por vezes a vontade da
velhice, sentar
no cimo do monte e tomar
conta do silêncio
- valter hugo mãe, a cobrição das filhas
Faltará pouco para
a cobrição das filhas chegar a estatuto de livro raro, se é que já não o é. Nas livrarias não existe, na editora está esgotado, não se sabe de nenhuma reedição prevista.
a cobrição das filhas, de valter hugo mãe, é quase um tesouro. Tesouro pelo objecto, preciosidade pelas letras.
Inquietante. Poderia defini-lo assim. Luís Adriano Carlos, no posfácio, relaciona este livro aos infernos de Dante, Sade e Lautréamont, o que, se interpretado como uma definição aproximada, é bem melhor.
A coerência, de que já tinha falado, nos livros de poesia de valter hugo mãe acentua-se, na verdade, evolui de simples relação para a quase narrativa. São mães e filhas que falam, com todas as suas diferenças e todas as suas proximidades. Falam todas como uma. É um livro plural. Somos, fazemos, rezamos, as falas são uníssonas. Sente-se claramente a divisão da mulher em dois grandes grupos, as viúvas - resignadas, cansadas, quase nostálgicas - e as filhas - violentadas, violadas, carcaças que mexem.
As imagens alternam entre violentas, pesadas, repugnantes quase, “eles matam-nas de imediato, e ficam / a rondar-lhes os cadáveres / até que ressuscitem” (pág. 52), e a calma de querer “tomar / conta do silêncio” (pág. 36). A primeira metade do livro é entregue às viúvas, que “são poços na imagem” (pág. 10) e que falam por elas mesmas. As viúvas só se têem umas às outras, até na morte, “quando queremos morrer recorremos / umas às outras” (pág. 39). São, de muitas maneiras, o oposto das filhas. Percebe-se pela contradição física da viúva “pelugem convexa” (pág. 32) com o “olhar / côncavo” (pág. 44) das filhas. No fundo, duas faces da mesma moeda. A cobrição das filhas pelos “homens [que] / riem como porcos” (pág. 47) é o que, mais do que o tempo, as transforma em viúvas. “o corpo deles / a mutilar o delas como / um animal aflito” (pág. 54). Tornam-se velhas, “matam-nos assim / que adormecem” (pág. 72), transformam-se em viúvas.
a cobrição das filhas é o limbo feminino. valter hugo mãe retratou, em poucas palavras, a mais baixa forma de sexualidade humana, a objectificação do outro. Fê-lo de uma maneira magistral, nua, violenta, quase sádica. A ausência de rima é total e estranho seria encontrá-la nesta obra tão pouco musical. O ritmo é dado pela violência das palavras e não pela consonância. E mesmo sem musicalidade, lê-lo é como ouvir um coro de mulheres. Os poemas, todos eles bastante curtos, são precisos como facas afiadas, cada um deles atinge o ponto certo e corta-nos sem piedade, é impossível não reler cada uma das páginas, marcam.
Não há uma linha fora do sítio, um verso dispensável, um erro que lhe aponte. O que sobra, quando se termina a primeira leitura, é uma estranha mistura de gozo - pela antecipação de inúmeras releituras - e tristeza - como quem tem pena de acabar tão cedo.
Diria de
a cobrição das filhas que é um livro perfeito. Diria mas não digo pelo simples facto de não ter, até hoje, lido nenhum livro com que o possa comparar. Assim digo, com todas as certezas que as minhas leituras me permitem dizer, que este é um livro único. Precioso. Um tesouro.
Nota: apesar de a cobrição das filhas estar esgotado, é parte integrante do volume folclore íntimo.Originalmente aqui.