Nação Valente
Contribuinte Activo
Offline
Mensagens: 1286 Convidados: 0
outono
|
|
« em: Outubro 13, 2018, 16:03:36 » |
|
Conheci apenas um avô. O outro já tinha partido para outros mundos, quando nasci. Mas não garanto que não o tenha encontrado, noutros horizontes, e que não me tenha aconselhado a entrar na sua famÃlia, até porque herdei o seu nome e apelido. Seja ou não seja, os factos que registo da memória, prendem-se com as vivências com o avô José Lagos, durante o tempo que partilhámos. O meu avô Zé, quando começou a nossa convivência, vivia num lugar ermo, um pouco afastado da povoação. O edifÃcio mais próximo era a escola primária, num cabeço gémeo da sua casa. O avô Zé era bastante sociável, mas tinha, ao mesmo tempo, espÃrito de eremita. Prezava a sua privacidade longe de qualquer vizinhança. Não me lembro do quando nem do porquê, de ter começado a viver na casa do avô a tempo inteiro. Certamente, foi depois de ter começado a frequentar a escola primária. Talvez pela proximidade da mesma, talvez por ma darem ali mais atenção e importância que me davam na casa dos pais, sempre muito ocupados, com as suas tarefas. Talvez me tenha mudado, quando o novo professor primário, vindo de muito longe, perguntou aos alunos , quem vivia naquela casa. Um primo meu, mais expedito respondeu “é o meu tioâ€, mas um outro colega, acrescentou “é o avô do Zéâ€.
O professor encarregou-me de ir pedir um copo de água. Na altura não existia água potável na escola, nem água engarrafada. Assim, cada vez que o professor tinha sede, lá ia buscar a água que o dessedentava, no intervalo de outras bebidas mais calóricas, que bebia a bom beber. A avó reservou até um copo especial, de entre os poucos que possuÃa. A água vinda de um poço e guardada em vasilha de barro, estava sempre fresquinha, e não tinha aditivos quÃmicos. Penso que mais que sede, o professor viciou-se naquela água, que era dada com muita boa vontade. Só uma vez percebi que o avô a deu a contragosto.
Estávamos em 1958, no dia do acto eleitoral para a Presidência da República entre Américo Tomás e Humberto Delgado, em que a votação decorria na escola primária. Já a meio da tarde, apareceu o professor a pedir um copo de água, estava, o meu avô, a trabalhar no seu mester de carpinteiro, completamente abstraÃdo do acto de votar. O avô, republicano convicto, que assistira ao nascimento da República e fizera parte da Guarda Republicana, sabia que as eleições não passavam de uma fraude. As listas da oposição nem estavam na mesa de voto, e quem quis votar contra o regime, recebeu as listas na noite anterior, colocadas por debaixo das portas. O professor, um homem do regime, bebeu com gosto o seu copo de água, e a seguir dirigiu-se ao avô: -Então senhor José, já foi votar? -O avô que nunca teve essa intenção embatucou. - Não, senhor professor, tenho estado muito ocupado. -Então não se atrase, disse o professor, fico à sua espera. O avô ficou pior que cão raivoso. Parou o seu trabalho, atirou com as ferramentas ao chão, e disse em altos gritos: -Eu vou lá, contrariado, e é por causa deste, referindo-se à minha pessoa. Claramente, sabia do poder de apoiantes do regime, e não quis arriscar algo que me pudesse prejudicar.
Quando concluà o ensino primário, o senhor professor conseguiu que um seu amigo, que lhe devia favores, e que possuÃa, numa aldeia próxima, uma pequena escola, com paralelismo pedagógico, me aceitasse como aluno, sem pagar a mensalidade elevada e incomportável, o que na altura me desagradou, pois queria ingressar no mundo de trabalho, como era comum naquela época. No entanto, foi a oportunidade de seguir um pouco mais além.
O nosso quotidiano era difÃcil, e a instrução constituÃa uma porta para sairmos daquele microcosmos de pobreza. Pôr em causa os detentores do poder e do saber, não era aconselhável. Como hoje se diz, e para o que pensava ser o meu bem, o avô engoliu um grande sapo. Tanto mais, que essa forma de estar, nunca tinha feito parte da aventura que foi a sua vida, como se verá. Um acto que me ficou sempre presente na memória, porque no nosso dia-a-dia, não deixa de estar presente, o que chamamos de passado, e que nos permite vivê-lo noutra perpectiva Palavra de, Cota-diano
|