Maria Gabriela de Sá
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« em: Outubro 30, 2013, 18:55:30 » |
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Não! Hoje não quero ser azeda! Quero ser mel em que apeteça pôr o dedo e lamber, soltando um ah! de prazer, que se prolongue no ar por segundos. Porquê amargura, se tenho um livro inteiro só para mim? Nada me fará entrar na acidez do limão, hoje que o Ramon saltará das suas páginas para finalmente eu o conhecer. Não sei se lhe deva dizer que a Frederica é profundamente infeliz, censurando-o também pelo seu silêncio de anos, depois de a filha ter caÃdo da bicicleta. Talvez não precise. A vida já o castigou bastante, quando lhe roubou a única mulher que amou, esmagando-a ali à sua frente sob os rodados do camião cinzento, depois de ela ter ido consultar a vidente Fortuna. A mulher viu-lhe uma morte na palma das mãos. Não sabia de quem, não vira o rosto do condenado. Estela pensou que fosse Ramon e correu para o salvar. Queria mudar o destino. Depois, ali ficou sozinho com o Ramoncito, desconcertado com a sorte. Isso despertou-o, por fim, para o seu egoÃsmo. Helena, a ex-mulher, nunca conseguira tal coisa. Ou talvez aquela tragédia o fizesse confrontar-se consigo próprio e com o medo que o amor sempre lhe inspirou.
Enquanto espero por ele, apetece-me dizer a Frederica que Estela morreu e que tem outro irmão do outro lado do mundo, no Chile de que ela mal se recorda. A mãe obrigou-a a abandonar o paÃs quando tinha simplesmente sete anos, com todas as suas recordações da infância e a caixa da borboleta que o pai lhe dera um dia de presente quando regressou de uma das suas intermináveis viagens. Não! Não lhe vou dizer nada. Seria contraproducente. Ela já sofreu demais, pobre Frederica. Dizer-lhe que o pai praticamente a substituiu no coração pelo rapazinho que nem sequer conhece, seria demasiado duro para ela. Sobretudo quando o seu casamento não passa de uma gaiola dourada de que dificilmente sairá sem sofrer ainda bastante mais. Talvez devesse desmascarar Helena, a mãe, sem mais. Foi ela quem impediu Ramon de ver a filha, quando ela lhe enviou aquele grito de socorro depois de Helena ter decido casar com o Artur. Frederica nunca soube disso. E também nunca suportou aquele padrasto barrigudo e sem atractivos. Infelizmente a mãe também não, embora se recuse a admiti-lo. Ramon foi o seu único amor. De facto, sem jeito para o amor, desiludiu completamente as duas. Abandonou-as demasiadas vezes. Até que ela se cansou...
O melhor é abanar um pouco a Frederica, chamando-a à razão para a estultÃcia de Torquil, o marido. Talvez até nem seja preciso muito, agora que ela começa a perceber que o esbelto e rico rapaz com quem casou não passa de um homem sem escrúpulos. Ainda não sei bem, mas desconfio que até é estéril. Se não o for de nascença, deve ter apanhado uma dessas doenças que o deixou imprestável para procriar seja com quem for. Nem sequer com a amante de anos, com quem trai Frederica na própria cama de ambos. A última vez, foi na única ocasião em que a deixou ir à Cornualha.
Torquil diz que lá toda a gente é demasiado parola para os seus padrões. Disse-o no funeral do Nuno, quando Frederica foi de carro escoltada por um motorista que não passa de mais um espia de Torquil... Enfim, um traste sem ponta por onde se lhe pegue.
É melhor que Ramon se apresse. Já vai sendo tempo de eu o conhecer e de ver ao vivo o homem por quem Helena se apaixonou nas falésias da Cornualha, quando ele tirava fotografias aos recantos onde os contrabandistas escondiam ardilosamente os bens contrabandeados na costa marÃtima. Foi ela que lhe sugeriu essa história para o National Geographic e que lhe foi muito bem paga...
Finalmente Ramon chegou. É um homem moreno, alto, de olhos negros profundos agora encovados, depois de tantas lágrimas derramadas por Estela, e os cabelos, outrora negros, compridos e lisos, continuam longos, mas têm agora tantos fios de prata que o fazem parecer um velho. E é um velho. Pelo menos é assim que se sente: velho. Viveu demais. Mas ainda é bonito e vai com certeza reacender a chama que nunca se extinguiu no coração de Helena. Oxalá ela não sofra...
Isso apesar de eu nu não torcer por ela. Torço por ele, apesar de não aprovar nem um pouco o que ele fez com os miúdos. Concordar que fiquem juntos, seria condená-los aos dois, que não foram feitos um para o outro. Há casamentos que não nasceram para dar certo, e o deles é mesmo o exemplo disso. Tenho de pôr Ramon ao corrente do que se passa com a filha. Digo-lhe que é tempo de se redimir aos olhos dela, depois de catorze anos de abandono, e vou alertá-lo também para as mágoas que a preferência dele pela garota plantou no coraçãozito do Hal. O filho mais novo dele e de Helena sofre, inconscientemente, é certo, por o pai nunca o ter levado à praia quando, vindo das suas imensas viagens, se escapulia com Frederica para lá deixando-o a brincar com o ridÃculo comboio que um dia lhe dera de prenda talvez para o compensar um pouco da pouca companhia que sempre lhe fez.
Mas, agora, a urgência tem a ver com Frederica. Ramon tem de a salvar das garras do marido. Não sem antes saber da paixão da filha por Sam, que já vem da infância, quando o rapaz, já matulão, a salvou do lago onde a garota quase morreu afogada. Ela sempre gostou de homens mais velhos. Devia, talvez, lembrar-se do pai...Freud é que sabia bem destas coisas... Frederica e Sam têm de ficar juntos. E ficam, porque eu não resisti e fui ver o final do livro. Mas era bom que Ramon desse uma mãozinha.
Não sei se vai dar ou não. Se fosse eu a escrever o romance, embora não o fizesse com a mestria da autora, colocava-os nos braços um do outro, punha-os a chorar as lágrimas contidas num e noutro durante aqueles anos todos e ficavam, ele mais ou menos feliz – ninguém poderá ressuscitar a Estela– e ela, a filha, completamente feliz, sem nunca mais precisar de se reconfortar com A caixa da Borboleta. É melhor que o Ramon vá sem demora para Londres…Vou levá-lo ao aeroporto… Entretanto, vou continuar a ler o romance... Nota: já acabei há muito o romance. Helena ficou com o barrigudo do Artur, Frederica casou com Sam e Ramon continuou a cuidar do filho Ramoncito no Chile, onde está sepultada a sua amada Estela.
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