Goreti Dias
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« em: Outubro 15, 2022, 19:50:49 » |
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NO FOJO DAS POMBAS
Em anos que já lá vão, o vento uivava num inverno, verde e negro, rumo à serra de Santa Justa. Já os matos se acotovelavam nos alpendres das casas pobres, numa espera mais do que paciente. Era essencial regrar o aconchego para a cama dos bichos, que o inverno fazia-se frio por aqueles lados e os longos meses de chuva aguardavam oportunidade de se lançarem por aquelas terras. Os ramos caÃdos pelo chão, arrancados à s árvores durante a canÃcula e o outono, tinham sido armazenados bem rente aos pequenos casebres e resguardados da chuva com a tradicional cobertura de caruma dos pinheiros encimada por um “capuz†de palha de centeio. Uma modesta famÃlia vivia como as demais, em nada se distinguindo das outras. O seu sustento era resultado do gado que criava e de uma ou outra cultura nos terrenos junto ao rio. Sobretudo couves e nabos que partilhava com os animais domésticos. José e António eram os dois filhos do casal. O mais velho, José, tinha, pela data a que se reportam os acontecimentos, 43 anos. Casado com uma mulher de poucos encantos, não parecia ser muito feliz. A matrona, que mais matrona ficou depois de ter tido um único filho, não ajudava coisa que se visse nas lides da lavoura. Passava os dias a meter conversa com as outras mulheres que se lhe juntavam no rio Ferreira a lavar a roupa. A sua desculpa para a conversa era sempre a de que esperava que terminasse de corar uma roupa ali estendida em sesta demorada. Muito suja deveria ir, ou muito branca deveria ficar. Oxalá as lÃnguas se pudessem também corar ao sol. Por muito tempo, se possÃvel. Por ela se sabiam, ou se ficavam por verdades, todos os acontecimentos inventados ou acontecidos. Muitas virgens passaram por abortos clandestinos e muitos cornudos foram descobertos nas margens daquele rio! António, mais jovem e solteiro, vivia ainda com os pais. Não via com bons olhos aquela cunhada. As brigas entre o casal eram frequentes e as tareias que o marido dava à mulher também. António era um bom rapaz, mas de ideias fixas. Para ele, José estava casado, tinha que aguentar aquela mulher horrorosa e guardar-lhe respeito, coisa a que o irmão não parecia disposto. À data, o comum era as famÃlias decidirem em que palhas se deitariam os filhos maiores e quem lhes teceria os lençóis. Com resultados mais os menos dúbios! As famÃlias, com bens materiais semelhantes, entendiam que não se riria o pobre de outro tão pobre quanto ele. E se cobririam com manta de igual quilate. Seria… José tinha-se encantado com uma solteirona que diziam fazer pela vida, e pelos montes se encontravam. António tinha-os apanhado já e não ficara bem com o que viu. De irmãos bem dados a irmãos de costas voltadas, foi questão de meses. António contou aos pais, mas foi mal recebido. A mãe, extremosa com um José de comportamento condenável, fez duras crÃticas ao filho mais novo. Dia após dia, a revolta do jovem ia crescendo. As tabernas passaram a ser o refúgio que só tarde abandonava para ir dormir um sono sobressaltado na sua enxerga fria. Aproximava-se velozmente a época natalÃcia. A mãe ameaçou: - Se no Natal não te sentares ao lado do teu irmão… - Não me sentarei! O tom da ameaça e o da resposta não faziam prever umas Festas felizes. As geadas cobriam os matos e as pastagens, a chuva fazia algumas visitas e assim se cumpriam os dias num inverno espreitando do alto da sua importância de Senhor do Tempo. Falava-se que alguns lobos rondavam as últimas ovelhas na serra e a vigilância crescia. António subiu à serra com os seus animais. Aquela manhã de fim de dezembro tinha o brilho falso de um sol doente. Não chovia há dias, mas uma cortina cinzenta surgia no horizonte para se esfumar a seguir. O silêncio era sepulcral. As ovelhas tasquinhavam a erva sem um balido e o cão de guarda tinha-se estirado junto a uma pedra cinzenta. As orelhas sempre afitadas pareciam ouvir o que os humanos não ouviam. De repente, o animal levantou-se e correu ladeira abaixo até aos rochedos mais próximos. António seguiu-o, cauteloso, de cajado na mão. Atrás dos penedos, José e a amásia enrolavam-se num coito destemperado e apressado. Cego de raiva, António só ouvia dentro da sua cabeça a ameaça da mãe. Que injustiça! Que mãe sem alma, agarrada a convenções idiotas, preferindo o seu primogénito apenas porque sim. Só queria deixar de ouvir aquela voz e esquecer a visão do irmão, as zangas… - Eu tenho razão! Eu tenho razão! E a minha mãe não me ouve, não me ama se desculpa todos os erros do meu irmão. Ao perceber que tinha sido mais uma vez apanhado, correu atrás dele serra fora. O vento parecia empurrar o irmão cada vez mais para longe de si. Desvairado. Desorientados, ambos. E apenas teve tempo de o ver despenhar-se no fojo das Pombas! Desamparado. Absolutamente desamparado, a caminho do abismo desenhado na sua frente. Já se não explorava ouro, mas o reflexo nas paredes continuava belo… António embateu no fundo desfazendo-se numa pasta de carne ensanguentada. Os gritos de José ecoaram pela serra. Foram precisos dois jovens corajosos, presos a cordas, para retirarem os restos daquele corpo, envoltos num lençol de linho, o melhor que a mãe tinha. Durante dias, a mãe gritou a sua imensa dor (e remorso, dizia de si para consigo alguém que nas sombras do silêncio guardaria o seu segredo). O filho maltratado e incompreendido tinha-lhe resolvido a questão do Natal. Não se sentariam lado a lado, era certo. E a mãe não precisaria de exercer a sua vingança sobre o filho. O perdão do seu anjo morto ficaria registado a sangue no lençol de linho que as mãos maternas tinham tecido. Mas ela jamais seria capaz de o ler. Não que desconhecesse os sinais ali pintados. Mas não conhecia a bondade da alma que tem olhos capazes de decifrar tudo. Aquela mãe arrastou a sua loucura tempo fora, que Deus não lhe permitiu expiar o seu erro de forma rápida. O pai sofreu calado. Culpa maior não lhe poderia ser assacada. O irmão continuou como sempre, sem remorso, que neste mundo o bem e o mal andam de braço dado. O Fojo das Pombas guardou a alma do jovem, bem guardada, em cofre de ouro. Ainda por lá luzem restos da alma pura tornando aquelas pedras ainda mais belas. Há quem diga que o segredo é ouvido em eco quando a alma da sua guardiã volteia pela terra, em desespero de saudades e o grita de encontro à vertente da serra. E há quem diga que os fetos raros ali nascidos e não encontrados em mais pontos das serras de Santa Justa e Pias são pedaços da alma chorosa daquele irmão roubado cruelmente à vida. E cada baloiço que o vento imprime à s suas hastes são afagos da guardiã que embala a alma revoltada. Um dia, o tempo apagará as lembranças de choros impossÃveis e afagos improváveis. Um dia, as serras de Valongo serão guardiãs de bem aventurança e justiça. Um dia, as margens do rio trarão lavadeiras de almas brancas. Goreti Dias
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