a visita da minha excepcional personalidade. O director avançou um pouco e disse depois de uma saudação discreta : Recebemos com jubilosa surpresa a notÃcia da vossa visita. Ela é para nós motivo de grande felicidade que saberemos merecer, estai certo. Agradeço-vos em nome de todos e dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos. Aplaudi com um curto movimento de cabeça; a comoção que me provocaram aquelas nobres palavras impediu-me de responder imediatamente. A referência aos filhos dos filhos deles intrigava-me no entanto. . Depois que consegui articular o meu discurso seguimos por um comprido corredor., Reparei que Ãamos perdendo alguns companheiros absorvidos, ao que parecia, por vagos corredores abertos regularmente nas paredes laterais que levavam, conjecturei, aos aposentos interiores. Fiquei só com o director que não cessava de dar-me explicações de tudo e de nada. Comecei a dar-lhe atenção quando entramos na sala principal. Dizia : É nossa convicção -hipótese nunca antes formulada- que a única diferença sensÃvel entre os homens e os animais é o uso da fala. Suspendeu-se para que eu aprovasse. Aprovei . Propomo-nos eliminar essa diferença e contribuir para o progresso da humanidade acrescentando-a, por assim dizer, com o imenso potencial daqueles a que chamam irracionais. Sorriu sem ironia e suspendeu-se para que eu aprovasse . Aprovei. Temos aqui alguns exemplares de antropóides superiores de diferentes espécies, Apercebi-me vagamente deles de um lado e de outro da sala subdividida em pequenos compartimentos envidraçados contendo , além de outros objectos menores, um leito e uma árvore bastante esquemáticos. Na verdade pareceram-me todos macacos vulgares embora, repito, apenas vagamente me tivesse apercebido deles. O director apresentou-me um à direita que, sem ser o maior, era o mais visÃvel . O único que eu via realmente. Explicou-me : Este chama-se..... Não percebi o nome e tive acanhamento de pedir-lhe que o repetisse. É o nosso melhor aluno e já conseguimos que pronunciasse correctamente o nome dele. Há-de convir que não é um nome fácil de pronunciar. Calculei que sim, que não fosse, e exprimi-lho com um gesto . Olhei para o macaco e surpreendi-lhe um rápido pestanejar que me era especialmente dirigido. O director, notado-o, retirou-se delicadamente para uma sala próxima de onde provinha um ruÃdo regular. Aproximei-me. Aquele cujo nome não pude perceber, olhava em volta receosamente. Os seus lábios pronunciavam palavras que não consegui compreender imediatamente. Dizia: Salve-nos. Estamos presos e não nos deixam dizer uma palavra. Notando que o director se aproximava continuou : Recebemos com jubilosa surpresa a notÃcia da vossa visita. Ela é para nós motivo de grande felicidade que saberemos merecer, estai certo. Agradeço-vos em nome de todos e dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos. Comoveram-me as suas últimas palavras mas fiquei intrigado com a referência aos filhos dos filhos deles. Presenteei-o com algumas palavras do meu discurso. O director aproximou-se com um largo sorriso : Jurava que esse malandro tem estado a dizer mal de nós e a pedir-lhe para o ajudar a sair daqui, disse. Faz isso com todos os visitantes mas gosto dele. Note que é o único de quem já conseguimos arrancar uma palavra ; tenho de gostar dele. Pensei que devia indignar-me e chamar à ordem aquele sorridente director mas como aquilo não era nada comigo e a minha intervenção podia ser interpretada como falta de urbanidade, calei-me e assenti com um sorriso . Passamos à sala próxima . Menor, repleta de máquinas e instrumentos. De encontro a uma das paredes notei quatro animais sentados sobre as patas de trás, iguais, imóveis e atentos. A forma caracterÃstica do focinho, como uma rodela de limão, permitiu-me identificá-los sem surpresa. Apurei os ouvidos à s explicações do director . Mostava-me uma complicada máquina ao centro. É um electroencefalógrafo quase vulgar . Sabe que, normalmente, os elétrodos são apertados de encontro à cabeça do paciente mas como todos os tecidos, e especialmente o ósseo, são absorventes das ondas cerebrais, praticamos nos nossos hóspedes uma antiga operação que nos permite colocar os elétrodos em contacto directo com o cérebro. Apontou para um recipiente contendo algumas calotes cranianas e interrompeu-se sorrindo. Pareceu-me que devia sorrir mas antes que o conseguisse, continuou: É pena que ainda não tenhamos encontrado maneira de nos servirmos correctamente desta maravilhosa máquina, Se anestesiamos o paciente não obtemos senão fracas emanações cerebrais, se operamos sem anestesia obtemos uma reacção demasiado viva. Creio porém, disse, que estou em vias de encontrar a solução . Nesta câmara, apontou-me, está um sÃmio, sem crânio em absoluta imobilidade alimentado artificialmente. Espero que a incisão operatória sare completamente e , então, poderei observá-lo ali. É muito difÃcil conseguir, morrem observou. Não me foi difÃcil admiti-lo. Entretanto os quatro animais que eu havia notado começaram a agitar-se tremendo e ronronando surdamente. Uma luz apareceu numa tela em frente que escurecera. Olhei e distingui perfeitamente três letras luminosas : S.O.S . Alarmei-me um pouco mas o director explicou tranquilamente: Mais um terramoto ou qualquer outra grande catástrofe, Os nossos aparelhos são tão sensÃveis que podem captar qualquer pedido de socorro mesmo que puramente mental desde que seja feito simultaneamente por um certo número de mentes angustiadas . É pena que não seja da nossa competência prestar qualquer ajuda, ajuntou tristemente. A luminosidade das letras diminuÃa . Estão a morrer, disse. Se os tivessem salvo as letras ter-se-iam apagado de uma só vez. Ficamos a assistir. Quando a tela ficou vazia indiquei que acabara a minha visita. Atravessei a sala grande lançando um olhar de esguelha para ver se via aquele cujo nome não pude perceber. Não o vi. Depressa chegamos ao corredor onde recuperamos os passageiros que saÃam regularmente dos seus aposentos. Chegados junto da escadaria o director adiantou-se e disse : Recebemos com jubilosa surpresa a notÃcia da vossa visita...,etc....etc... . Respondi-lhe. Quando acabei estendeu-me a mão com um sorriso de cordialidade. Apertei-lha a medo e não consegui retirá-la depois. O director olhava-me com um sorriso de cordialidade. Com a mão livre agarrei-me à s escadas e arrastei-me por ali acima, interminavelmente . O director seguia-me de rastos sorrindo e todos sorrindo agarrados uns aos outros arrastavam-se atrás de mim. Cheguei ao cimo ofegante. Num supremo esforço libertei-me do director empurrando-o com o pé. Quando chegaram ao fundo levantaram-se prestos e acenaram-me amistosamente. Levantei-me e acenei-lhes do mesmo modo .
Geraldes de Carvalho de “O caminho†Lourenço Marques 1974 2ª edição - Lisboa 2013
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