Vanda Paz
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« em: Agosto 19, 2009, 21:04:38 » |
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O calor atrofiava-lhe a maior parte dos pensamentos, mas sempre que olhava o espelho de prata no mar lembrava-se daquela mulher de porcelana. Tudo em seu redor se tornara misterioso. Os sentimentos eram agora tão ausentes e tão fortes como as marés. As férias ainda íam no início, toda a família tinha resolvido passar uns dias na casa de uma prima a 100 km dali. Todos menos ele, pois teria de ficar a tomar conta do gato, porque a prima é alérgica a gatos. Perfeito, pensou. Serei só eu e a minha solidão. Terei tempo de me encontrar com os primeiros raios de sol na praia, de mergulhar à meia-noite na companhia da lua e de me espraiar pelo por do sol naquela esplanada. Naquela esplanada… talvez não tivesse coragem de lá voltar, não teria olhos para ver a sua mulher de porcelana com outro homem. Ou simplesmente, ouvir o uivar do cão. Na primeira manhã foi arrancar silêncios ao nascer do sol. Caminhou pela praia, deixando que o marulhar das ondas lhe enchesse a alma e o peito. Não foi preciso caminhar muito para perceber que teria de voltar ao encontro daquele olhar. Assim o fez, depois de almoço foi à esplanada beber café. Nada. Nem mulher, nem cão. Só uma ausência profunda naquela mesa. Claro que não se atreveria a entrar naquela rua mais uma vez. Revivia por momentos o que se tinha passado, quando sentiu um calor nos pés. O cão. O mesmo cão que uivara quando ele e a mulher de porcelana eram um só. Não lhe falou, mas permaneceu algum tempo a olhar para o cão, como se tivessem uma conversa muda e um entendimento em comum. O cão levantou-se e parou na beira do passeio. Esperou. O homem seguiu-o. O cão entrou no prédio, o homem, espreitou a mercearia e encontrou o saco da sua porcelana à porta, já amachucado e cheio de pó. O uivar do cão parou-lhe os pensamentos. Ficou sem saber o que fazer. Subiu. Encontrou o mesmo quarto, da mesma maneira que o tinha visto das duas vezes que lá tinha estado. Mas sem a sua porcelana. O cão olhava para ele, triste… parece que ambos tinham exactamente o mesmo sentimento. Resolveu então tentar perceber o que se passava, polícia de profissão e de paixão no peito, era agora evidente que teria de encontrar a sua mulher de porcelana. Passaram o resto da tarde a caminhar, o homem e o cão. Deram a volta àquela pequena aldeia no sul do país duas vezes. O homem tentava perceber alguma reacção do cão. O cão era como estivesse possuído por algo, olhar inquieto, nariz em todo o lado. Parecia saber bem o que fazia. Caiu a noite e com ela o cansaço. Voltaram ambos para casa do homem. O gato, para espanto do homem, enrolou-se no pêlo do cão. O cão não se mexeu. Muito bem, pensou o homem, um mundo de compreensão silenciosa. Afinal, o conviver e os afectos também vivem de mãos dadas neste mundo. A noite ia alta e o calor assaltava o corpo, incomodando, escorriam o suor e a angústia para um peito triste. Assaltou-lhe à memória o primeiro beijo, o calor, o corpo, a nudez, o sexo, os gemidos selvagens e o uivar do cão… Resolveu ir refrescar-se com luar junto à praia. O cão seguiu-o, o gato ficou. Tudo em perfeita harmonia. Percorreram o areal, também por duas vezes, como se tudo estivesse planeado. Deitaram-se na areia e adormeceram. A nitidez do uivar do cão que se estilhaçava nos seus ouvidos, fê-lo acordar estremunhado. Levantou-se de um salto e correu atrás do som. Vendo ao longe o cão a uivar ao mar. Correu com toda a força que tinha. Parecia-lhe ver um corpo deitado na areia aos pés do cão. Não era um corpo. Mas uma manta. A manta que cobria a cama da sua mulher de porcelana.
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