marcopintoc
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« em: Agosto 07, 2008, 22:53:08 » |
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Fui incauto no cálculo do tempo que demoraria a chegar a casa. A eminência do fim-de-semana prolongado aumentou, consideravelmente, o volume de tráfego. Não vou chegar a tempo de ver o jogo. É isso que desejo desde a hora de almoço; uma noite sem outras pessoas sentado à frente do televisor. Todavia o plano não está a correr bem. Demoro toda a primeira parte do desafio entre a primeira e segunda velocidade e o pisar repetitivo da embraiagem. Um soco no volante acompanha o primeiro golo do Atlético Clube de Nossa Senhora; avizinha-se um fim de carreira ao pior penteado que já passou no futebol nacional. Quando estou, finalmente, a parquear a viatura na garagem do meu prédio o telefone toca. Um olhar ao visor de cristais lÃquidos identifica que a chamada provêm de Mituxa, nome muito mais colunável que Maria PatrÃcia. Antes de atender a chamada revejo mentalmente a lista dos diminutivos de todas as minhas supostas amigas e constato que todos os nomes de guerra contêm um Xis. Na minha mente forma-se a imagem de uma matilha de “poodles†de latir irritante, pêlo ridiculamente aparado e um cio imenso. Inspiro e primo a tecla verde: - Olá minha querida. Mituxa grasna no seu estilo afectado; dicção nos limiares da trissomia do cromossoma vinte e um : - Lindo . Está bonzinho? Então? Vem à minha festinha? Embora o tom de voz procure um certo estatuto social, “vulgus†de gente bem , as aparências iludem. O cenário do evento é uma vivenda geminada algures numa das freguesias mais aborrecedoras do concelho. Espirituosos em promoção, “snacks†ultracongelados e um serviço Vista Alegre comprado em quarenta e oito prestações. A fauna será constituÃda por vendedores de automóveis em uniforme Sacoor , gerentes de sapataria de centro comercial, trintões e trintonas ainda embrenhados em pós-graduações e mestrados que findarão no balcão de alguma fusão bancária. As divorciadas quarentonas, famintas de diversão para compensar década e meia de fogão e sexo-tédio na posição missionária. Alguns alérgicos ao compromisso, habitualmente homens, habitantes de estúdios minúsculos que desconvidam a qualquer partilha . Integro-me nesta última classe. Muito álcool, Drogas nada, conversa merda. Não me apetece conviver com a pantomina do “ser bem e divertidoâ€. Estou cansado, furioso e com alguns pensamentos mais nefastos na zona da nuca. Tento declinar o convite: - Querida. Desculpe mas não posso. Estou exausto. Tive um dia de doidos! O ruÃdo que chega da rede GSM é profundamente alto e agudo. O melhor nome para o classificar é ganido. Mas, na verdade, o som é mais semelhante ao “sample†da agonia de um suÃno: - Oiça ! Não me vai fazer isso! É a minha festa do “Halloweenâ€, um baile de máscaras girÃssimo – contrapõe exaltada. Confesso que a palavra festa despertou algo em mim. No fundo se sou membro de tal agrupamento de personagens é porque algo em mim é supérfluo, fútil e tendencialmente idiota. Na verdade pondero seriamente ir, depois do jogo. Mituxa instrui-me, tomando o meu silêncio como concórdia: - Tem que vir mascarado de algo horroroso. Está a ver? Tem que fazer medo à s pessoas. Imenso medo. Ora ai está uma temática que me agrada. Termino a conversa rapidamente pois os preparos são demorados: - Sou óptimo nessas coisas. Imenso medo, que máximo. Até logo, beijinho! Botão vermelho, elevador, casa. Nos poucos metros quadrados de impessoalidade Ikea a que chamo lar desfilo o ritual da metamorfose. Sistematicamente, sem descurar o mais Ãnfimo detalhe, a minha personagem da noite de bruxas e outras coisas maléficas ganha forma. Antes de sair, um olhar no espelho. Estou óptimo. A matar. Chego exactamente duas horas e quarenta dois minutos após o fim do jogo. Estaciono o carro junto a urbanização. A porta da vivenda está fechada. Conto os automóveis. Estimo entre quinze a vinte almas no interior. Após alguma insistência na campainha consigo que Mituxa surja na ombreira da porta. Está vestida de Morticia Adams. É bastante feia mas tem um corpo apetitoso, com realce para uns seios recauchutados que o decote do vestido expõe generosamente. Perscruta-me com o olhar, de alto a baixo, e censura vivamente: - Que raio de máscara é essa? Algo horroroso é um morto-vivo, uma múmia, o Drácula, essas coisas – abana a cabeça – e você vem vestido de ...empregado de talho? Abrilhanto um sorriso plagiado da página quatro da revista “Carasâ€: -Eu estou mascarado. Tal e qual como você me pediu. Algo horroroso! O “flute†de espumante é agitado a curta distância do meu nariz: - Dahh .... Mascarado de quê? O horrÃvel homicida da charcutaria do Jumbo? Aproximo-me, beijo-a de forma mais afectuosa que o costume, a quatro milÃmetros da cútis, e acaricio a zona onde se situa a carótida. Abato o olhar sobre os seios empinados e inquiro-me se a silicone terá algum efeito sobre o paladar das carnes: - Alexander Pichushkin. O “serial killer†russo – esclareço – Já ouviu falar ? O rosto que já merecia uma intervenção plástica tenta dissimular a ignorância e contesta: - E qual é a piada disso? De facto a sua conduta vital apresenta-se bem saliente no gasganete anoréxico. Uso o polegar para avaliar a espessura da artéria antes de responder: - Vai ter querida , uma imensa piada . Percebe? Minha bela torre branca. A mensagem atravessa sem efeito o crânio oco. Com um gesto de desprezo vira-me as costas e bamboleia-se de regresso à improvisada sala – pista – disco – bar onde um “groove†ligeiro mistura o gelo nos copos. Entre apertos de mão e mono-beijos faço o inventário de cabeças. Dezasseis. Será necessário recorrer a alguma forma de imobilização de massas antes de iniciar a tarefa. Desculpando-me na incerteza de ter estacionado correctamente o automóvel regresso ao exterior. Aberta a bagageira, contemplo embevecido a minha bela colecção de ferramentas. Tenho particular orgulho numa excelsa serra eléctrica de grande potência. É usada por equipas de emergência em fogos florestais. Corta tudo. A pressa, ou vagar, na incisão dependem apenas do sensÃvel controlo de velocidade e da arte do operador. Selecciono uma granada de gás atordoante e coloco-a no bolso das calças. Retorno ao espaço festivo, animado agora pela batida lenta dos “Massive Attackâ€. Ao caminhar entre os meus pares sinto que uma erecção se formou e que salivo mais abundantemente No interior do soberbo avental de cabedal, digno do mais nobre açougue, sinto o toque frio e erótico do grande cutelo que é usado para o desmembramento. Tenho sede. Antes de começar o que me traz aqui vou beber um copo, dançar um bocado.
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