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Autor Tópico: A Sátira do Livro Roubado ( texto registado na IGAC)  (Lida 23409 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« em: Fevereiro 12, 2022, 23:07:56 »

A SÁTIRA DO LIVRO ROUBADO

±
César

Sou mera personagem de livro, bom ou mau não interessa. Todos podem fazer de mim gato-sapato, até ao limite da sua fantasia, sem eu poder dizer nem aí nem ui e, muito menos, acrescentar seja o que for a um destino que não é meu. A minha saga foi feita segundo desígnios de uma autora de meia-tijela, ao sabor da inspiração do momento. Rasca, na maioria das vezes. Mas, apesar disso, a fraca genialidade de quem me criou teve sequelas que ela nunca se atreveu sequer a imaginar.
Já que a minha criadora me apresentou como um homem com quem o diabo fez um pacto, desengane-se mesmo ela se julga que irei ficar calado, a dormir no caixote do lixo como um caroço de maçã podre a intoxicar-se -se no próprio cheiro. Foi onde a editora lançou o exemplar em que sou uma personagem, com nome de imperador romano conceituado pelas suas obras. E eu juro não calar a minha revolta como um cobarde de voz abafada no cobertor de uma vida comum, onde vivo no anonimato. Não se nega assim a vida a ninguém! Uma vida amarfanhada logo no projeto, transformado à partida num romance barato, e condenado a viver unicamente em rascunho. Houve réplicas, apesar disso! Como numa música de que podem ser feitas várias versões e em diversos andamentos, houve uma segunda réplica e a terceira está a começar, neste terramoto em que me sinto a ferver como se fosse uma ilha vulcânica a estrebuchar no meio do enxofre.
Resumindo, o que me aconteceu foi que morri antes de ter nascido, numa espécie de aborto provocado. Talvez por razões profiláticas e para impedirem que me tornasse numa coisa amorfa, uma vulgar acendalha para atear a fogueira das sardinhas em noite de S. João. Mas eu, mesmo assim, sempre esperei outro tipo de tratamento.
A editora bem agradeceu à mamã o facto de ter sido escolhida para a eventual publicação da obra, onde sou rei e senhor, mas, embora sensibilizada, acabou por se negar a contribuir para a minha existência. Não quis dar-me, nem a mim nem aos meus companheiros, o privilégio de nos tornarmos num best-seller com lugar nas livrarias do mundo inteiro e como uma obra de culto. É bem provável que tenha achado o livro uma alforreca primária e sem substância, mas a mim o que me pareceu foi que tudo não passou de um golpe baixo, que me aniquilou em todas as partes, púdicas ou não. Não com pontapés, mas através de golpes de escárnio e maldizer disfarçados de coisa literária.
É verdade.
Depois da recusa de uma editora em dar-me vida, ratos da literatura serviram-se de mim como se eu fosse, mais do que umas banais sardinhas assadas, salvo o gosto e respeito que eu tenho por sardinhas assadas, um autêntico manjar de deuses habituados a comida gourmet. Tanto quanto me parece, satisfizeram-se até ao enfartamento num mar de gargalhadas, seguramente menos contagiantes do que as minhas e as da Clara juntas (hão de saber quem é Clara) no livro proscrito e em que todos ríamos como doidos.
Sou uma personagem com mais vidas do que um gato. Nas contas da minha mãe, há muito devia estar morto e enterrado, a fazer companhia às minhocas lá no cemitério da terra onde a minha criadora e a filha, a Clara, assistiram ao meu funeral. Uma delas estava, até, a fumar um cigarro bastante pensativa, enquanto ouvia conversas de velhas beatas acerca da minha vida, que foi sempre mais ou menos desatinada desde a minha vinda ao mundo.
Julgam-me o Demo em pessoa, mas sou uma criatura de Deus. Bem querida Dele, por sinal. Tanto que, segundo a minha mãe de ficção, fui feito por uma mulher jovem e por um trolha, no coreto de um pequeno santuário, entre umas pasadas de argamassa e o reboque de um sino para o sítio de onde ele tinha voado com o vento durante um temporal, desencadeado talvez pela ira divina como uma premonição do futuro. E, como sou uma personagem atreita a picardias, apesar de ter tido outro nome, agora chamo-me Gabriel, o anjo, e desci do céu para agradar a gregos e troianos. Já aterrei já em vários romances quase em voo picado, como uma gaivota a ciar ao fim da tarde numa concentração de estilo motoqueiro.
Daí ser a estrela principal de duas tragicomédias. E, com tudo isto, vai agora a minha vida na terceira trajetória, uma vida que se tem revelado bem mais rápida do que um cometa a fazer sucessivas reentradas do mundo com intervalos de centenas de anos. Devo, por isso, ser uma bela personagem, um mito arrancado a uma caverna, que, desta vez, se parece com um caixote de lixo. Com tanta gente a querer-me para figurar nos seus livros, só posso ser mesmo uma personagem recheada como uma batata inchada de redundâncias.
Sou Gabriel e nada mais há acrescentar. Nada de apelidos. Vou deixar o suspense no ar, e uma certa liberdade para cada um me chamar o que entender, como quem baptiza um cão rafeiro. Sou, no entanto, talvez a melhor personagem que poderia ter acontecido a um romance.
Quando nasci, tinha uns lábios finos semelhantes a riscos de tinta-da-china num papel de desenho. Contudo, numa vida de permeio, como se se tratasse de uma reencarnação em que só a alma pode ter algum interesse, alguém os tornou mais grossos. Por isso tenho agora um ar africanado à custa de silicone literário, além da possibilidade de nascer num continente esculpido a fogo.
Querendo ou não, tenho de viver com este aspecto. Por falta de hábito, por vezes dou comigo a mordiscar os lábios como se eles fossem azeitonas sem caroço. Tudo faz parte do disfarce, diz a mamã com ar de quem tal alguma fisgada na manga. Ao menos por agora, enquanto não tenho autorização para me abrir neste novo livro, onde sou forçado a representar um outro número, tenho de fazer um esforço de contenção dos atos que às vezes me apetece representar.
Gosto do meu novo nome e gosto ainda mais da alcunha. Tem tudo a ver comigo. Sou bonito como um anjo, uma verdadeira escultura ambulante de Miguel Ângelo, um David um tudo nada mais beneficiado onde deve ser. Tenho até a sensação de que o meu sangue foi, ao mesmo tempo, coado nas malhas da aristocracia e bafejado pelo espírito divino num sopro de bondade. É assim que o sinto correr, da cabeça aos pés, enquanto reentra depois na terra como se eu fosse um imenso para-raios dos mais sofisticados depois de Franklin. Sou um anjo com um pé na terra e outro no céu. Que grande ponte.
Continua

Leiam também "O Estranho Fascínio da Internet", mas este é a pagar....
« Última modificação: Janeiro 12, 2023, 23:16:23 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #1 em: Fevereiro 15, 2022, 14:46:23 »

Imaginação e qualidade literária. Promete...
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #2 em: Fevereiro 15, 2022, 17:21:02 »

César

Tenho de agradecer a quem me fez assim tão belo: ao meu pai, à minha mãe verdadeira, a quem, se a outra deixar – eu não passo de uma marioneta nas mãos de ilusionistas – vou trocar também os nomes do mundo do faz de conta. Passarão a chamar-se, ele Inácio e ela Josefina. Um porque me faz lembrar padre de anedotas e outra porque a ligo, irremediavelmente, a um país onde Napoleão, quando estava prestes a chegar à beira da mulher,  com o mesmo nome da minha progenitora, vindo das duras batalhas imperiais a cheirar a cavalo e a homem, lhe costumava mandar bilhetes eróticos dizendo: Josephine, ne te laves pas. É o que dizem as más-línguas. Eu não sei, pois sou uma personagem dos séculos XX e XXI.
Quanto ao capelão do meu batismo, agora sou eu quem vai rebatizá-lo. Já não deve andar cá neste mundo, coitado… Mas há pequenas coisas a mudar. É para as personagens experimentarem outras sensações e uma nova importância noutras comédias, neste mundo de Deus meu Pai.
O Padre Serafim vai passar a ser Serôdio, porque o nome anterior lembra-me o céu e todos os moradores. Incluindo a classe dos anjos a que agora pertenço, possa embora o bondoso do sacerdote estar já nos domínios celestiais, graças à sua tolerância para com os paroquianos como eu,  enquanto foi vivo. É importante chamarmo-nos qualquer coisa. De qualquer modo, fiquem à vontade e chamem-nos como bem entenderem. Enquanto a vossa imaginação não ficar esclerosada, a ponto de nem sequer saberem designar uma coisa tão vulgar como chupeta, apelidem-me como quiserem. Nós, as personagens, não choramos por nada. Nem sequer pelas lambadas de que somos vítimas frequentes nas mãos dos críticos de literatura. Nem por enquanto, nem nunca, e jamais rangeremos os dentes por muitos apocalipses que possamos provocar.
Além dos meus velhotes, e de uma ou outra pincelada em algumas pessoas da minha primeira história, só falo aqui no sacerdote porque ele tem algo a ver com o céu. O céu é o meu ambiente, o sítio onde me posso tornar volátil como uma nuvem e tomar a forma que quiser. Mas, mesmo assim, falo pouco dos meus paizinhos terrenos, os que melhor souberam dar forma à “nuvem celestial” que não deixo de ser. Falo pouco porque, quanto mais se diz, mais hipóteses há de sair asneira. Por outro lado, algumas das personagens ligadas ao meu primeiro nascimento parecem-me absolutamente insossas, sem raça de sabor para agradarem a pessoas com bom gosto. E, sendo apenas massa para encher buracos, não vou atribuir a nenhuma dignidade suficiente para figurar aqui. Ao menos na íntegra. Essas figurinhas de retórica só têm de estar completas no livreco inicial, o tal em que sou qualquer coisa sempre boa: pão com manteiga, brioches de queijo, enfim o rei da cozinha mundial. Um rei em que autores pouco escrúpulos beberam e comeram inspiração à farta, como se eu fosse um maná caído do céu, e nos fizeram, a mim e ao resto das personagens, em pedaços. Tal como se estivessem a dissecar cadáveres sobre uma mesa de autópsias num necrotério literário.
Contudo, apesar do tal gozo colectivo que proporcionámos aquando da escrita do livro intercalado, onde eu fui, como ninguém, carne para canhão, há na minha primeira vida umas criaturas interessantes e coisas bem escritas sobre a minha vida. Mas muito desarrumadas.
A minha criadora, quando decidiu pôr-me nas bocas do mundo, para eu viver uma vida de papel, tinha acabado de ler um livro que sucumbira ao conceito do sexualmente apelativo…E, não sendo ela escritora nem de fim-de-semana, acreditou ser capaz de produzir algo semelhante a uma coisa com tanto sucesso no mundo da literatura atual, em que – e ainda bem - já não há limites em coisa nenhuma. Depois de o homem ter pisado a Lua, depois de ter estudado os mares secos de Marte e observado os mil fogos do Sol e de Júpiter, ninguém se deve espantar com nada. Perdoem-me os outros planetas, mas vou ficar por aqui na enumeração do sistema, uma vez que aqui a temática não é, nem a astronomia, nem, muito menos, a astrologia. Trata-se apenas da teoria da Evolução das Espécies de Darwin adaptada ao fino recorte da literatura.
A mamã conseguiu o objectivo com o livro em que nasci com lábios finos desenhados a pincel. À exceção do sucesso, visto que continua anónima e pobre como sempre, uma verdadeira alma gémea de Job.
De resto, somos todos tão valiosos que o melhor era a mamã ter feito um seguro das nossas vidas como Marlene Dietrich fez das pernas, quando o infortúnio lhe esgadanhasse a porta. Ou, até antes disso, para não nos roubarem tão descaradamente como fizeram ao tirar-nos do nosso verdadeiro livro, pondo-nos a viver numa terra de moças trigueiras, com campos pejados de maçarocas de milho para broas, duras como pedras e utilizadas depois de uma forma que não tem nada a ver com uma boa ortodoxia da fome.
Voltando à desordem do meu primeiro nascimento, é aqui que entro, pôr ordem no caos. No livro de onde fui arrancado, quase tudo figura ao contrário. É como se o Sol, de repente, começasse a nascer onde se põe, numa inversão tão grande como a maior hipérbole literária quando Camões ainda se dava ao trabalho de ir ao dicionário escolher as palavras sublimes com que edificou os Lusíadas.
- Espera aí, Gabriel, refreia a imaginação, não te alongues em considerandos baratos! – digo para os meus botões de literato embrionário.
Na mente da minha criadora comecei por morrer num hospital lúgubre, sem o mínimo de arrependimento pelas minhas maldades. Bastantes por sinal. Uma coisa sinistra, esta de se morrer antes de nascer, sem haver pelo meio ao menos um aborto. Deve ter sido por causa disso que a editora me mandou para o caixote. Foi para dar algum sentido à minha vida sem lógica. Uma vida de lixo.
É contigo mamã, critico-te por me teres engendrado daquela maneira tão perversa, quando, em vez de me prostrares de joelhos aos pés de um capelão habilitado a dar a extrema-unção a um moribundo e a pedir perdão a Deus pelos seus pecados, me obrigaste a escrever umas memórias de cunho, mais do que erótico, mais ou menos pornográfico. Sobretudo se passassem a filme. E, tanto quanto julgo lembrar-me, escritas em folhas de papel pardo, como aquele em que antigamente embrulhavam a broa e as azeitonas nas mercearias, e onde se punham as sardinhas fritas a escorrer. Quem, digo eu, a cair aos pedaços numa cama com o nº 666, prestes a finar-se, teria forças para escrever, sequer, um recado à mãe a pedir-lhe umas cuecas lavadas? Por muito escritor que um dia tivesse querido ser,  e por muitos ensaios que tivesse feito nos guardanapos de papel enquanto engatava as mulheres nas esplanadas das pastelarias onde passava grande parte do meu tempo, teria lá tino para escrever tanto disparate?
Desculpa, mamã, mas ninguém acreditou, muito menos os senhores da editora, no facto de as enfermeiras terem medo de ser hipnotizadas pelos meus olhos de Rasputine, de quem se dizia ter também um pacto com o Demo. Sabiam lá elas quem tinha sido Rasputine? E, habituadas a ver gente a ir-se sem nunca terem sido assombradas por nenhuma alma penada, jamais deviam ter colocado a hipótese de alguém como o velho russo ter reencarnado, mais de meio século depois, num corpo lindo como o meu e com uns olhos verde-mar semelhante aos dele, para hipnotizar, sequer, um coelho na Mata Real! Muito menos acreditou no fatídico evento da minha partida para o outro mundo um editor preocupado em ganhar dinheiro a rodos, depois de pagar uma bagatela pelos direitos de autor! E, mesmo que tudo fosse verosímil, queria lá ele saber de um borra-botas moribundo, completamente desconhecido no mundo das letras, a fazer o último ensaio para figurar na História da Literatura do Sexo? Ao panteão da escrita só chegam uns tantos. Muitos só entram lá, ou por uma espécie de compadrio, ou por frequentarem os mesmos lugares e as mesmas revistas chiques da moda. Nem por causa de certas cenas eróticas entre mim e a Clara, normalmente uma boa fonte de receita, a editora caiu no engodo. Ninguém, com dois dedos de testa, acharia possível a minha morte assim tão abrupta, quando a minha doença mais grave era apenas uma hérnia discal, contraída um dia quando fui buscar uma bilha de gás à mercearia da esquina para aquecer a magra sopa que a empregada me fazia às quintas-feiras. Era para não morrer inanimado dentro da minha própria casa, como uma formiga no seu estreito buraco. Ou, então, empanturrado com toneladas de miolo de pão que trazia da centenária padaria da aldeia, onde a velhota que quase assistiu à queda do campanário nove meses antes de eu nascer, já um bocado caquéctica, continuava no ramo da panificação. Quem, de mente sã, julgaria ter sido possível finar-me de Hepatite B, depois das altas orgias com a Clara, uma moça demasiado volúvel para o gosto de certos escritores? Já agora, informo que a Cara é uma mulher colocada pelo destino à minha frente no primeiro romance, e a quem certos psicólogos de bancada já chamaram a minha alma gémea, quando a meteram na pele de outra mulher que me arranjaram para concubina no livro do meio. Nem sequer tive o sarampo em pequeno. Se excetuarmos uma pequena bronquite asmática, que se transferiu de mim para uma tal Lili como se a asma fosse uma doença contagiosa, a hérnia discal foi o meu único percalço durante a vida que tive, a que tenho e aquela que ainda terei, se ela não me trouxer complicações fatais como diria o senhor La Palice.
Contudo, na condição de personagem, além do mais angélica e com conhecimentos de metafísica, acabo de receber inspiração do céu: aquele livro, tal como estava escrito, seria um tremendo êxito editorial. Tem tudo para isso: uma capa sugestiva, uma espécie de Homem de Vitrúvio estendido ao comprido no chão, nunca se soube se morto e a desdobrar-se em vários, ou se apenas como um desenho a exemplificar perante leigos a proporção divina do corpo humano. O livro, apesar de não ter mais do que zero vírgula, zero, zero, zero por cento de sexo relativamente aos quatrocentos e tantos mil caracteres que ilustram a vida da gente do primeiro romance, tinha um bom destino pela frente. Quisesse uma editora como a que nos renegou à semelhança do Apóstolo Pedro na noite em que o galo cantou três vezes, em vez de nos excomungar debruçar-se com carinho sobre mim e sobre a Clara! Os palavrões eram abundantes, havia toalhas vermelhas às riscas em todas as ocasiões. Já para não falar de uma morena encarniçada, quiçá disfarçada de loura burra, a beber o ar que respiro e a morrer de amores por mim. Eu que desencadeio paixões tão fortes como furacões de grau sete, se é que um furacão pode ser tão graduado no mundo da meteorologia.

Continua e é de graça

"Leiam também "O Estranho fascínio da Internet" que  também é meu, mas este custa dinheiro e tem vários preços aí mas livrarias nacionais e estrangeiras, mas em português, ainda
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outono


« Responder #3 em: Fevereiro 20, 2022, 00:15:59 »

É de graça, e tem graça. Juro.
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« Responder #4 em: Fevereiro 20, 2022, 08:00:57 »

E eu vou acompanhar!
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« Responder #5 em: Fevereiro 20, 2022, 21:31:03 »

César

A minha opinião sobre as hipóteses de o romance da mamã vir a tornar-se num êxito de vendas é corroborada por quem, de carne e osso, leu o manuscrito de computador, debruçado numa secretária e cofiando o bigode com impaciência, enquanto se mexia ruborizado na cadeira – foi o caso do meu primeiro leitor. Naqueles que tiveram a bondade de ler a minha malfadada história, nem sempre a libido esteve em pudico estado. Às vezes a leitura acabava por seguir em contramão. A ponto de, o meu primeiro leitor, à medida que ia lendo os capítulos e se enfarinhava no espirito da questão, ter de se levantar amiúde para ir beber um copo de água. Era para se acalmar, confessava. Estava a ser difícil. Era o que me dizia em segredo, quando se debruçava sobre o ambiente do nosso trabalho, do meu e das outras personagens, e quando, em várias ocasiões, senti que ambicionaria estar dentro da história como um participante ativo. Especialmente comigo, visto a minha beleza também não lhe ser indiferente, comparada com a dele próprio, um bocado sem inspiração nenhuma da parte dos deuses. Este meu primeiro leitor privilegiado gostava, sobretudo, de vibrar com as nossas atuações na cama, que deveriam servir para alegrar a vida sexual dos vizinhos de baixo. Ou até mesmo da solitária velha coscuvilheira, a moradora no apartamento mesmo sobre o meu, uma intriguista que ainda me deitou mais uns palmos de terra em cima quando a Clara andava com investigações do tipo “ Sherlock Holmes” por causa das minhas escapadelas no mundo feminino. Quem é que não se sentiu entusiasmado com um sexo tão esfusiante como o nosso? Apenas os frigoríficos, digo eu, a sensualidade em pessoa, e com todo o direito de puxar as mulheres para mim como se puxa a brasa à nossa sardinha.
É por essa principal razão que fui parar outro livro e ando agora num terceiro: num, a comer broa com azeitonas e a viver novas tropelias, enquanto alguém se farta de ganhar dinheiro à custa da minha intimidade e da dos meus companheiros; neste, sabe-se lá o que terei ainda de fazer…
A “mãezinha” distraiu-se hoje um bocado com as minhas insinuações maldosas. Principalmente agora que estou a sugerir à editora uma mudança de opinião em relação a todos nós, quando eu me chamava César e morava no primeiro livro. Nessa altura, ainda a Clara não se tinha desdobrado em três ou quatro, como lhe aconteceu depois. E se a editora quiser ter lucros chorudos, basta fazer um pacote em que inclua três publicações: aquela onde sou César, uma outra cuja base de fabrico é o milho, e esta agora em que renasço como Gabriel. O título, sem sombra de dúvida, teria de ser “A sátira do livro roubado”. Seria um três em um eficaz, um champô eclético. Um champô pode ser como o Sol, nascer para ser esfregado na cabeça de todos com o mesmo efeito erótico do anúncio da televisão e como a mosca de António Aleixo. A mosca sim, é que pousava com a mesma alegria tanto na cabeça de um doutor como em qualquer porcaria.
A mamã está hoje como o era e não era. Acha que fui longe de mais por ter dito o que disse e aconselhou-me a usar a borracha na escrita. Presentemente diz que não admite sequer a possibilidade de eu principiar a circular por esse mundo como César, o de cujus, falecido num hospital depois de ter acenado com a biografia a um editor que lhe fez um ecléctico manguito. Mas, digo eu, isso talvez não corresponda à verdade, dependendo do preço. Tudo se vende, sobretudo consciências. Ou reputações. É o que me parece aqui.
A mamã continua a achar o sítio onde existo com o meu antigo nome uma sala de banalidades.
- Calma lá mamy! Não deve ser assim tanto! De contrário estaríamos mesmo todos no lixo, ao invés de andarmos para aqui a vender saúde e sabe Deus mais o quê, enquanto escritores famosos se riem à nossa custa!
Vive a minha criadora, presentemente, como se depreende, numa grande ambiguidade.
Eu, para a acalmar, afirmo-lhe, com a sabedoria de um anjo, que a radiografia da minha vida assim como ela a fez passaria pelo crivo da editora e ninguém teria soltado aqueles risinhos marotos, mas apenas com uma condição: para isso, ela teria de pertencer à elite dos príncipes e princesas das letras. Teria, em suma, de morar na capital. E, sobretudo, teria de ser uma espécie de dondoca que não dispensasse o chá das cinco numa pastelaria famosa da cidade, içando no ar o dedo mindinho da mão com que levasse a xícara à boca em sinal de finíssimo requinte. Mas, adiante…
Quando vimos que me tinham arrancado das páginas onde a mamã traçara o perfil da nossa família de ficção e nos tinham esfrangalhado, os dois sentimos um enorme espanto e indignação. Eu sou mais passivo, mas ela ficou cheia de raiva, uma raiva a que se seguiu um sentimento a divagar entre a serenidade e o desejo de vingança. E, a seguir-se à risca a receita da raiva, ela deve servir-se bem fria, mesmo que o prato seja de uma banalidade semelhante ao de batatas recheadas. Ou até mesmo de trouxas de batata.
Batatinhas recheadas, hum! Que cheirinho! Nem um anjo como eu resiste a crescer-lhe água na boca, carnuda e africana, agora assim por imposição de autores que devem ter alguma coisa contra lábios finos como os meus quando eu era simplesmente César.
À medida que a poeira baixava e a razão saía daquela penumbra onde se vê tudo baço, depois de se sacudir um pouco e após o auto beliscão, a mamã começou a ver as coisas por um prisma bem mais risonho.
Era, sim – pensou então – alguém a quem tinham roubado os monstruosos filhos, mas, apesar disso, ou mesmo até por isso, suficientemente gente para terem reparado naquelas crias todas e atribuir a algumas uma nova missão. Além do mais, com o objetivo de salvar o mundo, divido como ele anda entre os maus e os bons, já que, os assim, assim, serão, com toda a certeza parodiadores de romances alheios. Nessa altura, deve ter-se sentido mesmo como um marinheiro no alto mar que, da proa, conseguindo vislumbrar palmeiras numa ilha, pode em seguida gritar sem ter medo de enganar os companheiros: escritora à vista!
A raiva dela assumiu um nome, cuja leitura, por extenso, era idêntica ao nome de um perigoso gangue, designado como Recolectores Ambidestros de Infusões Venenos e Antídotos, RAIVA. E, embora ela nunca tivesse atinado com siglas, desta vez sabia que a sua raiva iria projetar-se inteirinha nessa associação criminosa.
− Não faz mal – ouvia-a dizer.
Fui trocando umas palavritas com ela, numa íntima conversa de filho para mãe, enquanto lhe ia afagando a cabeça. Gosto das minhas mães todas, tanto como gosto de todas as minhas mulheres. Até que ela reagiu com uma graça e relaxou completamente, ao som da minha famosa gargalhada.
Depois, disse-lhe eu, os senhores da editora, afirmo com toda a certeza, tinham adorado o livro. Eu que os senti debruçados sobre mim e sobre a Clara nas alturas em que ela, numa voz glicodoce, dizia amar-me como se ama um Deus, ou um santo, apesar de me ter colocado depois num patamar intermédio… Na hierarquia do céu, um anjo aparece acima de um santo, da perspetiva de cá de baixo e, amando um anjo, ela, quando ambos morrêssemos, apanhava boleia comigo para a eternidade, sem ter de passar pelo purgatório e, muito menos, pelo inferno. A Clara era doida por mim e tinha grande sentido de oportunidade…
A única coisa que a aborrecia eram os meus palavrões enquanto durava a, a, aquilo…De facto, eles devia entrar pelos ouvidos de toda a gente, sempre à escuta dos sons da minha casa. Talvez até com um funil encostado ao teto, ou ao soalho, conforme os casos, como se aquele pobre objeto pudesse funcionar como um telefone antes da famosa invenção de Bell. Enfim, devia ser uma espécie de masturbação psicológica coletiva pelo prédio todo à conta de todas as “Claras” que lá iam, sempre com a minha angelical figura a orientar os trabalhos.
Ela, a Clara, nunca percebeu que no céu quase tudo é dito em parábolas. Muitas delas sobre o pão, sobretudo de farinha de trigo, mas também de milho.
Eu, para não parecer pretensioso ─ Jesus Cristo é quem costuma utilizar o trigo para as suas parábolas ─ passei a usar o milho quando falava com a rapariga na intimidade. É muito difícil expressar de viva voz os sentimentos de um anjo diferente dos outros e com um pénis no sítio onde não devia haver sexo nenhum. E as palavras do dicionário são demasiado eruditas para definir uma coisa tão simples como uma relação intima. Daí eu dizer-lhe tantas vezes: “és boa como o milho”.
Foi por o livro ter um cunho tão erótico − digo eu, um anjo, depois de os sentir deleitados e a soltarem ais como se fossem eles ali comigo… − que o devoraram com a mesma avidez de quem come broa com azeitonas, presunto e vinho tinto, à beira-rio, num solar do século XIX, existente ou inventado para satisfazer as necessidades de um livro escrito por gente chique ao serviço da sua editora. Presumo até que, enquanto liam o manuscrito, os escritores terão sentido necessidade de se levantar amiudadas vezes para ir, ou apanhar ar, ou beber um refrescante copo de água. Foi o que fez o meu primeiro leitor, enquanto eu e a Clara estávamos nas nuvens, aos pulos na cama e leves como algodão, a gozar a vida, indiferentes aos pudicos e falsos ahs! de exclamação dos pudicos leitores seguintes, os senhores que nos levaram para casa com o mesmo à vontade com que se leva uma broa dura para servir depois como arma de um crime. Mas, está bem. Hitchcock, num filme, usou uma perna de carneiro congelada. E como ela soube bem a quem a comeu a seguir, assada no forno com batatas, arroz e esparregado. A cozinha é uma grande arte, enquanto deglutir a cozinha é, apenas, contra todos os eufemismos horários e linguísticos, comer, da mesma maneira que eu e a Clara nos comíamos um ao outro.
A minha criadora, quando, nas primeiras páginas do livro roubado reconheceu os seus filhos, a pobre teve um verdadeiro baque. Não foi nada fácil ver-nos por aí à solta, a fazer mais do que ela nos havia mandado. E, além de tudo, coisas bem mais graves… Por isso é bom a mamã não sofrer – ainda – do coração. De outra forma, julgo que teria necessidade de ir consultar de imediato uma médica com quem também passei a limpo grandes apontamentos de anatomia, dito assim só para não dizer que a comia do mesmo modo que comia a Clara.
Valeu-lhe, isso sim, gozar de boa saúde e ainda o alento que lhe dei, juntamente com o pessoal do romance onde ainda sou César, também conhecido por “cara de anjo” ou “Montanha Russa
Num pequenos “prós e contras”, todos chegámos à seguinte conclusão: os editores não passam de uma espécie de maçons e cada vez menos aceitam iniciados capazes de atingirem a fase do avental… Apesar de aproveitarem depois, dos anónimos, as receitas bíblicas dos manuscritos para fazerem grandes cozinhados. Sobretudo de farinha de milho e de batatas, quando o preço do arroz atinge preços exorbitantes no mercado dos cereais e a gasolina se torna proibitiva aos depósitos de uma classe média em peso, a começar a morrer de fome.
Durante a reunião, sem ela me cortar a palavra, fui mais longe. Disse-lhe eu, a gente dos livros e das revistas, mesmo que o meu enterro fosse a farsa que foi, não passava de xenófoba, uns falsos deuses com pés de barro, capazes de caírem se o tiro for certeiro. Bastava, para tanto, haver por aí uma pistoleira como a Lilicas. Eles morreriam mais depressa do que os cisnes do solar à beira-rio, quando um perigoso veneno atingiu as aves da terra, mas principalmente as do céu onde continuo a ter a minha costela de anjo.
Dei, depois, à mamã, como exemplo de santidade defeituosa, o facto de alguém em concreto ter ido buscar-me a um livro dela, uma ilustre desconhecida, e de me mudarem o nome, de César para Gabriel, embora me tivessem mantido a alcunha de anjo. Valha-nos ao menos isso! Não me despromoveram! Pelo contrário! Tornaram-me íntimo do Menino Jesus, e até saboreei as mesmas batatas que Ele comia em dias de milagre, já com garfos de cabo em pau como aqueles que a Dona Josefina levava na cesta da comida quando o meu pai andava com o meu padrinho a reerguer o campanário da igreja de uma aldeia inventada e com sete cabecinhas no nome.
Depois, ainda durante a conversa com a mamã, passando em revista as grandes obras da literatura, todos concluímos que os senhores andavam com uma grande falha, por um lado, na imaginação e, por outro, com uma tremenda falta de gosto. Entre tantos jovens belos da ficção, logo me haviam de escolher a mim, um português atirado para o lixo numa editora! Embora, ao que parece, pelo “falso” resgate, a mesma editora tivesse experimentado uns pingos de remorso pela exposição e abandono da criança que eu era então. De contrário, não me teriam retirado do caixote, em detrimento, por exemplo, do jovem polaco de Gustav Aschenbach, que, em Veneza, encontrou a morte em parte por Gustav se ter apaixonado ainda que platonicamente pelo efebo. Os autores de agora, os que me meteram na pele de uma nova vida, poderiam ter usado o belo rapaz!... Mas devem ter pensado bem e provavelmente temeram ser acusados de pedofilia literária dada a tenra idade do moço. À semelhança do pobre Gustav, tenho a certeza, os senhores, ao invés de detestarem as personagens da história onde me chamava César, como pode parecer do livro que escreveram, apaixonaram-se por mim e pela Clara. A ponto de nos roubarem e de nos disfarçarem numa outra trama, em tudo semelhante àquela de onde fomos arrancados. Talvez para pior, porque, segundo os próprios autores, ninguém sabe que romance é aquele. Mas, ainda um dia alguém vai descobrir!.. Um iniciado, porventura, digo eu! Talvez alguém que tenha aprendido aramaico com o velho tio da Lilicas, a minha amante inventada por quem gosta de tramar novos romances a partir romances velhos, achados no lixo de uma editora,  aparentemente sem merecimento.

Continua

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outono


« Responder #6 em: Fevereiro 27, 2022, 23:29:46 »

A personagem nasce e renasce das cinzas como uma marionete, que foge ao seu criador?
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« Responder #7 em: Fevereiro 28, 2022, 00:52:07 »

Uma Fénix na verdade... Nação Valente

"César"
A Clara acaba de concordar comigo. Ou não tenhamos, eu e ela, uma visão perversa das coisas. As criaturas, diz a minha primeira amante, devem ter gozado fartissimamente, usando, entretanto, uns risos forçados para disfarçarem a excitação. É sempre tão direta, a minha Clarinha…
Acabei de me lembrar de um outro homem belo da literatura, o jovem Dorian Gray… Para embelezar as paredes do velho solar que comprei quando ainda me chamava César, ou o outro da beira-rio, talvez o mesmo, já nem sei, bem poderiam ter ido buscar o retrato do rapaz. Depois da morte dele, do Dorian, e do pai, um Nobel, como toda a gente sabe, a pintura recuperou, com toda a certeza − não me lembro, também tenho falhas de memória…− a juventude do retratado. Devia ficar bem pendurada na mansão, a eternizar a beleza perversa do moço enquanto este repousa no inferno, onde, espero, nunca me cruzar com ele. Mas, não senhor! Preferiram usar a nossa paixão, a minha e a da Clara, igual a muitas que andam por aí disfarçadas debaixo dos lençóis e na cama de cada um por esse mundo de Cristo. Só para achincalhar uma escritora em embrião!
For falar Nele, foi num cristo que me tornei, ao longo de duzentas e tantas páginas de um livro. Um livro é sempre um bom lugar para personagens e para o verdadeiro Cristo também. Apesar de a bíblia ser o Seu livro por excelência. Além de tudo, o lugar das personagens é também no teatro e no cinema, onde, espero, e à dimensão que o meu caso tomou, ir lá parar também. Só a minha beleza enche o ecrã… Por isso foi bom ter sido escolhido para figurar num enredo de terceiros em que não faltam nem azeitonas, nem broa de milho, nem outros condimentos. Deixo assim de ser um português anónimo no mundo, juntamente com a Clara quando ela ainda se chamava assim. Embora, depois, para contrastar com o anjo, o seu Gabriel recente, o livro do pão de milho a tenha mascarado de Lilicas, a serpente, e de Sarinha, dois bíblicos seres e um deles, ao que se sabe agora, mais ou menos assexuado. Tudo por causa do ditado quanto ao sexo dos anjos. Ou então em virtude da loucura dos novos tempos, em que já quase nada deve espantar. Nem o facto de veteranos se debruçarem sobre a escrita de gente desconhecida no mundo do faz de conta e de lhe beberem o sumo.
Ainda bem que fui escolhido – insisto, perdoem-me a vaidade –. Esta distinção pode ter sido mesmo o sal que faltava para a minha criadora engendrar uma nova receita de batatas recheadas à Maria Madalena da Bíblia em virtude da minha ascendência no céu. O céu é a minha morada de eleição.
Às vezes peço à mamã perna de carneiro à Hitchcock, mas ela diz-me que só vai fazer esse cozinhado no tempo de Gabriel a tempo inteiro. Tenho, por isso, de esperar…
Por agora, ando aqui a saltar de um nome para o outro, como se estivesse a jogar a macaca, enquanto aguardo a fogueira em que alguém se há de abrasar. Nessa altura será o fim do mundo para várias pessoas, o apocalipse prometido por Jesus para o final dos tempos. Não digam a ninguém para não haver chiliques, mas a minha fonte é fidedigna.
A “mãe” - devia tirar-lhes as asmas mas agora fica assim - acaba de dizer que todo o homem é perverso. Mesmo os feios. Os escritores também não escapam à regra. São, quiçá, de entre todos os perversos, as criaturas mais perversas da humanidade, se ressalvarmos a realidade. Ela, a minha criadora, não conhece perversão maior do que os escritores, quando fazem gato-sapato das suas personagens. Foi o que ela me disse, e é também o que sinto. Eu que tanto sou gato como a seguir já sou sapato e tanto posso ser de salto alto como raso dependendo de quem me calçar, mulher ou homem.
Indo um pouco lá atrás, ao três em um e à publicação da minha vida enquanto era César, seria um golpe editorial fantástico. De uma cajadada matavam-se, não um, não dois, mas três coelhos, cada um maior do que o outro. A César o que é de César como diz o ditado ou, simplesmente, suum cuique.
Apesar de continuar com a pertinência dos meus reparos: a coisa, como a minha criadora a colocou, de facto não tinha grande lógica. E é por isso que ela agora me permite esta ajuda prestimosa, para ver se tudo entra nos eixos. Talvez a mamã venha a passar, com um único livro, directamente do anonimato para a antecâmara de um Nobel, coisa que ninguém da RAIVA conseguiu.
Já agora, sujeitando-me a levar um corte e soltando a minha gargalhada única, aquela ideia de a Clara meter um fato de Príncipe de Gales num saco e de o jogar na campa do seu querido morto é uma cena surrealista do melhor! Só da cabeça de um cineasta mórbido podia sair tal coisa. E da tola da mamã também, claro, a quem a imaginação nunca faltou. Oportunidade de a mostrar é que ela não teve ainda. Mas, lá há-de vir o tempo…A história do fato na sepultura de um falso morto é mesmo de ir às lágrimas. Sem falar no dinheiro que a rapariga, se tudo fosse verdade, gastaria. A chafarica onde seleccionava candidatos a emprego não devia render-lhe assim tanto para ela desperdiçar com cenários a pender para o melodrama. Além de ter ainda de repartir os lucros com o sócio e pagar, nos últimos tempos, à Isabel, uma vez que a tonta da Sónia foi, segundo ela veio a saber mais tarde, trabalhar para o Ministério da Agricultura, onde, poucos anos depois, havia gente excedentária.
Tenho sido uma personagem atreita a muitas bolandas: fui para África mal nasci, quando ainda me chamava César, embora um dia tenha dito à Lilicas, à minha pequena cascavel e um desdobramento de Clara, que os meus velhos tinham esperado pela minha quarta classe para irem para Angola já com um rapaz letrado na bagagem. Dá-me um certo gozo pregar umas mentiras. É como espetar paus cegos de plantas num canteiro e esperar o nascimento das flores, rosas de preferência, de que gosto especialmente. Sempre fiz isso com as mulheres, embora a minha táctica favorita seja a reserva mental. O silêncio é o melhor conselheiro. Sobretudo para um homem cuja vida foi sempre um embuste. Eu Gabriel me confesso.
Regressámos de África passados dois anos. A Dona Josefina, nessa altura, já trazia mais uma criança a quem limpar o ranho do nariz e mudar as fraldas. A minha irmã nasceu em Angola, igualmente de lábios finos como eu, os mesmos com que, espero, venha a morrer, já que os meus verdadeiros lábios foram depois objecto de implantação de silicone por fetiche não sei de que pessoa, certamente desejosa de beijar uma boca carnuda como é agora a minha.
Para não ter de meter mais uma vez a mão neste ramo da família, aproveito para dizer o seguinte: a minha irmã a seguir a mim vive nos Estados Unidos com um senhor muito mais velho mas cheio de dólares… E, ela sim, é tão parecida comigo que mais parece a minha fotocópia. A Lilicas – hão de conhecer a Lilicas - comparada com ela, é uma aprendiza de ninfomaníaca. Se eu sou anjo, a minha mana é, no mínimo, uma Deusa e o nome de Afrodite assentar-lhe-ia bem. Nunca apareceu muito na outra literatura onde eu era César, e, por isso, nesta fico por aqui, sem me dar ao trabalho de lhe dar um nome.
Quanto aos lugares onde a minha vida de personagem decorre, também não me vou preocupar com esses detalhes. Ser gente assim, gente de livro, de romance, implica ter o dom da ubiquidade. Tanto se pode ser ou estar em Gesta de Oviedo, como em Madrid, como na Brandoa, ou até em Macleeldfids. Os sítios, as paisagens, são, sobretudo, importantes para filmes, onde eu, se calhar, nunca serei personagem. Mas, já não digo nada! … Ao que me tem acontecido, sou bem capaz, no mínimo, de aparecer num anúncio de televisão com uma pequena deixa assim do género, “gosto de dinheiro, tenho 33 anos, sou anjo, ressono e cozinho…”,  e por aí adiante. E, ainda a propósito do anonimato do sítio onde, em caso eventual ficção cinematográfica, a placa da entrada para a aldeia das filmagens diria tudo, sem serem necessárias grandes palavras. Se na tela aparecesse “ Aldeia as Sete Cabecinhas” toda agente saberia onde tinha nascido e haveria de querer, certamente, ir ver o campanário da igreja que o meu pai ajudou a restaurar com o mestre-de-obras, o meu padrinho. Os visitantes deveriam imaginar logo a cestinha de verga em que a minha mãe biológica levava as favas com chouriço ao meu pai, sem esquecer o acto carnal entre ambos de que resultou este anjo, agora com o nome de Gabriel. Todos gostariam de me situar in loco. À ficção tudo é permitido. Até arranjar um ciclone para derrubar sinos de uma aldeia inventada, tal como engendrar o número 204 dos Campos Elísios onde Jacinto morria de tédio antes de conhecer Tormes e a sua querida Joana.
É por tudo isto que vou omitir o lugar onde vim ao mundo. Mas, para já, como tudo me está a dar um certo gozo, permito-me continuar a pensar como um cinéfilo. Se o filme da minha vida focasse muito a montra de uma pastelaria e uns papos de anjo, ou umas barrigas de freira, era quase certo que por ali haveria um convento, provavelmente em desuso. Ainda, só para acabar esta incursão por cenários possíveis para o meu drama, se resolvessem retratá-lo à beira de um grande lago em que se visse dentro uma massa volumosa a mexer-se astutamente, nesse caso seria óbvio que a acção decorrera em Loch Ness e ter-se-ia então desvendado um mistério que há séculos alimenta no mínimo aí umas sete ou oito cabecinhas fascinadas por monstros e serpentes bíblicas mas também com um gosto especial por broa.
Quando regressámos lá de longe, de África, já os velhos andavam de candeias às avessas, sem hipóteses de se alumiarem um ao outro de novo. Foi nessa altura que a minha mãe começou com desvarios matrimoniais. A ponto de a minha irmã mais nova não saber quem é o pai, embora no BI lá conste um nome que ela não tem muita vontade de saber se é ou não o que devia lá estar. Por tudo isso, quando a Clara, ainda muito Clarinha, me perguntou se tinha irmãs, lhe disse que tinha duas, mais velhas. Já devem estar a imaginar porquê: tendo elas nascido antes de mim, a minha mãe não teria, sequer, ido para França nem abandonado o meu pai, e, muito menos, teria cometido aquele sacrilégio voluptuoso de que resultou a minha segunda irmã. Com o meu embuste, tudo se tornava legítimo e eu seria o príncipe aristocrático dono de um castelo em Paris, como a Clara, logo no início dos nossos encontros, idealizou e a minha cabeça loura e linda se instalou, ao menos imaginariamente.
Ai, ai, como me lembro ainda do dia em que a minha mãe foi para Paris…
Mas, cavando mais um pouco na minha vida, muito lá atrás, ainda rapazito de chupeta e com cara de Menino Jesus, tive, não um, mas dois desgostos:
Por um lado, o meu pai regressou à terra dele e às obras, e a minha mãe, passado pouco tempo, resolveu de facto ir para França. Foi a salto, trabalhar para a casa de uma francesa, como outrora tinha feito com os ricaços da terra no solar do alpendre com ameias, onde ela e o meu progenitor se encontravam às escondidas nos bons velhos tempos. O meu segundo desgosto foi o facto de a Dona Josefina ter levado a filha deixando-me a mim aos cuidados dos meus tios maternos a engolir as lágrimas da saudade. Deixei de chorar, provavelmente, nessa altura. Se é que algum dia chorei!… Dizem que sou frio como um icebergue. A excepção à minha frieza é a cama, o meu e o inferno dos outros. Lá tudo é calor. E quem quiser experimentar o meu fogo é apresentar-se em minha casa. Não vale a pena morrer de curiosidade por uma coisa tão simples como um coito comigo. Sobretudo alguém que se sinta em dias de muito coitado. Ou coitadinho, que vai dar no mesmo…Durante muito tempo não perdoei à minha mãe não me ter levado com ela. Mas, depois, amoleci. Gabriel e anjo, por um lado, por outro não passo de um homem, e, para complicar mais as coisas, sou uma personagem de ficção.
Chegou também o momento de enfrentar o Senhor Freud mais o Complexo de Édipo, o filho dele, ao lado da filha já crescida, a Dona Psicanálise. O rapaz, o Édipo, queria, então, como toda a gente sabe, matar o pai para casar com a mãe, por quem nutria um amor profundo, fosse ou não ela um traste. Isso não sei. Não gosto de aprofundar as coisas. Sobretudo se meterem sexo. O sexo é para ser exercitado, a vivo e a cores, vermelho e garrido, com serpentes como a Clara e a Lilicas, porque a Sarita – hão-de conhecê-las melhor a todas – às vezes aparenta ser um pouco assexuada -. É o que dizem dela críticos famosos do mundo da fantasia e da palhaçada. Mas, talvez nem tanto ao mar nem tanto à terra. Vamos ver o que nos reservará o futuro… Já pensar – acho eu - agilizar a mente com coisas filosóficas, além de ser uma maçada, pode engordar-nos e deixar-nos redondos como tonéis para quem nenhuma mulher, ainda que bêbeda olhará. E eu, César ou Gabriel, não quero perder este corpo esbelto com que fui abençoado de maneira nenhuma. Se Deus,  e o Lúcifer, com quem a minha criadora, em meu nome, estabeleceu um pacto que me tem simultaneamente como vítima e algoz,  quiser, ainda hei-de provocar por aí muitos gemidos de prazer.
Um dia, depois de estar bem de vida, comprei um grande solar. E uma das razões porque o adquiri foi para instalar lá a minha mãe quando regressasse de França reformada. A outra prendeu-se com o facto de pretender, no quarto que dá para o alpendre, o dela antigamente, montar um laboratório fotográfico onde pudesse sobretudo dedicar-me à fotografia de auras. O mundo da transcendência sempre me fascinou. Nisso sou verdadeiramente a alma gémea de Clara… Era uma ideia de quando a fotografia era para mim um hobby, e que, por exigências editoriais, se acentuou quando me tornaram fotógrafo profissional com a incumbência personalizada de fotografar tesouros antigos para clientes finos de Cascais.
Freud tem mesmo razão: um homem, ainda que personagem de livro, nunca sai das saias da mãe e, mesmo aqui, quando deveria ser uma personagem autónoma, tenho de a trazer atrás como o meu atrelado perpétuo.
A seguir à ida dela para França, fui, mais os meus caracóis louros caídos sobre os ombros, viver com os meus tios maternos, cheio de vergonha por quase ter sido abandonado pela Dona Josefina.
Ela, coitada, mandava francos suficientes para eu, já crescido, estudar na cidade mais próxima. E isso foi coisa que a minha mana ninfomaníaca americana nunca me perdoou. Sempre que pode, atira-me à cara o facto de ter sido obrigada, desde a saída da escola, aos onze anos, em França, a lavar escadas e coisas assim, enquanto eu andava aqui no bem bom a passear os livros de comércio. As contas deviam ser o meu futuro.
Costumo responder-lhe que, sobre mim, ela tem pelo menos uma vantagem: para além de ter podido mamar até quando lhe apeteceu sem precisar de chupeta, fala melhor o francês. Apesar de eu também lhe dar um jeito… Em qualquer revista nessa língua que me chegue à mão, não há palavra, por mais calão que seja, da qual não saiba o significado. Aprendi o léxico menos ortodoxo através de banda desenhada pornográfica francesa. Tenho, até, alguns exemplares em casa. Além do mais, a mana vive lá nas Américas com um homem rico, e eu, por muitos golpes que tenha dado, não enriqueci coisa nenhuma.
Depois, como consta nas minhas memórias de papel pardo, quando tentava agarrar a última hipótese de me tornar num escritor famoso, apesar de morto ou em vias disso, mal acabei o curso de comércio fui para uma outra cidade, onde me hospedei, segundo a minha inventora, na casa de uma mulher gorda e ruiva. Também ela não resistiu aos meus encantos de Adónis, tendo os dois protagonizado entretanto verdadeiras cenas pornográficas na minha primeira trilha literária.
Não sei se foi bem assim!... Mas, como não passo de personagem de romance, tenho de assumir todas as orgias em que ela me queira meter. Embora, desta vez, a mamã esteja um bocado condescendente aceitando até algumas contraditas da minha parte. Como, por exemplo, a história da criada dos Sequeiras, quando, por causa das rendas e do tricô, alegadamente a rapariga me chamava para o quarto a fim de a ajudar a dobar as meadas e fazer mais umas quantas coisas proibidas entre uma mulher feita e um rapazito expedito. Essa história, juro, sobre a Bíblia se for preciso, é de outra pessoa. Ela colocou-a às minhas costas porque era a única possibilidade de tudo ser desmistificada. Nem só os homens são pedófilos. As mulheres também. E então entre criadas e filhos de patrões, no século passado, era o prato do dia. Todavia as coisas não eram tão valorizadas como hoje. Dava-se uma boa reprimenda à fêmea, ainda sem par e, quando ela, daí a pouco, arranjasse namorado, ficava tudo sanado no dia do casamento. O resto era com Deus e com a habilidade do marido, ou de terceiros quisesse o acaso…É óbvio que coisas assim não faziam parte da literatura da época, permanecendo até há bem pouco tempo na categoria do tabu, um tabu que só foi quebrado a partir da invenção dos jornalistas e de escritores como a nossa mãe.
Ela, a mamã, fã de um realismo que nenhum Eça de Queiroz suplantaria, pôs tudo às claras no outro livro onde me chamo César e a minha parceira dá pelo nome de Clara.
Devo confessar, às vezes sinto-me perdido… Não sei se sou César, se Gabriel, anjo num caso e noutro, mas, por outro lado, um demónio, quiçá inspiração do próprio Dan Brown no livro em que entidades das duas espécies aparecem lado a lado, provavelmente para atazanar a alma de alguém. Por aqui não sabemos. Não nos demos ao trabalho de ler o livro. Não gostamos dessa literatura, é demasiado fórmica. Já passámos essa fase. Apesar de nos terem emprestado uma outra codificação do escritor para lermos alguns artigos. Sobretudo eu, enquanto César, que, como é sabido, até pelas mais altas figuras da política, andei a cursar direito na capital e fui mesmo chamado de doutor.
Depois, como vi que era um livro sem sexo – nem um beijo na testa, sequer, havia… – rapidamente o pus de lado, aguardando calmamente até surgir uma obra do mesmo género escrita ao jeito de música, como sete notas harmoniosas nas mãos de outros tantos tocadores. O sete é, de facto, um número mágico: a semana tem sete dias, sete é a conta dos mentirosos e sete cabecinhas é o nome de uma Nossa Senhora que todos os anos tem direito a uma festa em Agosto numa aldeia perdida junto com as botas de Judas, o traidor, mas, mesmo assim, amado por Jesus como todos os outros apóstolos.
Mas agora, como está bastante calor, vou de férias e deixo a prosa entregue à Clara, Lilicas se preferirem, ou Sarita. Elas que decidam em que livros querem ser personagens, não sei quê, não sei que mais. Prontos! Vou veranear com a toalha de praia em que um dia se sentou uma rapariga distraída com preferência pelo encarnado. Confundiu a dela com a minha, uma toalha vermelha e uma cor de que eu gosto muito. É a cor do pecado.

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outono


« Responder #8 em: Março 03, 2022, 15:04:17 »

Este personagem com heterónimos como Fernando Pessoa, parece obcecado por sexo. Nem uma uma luzinha de amor platónico.
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« Responder #9 em: Março 03, 2022, 23:05:55 »

Esta personagem vai descansar um momento depois da  sua primeira grande estopada literária...

Continuação


Clara

Agora é a minha vez e não sei por onde hei-de começar.
Sinto-me uma loura-burra, ou uma morena estúpida e tão confusa como o César, ou Gabriel, o meu querido anjo.
Quase nem sei quem sou. Talvez uma depravada sem vergonha, que sei eu? O juízo, como dizem de mim, não é o meu forte. Chamam-me a bíblica doidivanas
Acho, contudo, que devo continuar como o mesmo estilo na escrita: primeira pessoa, isso imprime uma maior veracidade à história. Meter um terceiro na nossa vida, intimíssima como é a minha e a do César, além de nos poder colocar em maus lençóis se esse terceiro for linguarudo, está completamente demodé.
Na minha outra existência de personagem, a mamã deu-me pais, já falecidos ao tempo, irmãos, um tio e uma tia idosos a viveram numa aldeia e a tratar da hortaliça. Era de onde trazia castanhas, nuns cestos de verga devolvidos cheios de nada como a verdadeira forreta que sou…
Desculpem-me a mania das grandezas e o décor para me desfazer num cemitério de um fato Príncipe de Gales comprado para o meu anjo num dia de loucura. Mas teve um bom efeito cénico, não teve?! Coitados dos pobrezinhos! Não me lembrei deles… Que figurão não faria um deles se vestisse o fato num dia em que a sopa dos pobres fosse rancho melhorado! E como pude ser tão peçonhenta com o meu anjo! Nem um fato inventado para decoração de uma história quis ter lá em casa para recordação!
Pois, nesta minha nova reencarnação literária, vou continuar a viver a mesma agitação de sempre! Ou não me chame Clara e tenha sido arrancada à força das páginas do livro onde fui gerada para me transformar, a seguir, numa diabólica Lilicas e trazer para este paraíso terrestre a inovação do sadomasoquismo! Não se espantem. Sou a mesma víbora da tentação, a que se escondeu na maçã ou se enrolou na macieira, tanto faz, para dar cabo da existência do pobre Gabriel. Em cada Gabriel, ou César, dos muitos que há por aí, há sempre um Adão escondido, não duvidem.
A mãe, desta vez, confirma-me que me vai transformar numa serpentezinha surgida debaixo de uma pedra, juntamente com uma lagartixa com quem ainda hei-de andar em bolandas.
Nasci já crescida, esbelta e airosa, ou melhor, nem nasci. Sou apenas fruto de imaginação delirante e talhada para cometer diabruras, depois de me derreter nos braços do Gabriel, arrebatando-me em sucessivas mortes de prazer. Ainda hei-de dar muito que falar…
Por esta hora, deviam ser seis da tarde de uma segunda-feira e eu deveria estar algures num semáforo, a olhá-lo como se ele fosse um fetiche e a ser hipnotizada pelo vermelho, no meio de um trânsito infernal e ao som de impacientes buzinadelas.
Confesso a minha distracção. Foi por causa da automobilista do lado, que acabou por espatifar o carro nas traseiras de uma camioneta de grelos por andar ainda mais distraída do que eu. Pelos vistos o marido, por quem a senhora é profundamente apaixonada e que é um mulherengo, embora ela não saiba, está muito mal por causa de uma palidez cuja origem, segundo as últimas opiniões clínicas, é uma hérnia discal. O vermelho provoca-me sempre grande excitação. Ainda hão-de saber porquê, embora o meu anjo já tenha dado umas pinceladas na trama que nos envolve. A ponto de toda a gente nos conhecer já pelos loucos do sexo, mentiras e livros. No dia do acidente com a camioneta dos grelos, eu andava um bocado sem sal nem azeite… E, para acalmar esse espírito insosso da altura, tinha ido à pastelaria da esquina tomar uma bica e comer um papo de anjo. Sempre tive alguns cuidados com a linha…, mas, nesse dia, o corpo estava-me a pedi-las… E eu, miseravelmente, entreguei-me inteira ao açúcar. Era para compensar uma época de algum jejum. Estava a chegar o fim das férias e lambuzei-me com o bolo. Nessa altura, vivia uma verdadeira crise de abstinência em todos os sentidos e tinha de me autocompensar de qualquer maneira. 
Depois, como sou doida por peixe, iria grelhar uma dourada com batatas a murro − prefiro estas porque as recheadas, às vezes, têm dentro carne milenar, talvez só centenária por causa de Colombo − com molho de alho e uns grelos que a minha tia me dera na véspera quando a fui visitar na aldeia onde vive, que agora vai ficar sem nome. A minha criadora, tal como fez com César, desta vez quer-nos a todos cidadãos do mundo, quiçá do espaço sideral, da Lua, sobretudo. Por isso, nada de nomes, nada de sítios onde alguém possa esgaravatar para conhecer a perversa Clara (era melhor confirmar se ainda o sou mas não tenho tempo de ir lá atrás…) e o anjinho do Gabriel antes de nos transformarmos em carne para canhão ou só para batatas recheadas.
Depois de comer, iria ler, na cama, um livro sobre Deus. Nesse tempo andava com o misticismo à flor da pele, e juro que fiquei admirada por a escritora, num livro daqueles, ter escrito, com todas as letras, a palavra pénis. Ou se calhar já sou eu a misturar as personagens… Mas ninguém deve sentir-se aborrecido com isso. Pois se nem nós, mais amassados do que broa em masseira gigante, nos aborrecemos, por que haveria alguém de se sentir incomodado com esta pequena confusão entre gente de papel? Eram os meus planos para a noite. Comer peixe, cama e dormir ressonando toda a noite. Só muito recentemente soube disso, que passara de arpa a trombone de um dia para o outro… Mas quis o acaso que o raio do telefone desatasse a tocar insistentemente, às mãos da Carolina, a primeira Woman in red que conheci a Gabriel, vindo ela com a novidade de o César ter morrido, para meu espanto, depois de tantas vezes eu o ter achado, primeiro um anjo e depois um demónio, e que, pela respectiva natureza de um e de outro, ambos seriam absolutamente imortais.
A mãe está a dizer-me para não ir por aqui. O César, o Gabriel, ou seja qual for o nome dele agora depois de se escapulir à força do primeiro livro, já pôs as cartas na mesa. A ponto de toda a gente me julgar uma embusteira com vocação de assassina por ter dado sumiço numa criatura tão angelical.
Se é assim, respondo-lhe, foi por ela me meter naquelas andanças, a fazer figuras tristes no cemitério juntamente com as ex todas do César, a servir de alcoviteira com papéis de um lado para o outro a fim de os entregar à Patrícia, a legítima, embora também já ex quando a nossa criadora se propunha contribuir para o nascimento de um escritor póstumo.
Se já fui desmascarada, não me resta outra alternativa senão contar toda a verdade, ou não tivesse vindo aterrar num outro livro, com um pé na bíblia e outro no Corão, ou até mesmo no Talmude… Nesta última hipótese, deve ter sido por ter andado durante um tempo em Oxford – era Cambridge, não era Oxford – com uma rapariga a quem, depois, arranjei um emprego numa empresa. Foi quando fiquei a arranhar a língua de Maomé, em Cambridge. Já a língua de Jesus Cristo era especialidade do meu tio-avô, que nasceu depois de mim no outro livro onde passei a motorista dele, por, alegadamente, o velho ter ficado sem carta após ter entrado numa auto-estrada em contramão.
Ainda eu era Clarinha, um João Semana meu amigo, sabendo das minhas atrocidades matrimoniais – tinha sido casada com um gay encapuzado – queria, à fina força, consorciar-me de novo. Mas, dessa vez - dizia ele - com um verdadeiro garanhão, capaz de satisfazer os meus lúbricos apetites de ninfomaníaca desvairada e sempre à procura de aventuras.
Nessa altura, confesso, ainda não sonhava vir a ter nenhuns conhecimentos da cultura arábica. Só conhecia a goma de engomar as rendas das senhoras e os colarinhos das camisas dos homens, que, a mim, em boa verdade, não me competia passar. A minha vocação nunca foi, nem o ferro nem a cozinha. A cama é o meu destino. É tudo para não quebrar o bico das unhas, às vezes parecidas com garras.
Um dia, o rapaz, o meu amigo – mais outro sem nome – convidou-me para um concerto numa fundação de numismática e apresentou-me o César. Era o senhor doutor e, ao mesmo tempo, o director da fundação, ali de abraço com um maestro suado de esforço e que acabara de nos dar, aos ouvidos e aos músculos, numa fantástica orquestração, aquelas músicas maravilhosas de Haydn, Carl Stamitz e Antonin Dvorak.
Nesse dia nem sequer fixei o nome da personagem que mais tarde haveria de contracenar comigo nos lupanares da literatura, visto que nasci com vocação de rapariga erótica…

Continua

(leiam também O Estranho Fascínio da Internet) mas este é para comprar...Será que valho a pena? Vá lá...
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« Responder #10 em: Março 07, 2022, 21:39:01 »

Será mesmo Clara ou será escura?
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« Responder #11 em: Março 07, 2022, 23:39:22 »

É mesmo Clara, Clarinha....
continuação

Nesse dia nem sequer fixei o nome da personagem que, mais tarde, haveria de contracenar comigo nos lupanares da literatura, visto que nasci com vocação de rapariga erótica…
Quando vi Gabriel, ainda ele era César, não posso dizer que tenha ficado aparvalhada. Aliás, não fosse o caso de a minha natureza erótica me pregar uma partida e fazer-me cair logo ali aos pés dele, tratei de o "casar" com uma estrela de telenovela, e de lhe arranjar um ninho de pintos lindos como ele. Meti, antes de mais, um bom travão no andamento, sem sequer ter metido a primeira, como convém a uma boa motorista perante um tão portentoso precipício.
Por isso, só depois, durante os 4230 minutos de vida em comum no total, mais ou menos, é que ele passou, primeiro pela hierarquia da santidade sendo a seguir promovido a anjo.
Posteriormente fiz-lhe a vida num inferno…
Mas ainda é cedo para estender aqui a folha de serviços que a Lilicas, a venosa serpente, veio a prestar a eito no romance onde a meteram à pressão e a catorze mãos, quando ela já estava farta de todas as aventuras com o seu anjinho, na pele de Clara e na primeira aventura literária.
O meu amigo Y, passados uns dias do concerto, ligou-me numa altura em que eu não estava e deixou, à tonta da Sónia, a rapariga que foi trabalhar para o Ministério da Agricultura – ou teria sido à Isabel? - um recado e um número de telefone para eu ligar. Era da parte de Y – disse ela – É para falar com X, neste caso, o doutor César Augusto, o senhor do número.
Fiquei na mesma. Não me soava a nada. O nome, se alguma coisa deixou no meu ouvido, foi apenas curiosidade e a leve suspeita, depois de alguns segundos de reflexão, de que, em vez de estar perante a figura de um imperador romano, poderia dentro em breve ter de enfrentar uma criatura celestial e com grande influência no paraíso.
Obtive a confirmação do que pensara através do mesmo Y, a quem liguei na primeira oportunidade.
Era, de facto, o rapaz da fundação, livre como uma gaivota, depois de ter sido casado e de já ter feito parte da obrigação de um homem no que diz respeito a ter pelo menos um filho. Tinha dois, um rapaz e uma rapariga. A árvore veria depois se já a tinha plantado, embora em breve chegasse à conclusão que nem uma simples túlipa ele tinha lançado num canteiro de flores…
Quanto ao livro, toda a gente sabe que foi um embuste da autora, e que o meu anjo se havia limitado a uns pequenos rabiscos nos guardanapos de papel nas esplanadas quando passava tardes inteiras no engate.
− Está bem, está! – pensei com os meus botões. Era, então, a Clara tímida e burra, não sei se loura ou morena, e pensei que talvez me fosse meter no meio de um tsunami. Mas, que diabo! E chamei por ele, pelo diabo do meu anjo.
Mais tarde, noutro romance, viemos a saber, eu e ele, que o meu anjo se chamava Gabriel e que ambos padecíamos de uma doença chamada Doença das Almas Gémeas.
Não demorei muito a encontrar um pretexto para lhe cair nos braços e na cama, embora aqui esteja a fingir a Lilicas,  que ainda não era,  e a Clara que nunca pus a hipótese de deixar de ser. Prostrei-me então em frente dele, cheia de charme. Tinha um pretexto na manga, ou melhor, três: a missa do sétimo dia de um amigo e o currículo de uma rapariga que não conseguia arranjar emprego. A última desculpa era o facto de, a seguir à visita, ter de lhe pedir mesmo uma falsa desculpa pela falsa ousadia de o incomodar.
E ele disse – não hesite – venha sempre. Vamos ao cinema.
E eu, uns dias depois, mandei-lhe o curriculum da rapariga que não conseguia arranjar emprego. Se nessa altura soubesse o quanto ia amar o meu anjo tinha levado de imediato as credenciais da moça ao ministério para onde a Sónia foi depois trabalhar.
Ligou-me de seguida, atencioso como um aristocrata francês, apesar de o sotaque dele não lhe atribuir muito essa origem. Falámos de coisas interessantes pela primeira e última vez, e todo o falso que depois foi nessa altura era verdadeiro. Foi fulminante, típico de uma morena disfarçada de loura para fingir que é burra e representar bem o seu papel. Amei-o com todas as letras dos abecedários de todo o mundo. Incluindo o árabe e o gestual.
A mamã está a dizer que gostou destes últimos trocadilhos e deixa-me prosseguir. Sou a Clara mas até ela própria já vislumbra em mim a serpente que, daqui a nada, vai estar na casa de César, enroscada num sofá individual, a mirar umas fotografias colocadas sobre uma mesa perto de umas estantes, que eu, Clara e personagem de romance, vou admirar dizendo a César que os filhos são lindos, enquanto o tio de Lilicas vai exclamar, entre outras coisas da exclamação: que maravilha!, mirando os livros nas prateleiras.
A mamã não gosta muito da arrumação desta casa. Além de ter sofás e fotografias a mais, tem uma mesa particularmente mal colocada e diz também que, ou é da vista dela ou ainda alguém vai aqui esmurrar ali as pernas. Queira Deus que as lesões não se fiquem por aqui…
O tio do meu outro eu, quer dizer, da Lilicas,  continua a espiar a soberba biblioteca de César, o meu anjo, dando de frente com Jorge Luís Borges em espanhol. O velho fica tão deslumbrado quanto Clara, eu própria, e pensa intimamente na cultura de Gabriel. “Até lê em espanhol”.
Quer eu, quer ele, de momento ainda não sabemos que o escritor e a sua colecção vieram de uma editora em França, onde a irmã mais nova de César, aquela que não sabe quem é o pai, trabalhou, oferecendo-lhe depois toda a obra. E o que igualmente nenhum de nós sabe é que a colecção tem um particularíssimo defeito: o gato da editora, o René, um puro-sangue persa de pêlo longo, costumava ir para a oficina dos livros encarrapitar-se neles quando estavam empilhados. Às vezes não conseguia descer e tinham de o ir buscar, depois de pungentes miadelas no topo de toda aquela literatura condensada em milhares de páginas. Um dia passou demasiado tempo em cima da rima de Borges fazendo nela uma monumental urinadela, que a inundou de cima a baixo. E nunca dela saiu aquele cheiro a amoníaco que, junto com outro composto químico, era usado por Gabriel para hipnotizar todas as personagens dos romances em que entrava. (Esqueci-me de declarar: eu, Clara, quando falei ao raio do Y, o meu amigo, este atiçou-me a curiosidade e a fome quando me disse que César, além de ter uma cara de artista de cinema, vivia, além do mais, com a mãe. Uma mãe que é sempre uma boa desculpa para um homem em momentos difíceis. Mas, mais tarde, vim a confirmar tratar-se de uma informação perfeitamente adulterada pela amizade entre ambos): Y, muito distraído, deve-me ter achado com cara de mãezinha, a mesma mãezinha por quem o seu amigo parecia chamar sempre com aquela cara de anjo que Deus lhe tinha dado com tanta generosidade e toda a discriminação perante os feios como o tio da Lilicas. Dessa vez, o raio do Y lançou-me uma verdadeira casca de banana. Acabei por cair nela. Em breve, além de me transformar numa cruel e bíblica Lilicas, iria entrar nas garras de uma deliciosa traição, como foi dito na outra trama em que o meu querido César se tornou num verdadeiro Cristo. Só depois de falar com Y me plantei perante o meu anjo, de voz mais ou menos afectada, mas a parecer o cúmulo da segurança.
Tenho de colocar um ponto de ordem nos trabalhos. Isto tem de ficar mais arrumado: primeiro o concerto, depois o telefonema de Y para Clara, seguido do telefonema de Clara para Y, prostrando-se a Clara – eu própria – a seguir, em frente a César, com o pretexto do currículo da rapariga e, mais tarde, já depois de ter enviado o bendito papel, que nunca deveria ter ido para lá, é que falei demoradamente com César ao telefone, quando ele me parecia um aristocrata francês.
Agora, neste faz de conta, enfrento pela primeira vez Gabriel, cara a cara, quando ele diz:
− Venha sempre.
Logo desde o início, durante o “venha sempre”, César pareceu-me bastante calado. Tive, até, de ser eu a encarreirar uma conversa que nos levasse a algum lado. Ainda que fosse à minha saída daquele local o quanto antes, se não quisesse um dia, passados alguns anos, adquirir o rótulo de ninfomaníaca insaciável.
Afinal ele não era economista como Y dissera. Licenciara-se em Direito, antes de obter uma pós graduação na francesa Sorbonne, em Artes.
Eu disse-lhe que seleccionava gente para trabalhar em empresas e que era psicóloga, às vezes a pender um pouco para o lamechas quando tinha de dizer não a uma pessoa que, via-se mesmo, estava a precisar desesperadamente daquele emprego.
Confesso que fiquei fascinada com aquele ser esbelto, lindo como um anjo. E lembrei-me entretanto daquelas pinturas de rua, feitas na calçada, de cores brilhantes e debotadas com os primeiros passos dos transeuntes sem respeito algum pelo Altíssimo. O César pareceu-me assim: brilhante como o céu, santo como os santos, anjo como os anjos e não consegui imaginar que raio de coisa lhe passou pela cabeça quando perguntou ao nosso amigo comum, o Y, quem eu era.
Já não era muito novo. Tinha, contudo, um viço de fazer inveja a muito menino de vinte e oito anos, a idade dele quando passou a chamar-se Gabriel para servir os interesses de um outro romance e de uma editora ávida de lucros à custa de Claras e Césares desprevenidos.
− Venha! Não hesite – continuavam a suar-me as suas palavras na cabeça quando vim embora, dizendo que sim senhor, que lhe enviaria o currículo da jovem.
Saí aparvalhada, hipnotizada com aquele tratado de angiologia com quem acabara de travar uma conversa tímida, não conseguindo vislumbrar até onde ela me levaria.
− Venha sempre! − ecoava na minha cabeça.
Meu Deus, que cara angelical! – pensava – Já não via um rosto assim desde o tempo da primeira comunhão,  quando me deram um santinho tão perfeito como aquele homem. Na altura, pequena ainda, pensava que só os anjos e os santos poderiam atingir uma beleza tão imaculada. Devia ter morrido. Tinha estado no paraíso… Eu era, de certeza, uma pessoa muito boazinha para Deus me ter concedido a graça de ter estado, ainda que por alguns instantes, no céu à beira de um anjo. César era de morrer e eu não conseguia guardar na memória os seus traços diáfanos. Não sabia como defini-lo. Fiquei logo enfeitiçada, ali na fundação, quando havia moedas por todo o lado e me senti uma felizarda por ter despertado o interesse daquela celestial criatura.
A mamã está a chamar-me burra. Ou, nem tanto, digo eu, que ainda tenho muito para explicar nas histórias da minha vida em triplicado.
Nessa altura, também pensei que nenhum homem assim, se fosse bom em tudo, devia andar por aí solto. César tinha certamente uma mulher que lhe tivesse laçado um bom nó de marinheiro impossível de desatar. Mas, estava disposta a correr o risco de saber a verdade. Era, com todas as letras, se não o dolo directo, pelo menos o dolo eventual do “crime” de, mal o vi, ter ficado perdidamente apaixonada pelo anjo da minha vida. Mas, por outro lado, como ele se movimentava num outro infinito, admiti a hipótese de nunca mais ouvir, nem a sua voz doce e muito menos ver de novo os seus olhos verde-mar onde eu desde logo comecei por ir ao fundo.
Assim, pensei:
-Vai tudo ficar, em águas de bacalhau...O nó de marinheiro do seu pescoço, junto à gravata, deve ser bem forte, impossível de desatar. Embora boa como o milho, não sou sereia capaz de enfeitiçar aquele lindo embarcadiço. César – continuava a pensar – já devia ter por aí uma imperatriz escondida em qualquer lado, imperando juntos, ele que, pelas minhas estimativas, aliadas às informações de Y, era um poço de fidelidade. Ninguém lhe conhecia a faceta, nem de mulherengo nem de menino da mamã como inicialmente imaginei, só para imaginar alguma coisa de tanta beleza concentrada numa única pessoa.
- Não vai telefonar mais – pensei.
Adeus meu anjo! Encontrar-nos-emos na eternidade. Ainda aguentei as lágrimas, confesso…
Foi quando surgiu o telefonema do meu aristocrata francês, já a querer enfiar-me a galope no seu castelo.
Não demorou mais de uma semana até aparecer de novo na fundação, eu, Clara, que era uma rapariga habituada a por travões nos avanços da humanidade que há em todos os homens – e mulheres – para ser honesta comigo própria. Só que, daquela cara de anjo, além de tudo, recomendada por Y, o meu amigo, não havia nada a temer. Para trás iria ficar o tempo do assédio de um bivalve viscoso e de um marido cuja inclinação era para outro lado. A minha vida estava a transformar-se num grande mar de rosas. Mal sabia eu nessa altura que já tinha um pé numa outra história, na pele de uma outra personagem decidida a granjear-me a fama de ninfomaníaca boazona mas burra e tão esfomeada por calças como gato por bofes.
No meio de tudo havia uma coisa boa: era César, o meu imperador e, passando da terra para o céu, o meu querido anjo Gabriel. Eu, Clara, ou Lilicas, fora seleccionada por Deus para o tentar, pondo-o à prova com o sentido único de ele poder atingir uma outra hierarquia no Olimpo. Sentia-me escolhida
A minha criadora está a fazer-me sinais para deixar essa parte para César. Diz-me que gostou da defesa dele, feita por um “advogado”, homem com toda a certeza, na outra história, quando veio à colação uma nova versão do kama Sutra escrita por uma tal Carla. Assim à primeira vista e lido por um candidato a cego até poderia ser o anagrama de Clara: ou seja, eu.
Tenho de obedecer prontamente e vou então prosseguir desde o meu segundo encontro com César, quando fui de novo à fundação. Nessa altura tornei-me num ser tripartido como se tivesse sido concebida por inseminação artificial de que tivessem resultado três gémeas completamente falsas, tanto na forma como no feitio.
Mas, é preciso, talvez, recapitular: César prometera-me uma ida ao cinema e eu pensei que o dia da fita seria aquele. Primeiro fomos a uma esplanada tomar uma bica, à tarde e, depois do jantar, num sítio aprazível, iríamos então ver um filme. Era o que eu pensava, já prestes a tornar-me na venenosa serpente bíblica e na doce Sarita do mesmo livro sagrado sem saber. Um três em um comme il faut.
Pelo caminho, César falou-me das irmãs mais velhas, quando o imaginei um aristocrata dono de uma bela mansão em Paris, embora a vida dele me parecesse, quase desde o início, um grande filme, e que o nosso próprio filme iria provavelmente decorrer numa sala desconhecida. Ao menos para mim.
Coisa imaginada, coisa acontecida. O cinema acabou por ser na casa de César e a protagonista feminina acabou por ser obviamente Lilicas logo a partir dos documentários, em que serpentes se exibiam na televisão como raparigas delgadas ondeando em pau de cabaret. O meu anjo era agora Gabriel, tínhamos entrado decisivamente em domínios bíblicos. Quanto mais não fosse, por causa do cenário na TV. E agora seria aqui que tudo iria decorrer, para o bem e para o mal. César disse-me, sem medo de me escandalizar, que adorava serpentes. Sem saber porquê, achava-as muito sensuais. À revelia dos seus conhecimentos, era Deus a pôr-lhe a prova a vocação de anjo com o fim último de o fazer progredir na carreira. Ou, se ele fraquejasse, de o manter eternamente no mesmo grau, atingido muito antes de Cristo vir à terra ver o estado das coisas.
Eu disse-lhe que não gostava de tais bichos. Rastejavam. Mas disse tal coisa ainda sem grande consciência de que já era igualmente outra criatura com um parentesco demasiado íntimo com Lúcifer. Estava, ainda e então, naquele limbo onde já não era Clara mas em que também não era verdadeiramente a Lilicas das tentações. Para a Sarita estava reservado todo o luxo do novo romance, em que ela iria atingir a plenitude de se tornar uma verdadeira mulher nos braços do nosso querido anjo Gabriel.
A casa de César, de repente, começou a ficar pequena para albergar toda a gente que, daí a nada, iria entrar no romance, e a mamã diz que, por causa disto, vai transferir toda a acção para o solar recebido em herança pela Sarita, mas que fora, na realidade, comprado por César para acolher a mãe após a reforma depois de passada a sua fase de Maria Madalena, ninguém sabe se arrependida ou não.
Agora, de uma só vez, Gabriel, o personagem do novo livro, tinha numa mesma casa três mulheres que o amavam loucamente. A ponto de cometerem por ele qualquer loucura. Foi, como se viu, um três em um, como num anúncio de TV, champô, amaciador e restaurador na mesma mulher: eu, Clara, a original, pessoa do mundo terreno, Lilicas e Sarita bíblicas, e que, naquele dia, um criador colectivo deste mundo resolveu inventar como se fosse o próprio Deus a refazer-nos a todas da mesma costela de Adão. Era preciso reescrever a história, incluindo a do Menino Jesus que tanta gente influenciou na terra da paródia. Ou não fosse a boa nova do seu nascimento dada pelo anjo de serviço, o nosso querido Gabriel.

Continua,
leiam também "O Estranho Fascínio da Internet, mas este terá de se comprado
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outono


« Responder #12 em: Março 13, 2022, 18:40:48 »

Nem santo, nem demónio, a minha alma está parva. Mas para onde vai esta "estória"?

E essa outra a que só se acede, pelo vil metal, desgraça do mundo, por onde para, e como se está a sair?
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« Responder #13 em: Março 14, 2022, 23:33:47 »

Nem lhe digo nem lhe conto...
Para já, vêm aí a Lilicas....



Lilicas
Chamo-me Lilicas e já entrei na casa de César, juntamente com uma quantidade de serpentes. Estou na televisão. Esta é a primeira casa, aquela onde a Clara, cheia de fome e a rir-se quando César lhe quis ver a cor do soutien, se armou em esquisita, lambendo, apesar de tudo, os beijos dele como quem se lambuza com açúcar e canela de farturas numa feira. Já sei que a casa ficou pequena para tanta gente, com o meu tio velho a ratear nos livros da biblioteca, César a desfazer-se em sumos para a Clara, e Sara, a benigna, toda atarefada com o jantar, que terá de mandar servir a todas estas pessoas pela criada de touca. A mulher perguntou-lhe quantas malaguetas deveria pôr na comida dos hóspedes.
− Quatro, respondeu com um sorriso maroto a bondosa Sarita – vamos apimentar as coisas por aqui. Os senhores gostam de comida bem apaladada.
Ainda hão-de surgir mais personagens. Mas, a grandeza de umas e de outras mede-se pela quantidade de vezes em que umas se hão-de eclipsar e outras aparecer, desgarradas pelo desespero de alguém que as elegeu como bobos da corte, em abundantes despropósitos. Contudo, como a casa de César se tornou num beco sem saída, desculpem a repetição, vamos a correr para o solar. E, se quiserem saber qual deles, não me perguntem, não sei. Ignoro se é o que César comprou para a mãe reformada e para lá instaurar um estúdio de fotografia, onde se iria dedicar a captar as auras, ou se para o outro que, supostamente, os pais de Sarita lhe deixaram em testamento. Posso até afirmar que, neste caso, o documento original foi manuscrito pelo Senhor Abraão em mata-borrão, e  em que a Dona Isabel, distraidamente, escreveu nas costas do documento a receita de uma afamada broa.
Estou a precisar de mais personagens para me divertir como uma mulher de opereta lúbrica. Sinto-me algo sozinha. Gabriel, depois da recusa de Clara em ir para a cama com ele, ainda a levou a jantar fora, dando-lhe inclusive uma lição sobre leite e enchidos.
Sinto-me muito só, loura, morena e burra, apesar de sermos três mulheres cá em casa e mais uns gatos-pingados, umas conjunções e uns pronomes. Tudo para fazer a ligação entre a história. De outra forma ficaria ininteligível. Por tudo isto a nossa autora nos obrigou a mudar de casa. Vai fazer connosco o que muito bem lhe apetecer. Nós, enquanto personagens de livros, não podemos reclamar nada. Só se ela deixar.
Recapitulando, como fez a Clarinha, já sabem que a Lilicas é ao mesmo tempo Clara e Sarita e que esta última é uma mulher virtuosa, um tudo nada mais velha do que o nosso anjo, inicialmente César e agora Gabriel.
Sara casou-se com Gabriel, um jovem de vinte e oito anos, quando tinha idade suficiente para ser mãe dele. Deviam, por isso, ter uma vida descansada, até voltarem de novo para as páginas da Bíblia. Todavia tiraram-nos de lá tal como a mim e ao Gabriel. Só a Clara e o César é que são gente deste mundo. Contudo, andamos todos juntos aqui, neste bric-á-brac literário, a divertir divas e divinos escritores. Somos gente de papel com quem algumas pessoas gostariam de tirar umas cascas literárias. Vamos a isso.
O meu tio-avô continua a rondar os livros nas estantes onde Borges dorme, já morto, sem ter recebido o Nobel da Literatura; Clara está a ver fotografias na sala, com lágrimas de arrependimento nos olhos por não ter deixado que as coisas passassem de uns beijitos… É mentira! – Não se lembram de eu ter dito que ela tinha ido jantar fora com o César?! Era só para ver se estavam atentos…
Já eu, de botas negras esporadas, enfiadas numas pernas de deusa, estou pronta para viver a minha primeira aventura lúbrica no romance onde enfiaram a Clara a catorze mãos e num puro acto de violação. Mas, que querem?! Quando há força não há resistência. Agora tenho de prosseguir nesta minha saga de agente, mais do que duplo, triplo agente, no meio de tanta insanidade.
Nasci para ser sadomasoquista, e, por entre outros apanágios de Lilicas ninfomaníacas, é como me hão-de ter aqui. Também conheço os prazeres missionários, mas esses guardá-los-ei inteirinhos para o meu anjo, que há-de amar-me tanto quanto eu o amo. Porque eu morro se ele não me amar. Ainda não o conheço. Ainda não chegou à mansão com a sua máquina fotográfica a tiracolo, desde que eu e o meu tio cá estamos, o que, sendo verdade, é também mentira. Uma alma gémea nunca se aparca do seu outro eu. E nem precisava de lhe ver a cara para reconhecer o seu cheiro a quilómetros. Já vivemos juntos noutra dimensão, e é por isso que seguimos sempre o rasto um do outro. Mesmo por entre um campo plantado de milho destinado a fazer deliciosas broas. Os nossos caminhos são indeléveis. Já para os outros homens ─ aqui não há mais anjos senão o meu Gabriel ─ hei-de ser uma verdadeira serpente. A minha primeira vítima morrerá às minhas mãos a toque de cintos e cabedais pretos. Uivará de dor e de prazer. A única condição é que eu não parta nenhuma unha. É nelas, longas e pintadas de vermelho na maioria das vezes, que reside a minha força, tal como a de Sanção residia no cabelo dele, um verdadeiro Rapunzel antes de Dalila lho rapar à escovilha à conta de interesses escusos.
Anda por aí um ex-inspector da polícia atrás de mim como um cão. Mas não sei muito bem muito bem o que faz aqui um reformado, quando o lugar dos homens aposentados, mesmo o dos polícias, é num banco de jardim a jogar à malha ou às cartas. Enfim. Daqui a pouco, ou muito tempo, iremos saber por que veio à mansão de César o ex-inspector. Uma coisa dizem dele: tornou-se num impotente na cama. Fala-se à boca cheia de já nem com comprimidos conseguir uma erecção e que, sempre que pode, mira com tremenda avidez todas as revistas pornográficas que lhe apareçam pela frente a ver se tudo se ajeita. Mas sem resultados...
A mamã afirma o seguinte: as revistas estão sempre no local errado. São dedicadas a um falso alvo. O César é quem gosta de pornografia. Inclusive em banda desenhada. De preferência em francês, língua que treinou bastante durante o tempo das férias grandes passadas com a mãe e as irmãs em terras de Maria Antonieta. Também lhe parece que os escritores do livro do meio andaram a vasculhar a vida dela e que o ex-inspector é uma personagem com inúmeras parecenças com alguém das relações dela. O que é de péssimo gosto. Só por essa razão me puseram a saltar no trapézio com ele como dois macacos de circo. Vai mais longe, a nossa mãezinha: ela julga que os pantomineiros de romances terão feito tudo para saber com que Césares, Gabrieis e outras santidades a nossa criadora se deitou. Mas a isso ela vai responder como faria um bom Zé português das Caldas. Que se contentem com a especulação acerca do César e da Clara. O ex-inspector iria ser o meu primeiro banquete, depois de ter tomado o meu banho de sais e de me ter embrulhado no meu famoso roupão vermelho. O vermelho do roupão da velha Lilicas é ainda mais vermelho do que o vermelho das riscas da toalha de César, aquela que estava sempre pendurada na casa de banho do nosso anjo colectivo quando a Clara a ela se limpava depois de tomar um frondoso banho.
Mas, esta casa está insuportável com tanta gente a entrar e a sair. O confronto íntimo com o ex-inspector irá ficar para outras calendas.
A Clara, depois de tanta esquisitice, lá acabou por ir jantar com o César a um restaurante chinês. A rapariga terrena gosta de tudo. Em comida não é esquisita. A esquisitice guardou-a toda para os palavrões que César profere na cama enquanto "fazem amor", ó frasezinha insípida, sem sal nem azeite, com que baptizaram o bíblico acto da fornicação! Também não gosta de leite − a Clara − e o César gosta de todas as mulheres: brancas, pretas, baixas, gordas e magras, nacionais e estrangeiras. Gabriel é o universo feito homem, e, neste caso, com um grande acrescento pelo facto de ser também anjo.
Já o rapaz não vai muito com enchidos. Sabe, no entanto, fazer uma distinção minuciosíssima do salame e de outros chouriços, embora já noutra pele e com outro nome.
Depois, uma das minhas metades, a Clara, quando regressou a casa, ia completamente aturdida com a beleza de César, dizendo com os seus botões: − que rosto, Meu Deus, vai ser uma inquietação... Sou capaz de me transformar numa Alzira baixo-nível, ou mesmo numa Lilicas como a do paraíso, se Gabriel puser o pé fora do ninho de amor onde já estou mais choca do que galinha sobre ovos. Mas, por causa da cria, uma galinha é sempre desconfiada, e Clara não tardaria muito a experimentar esse veneno.
Voltou a casa de César passado pouco tempo, com uma pequena sensação de serpente enfeitiçada por um tocador de flautas. Foi no final de uma certa tarde, depois de deixar o colega do escritório e na sequência de um telefonema entre ambos, que Clara se meteu no Golf preto e rumou à casa de César. Ele dizia que ambos encaixavam bem. Sobretudo na cama. Era como se fossem duas colheres de sopa, a descansar na gaveta de um armário, uma dentro da outra, encolhendo a volumetria e deixando o resto do espaço livre para mim, que, Clara e Lilicas simultaneamente, estive sempre ali com o meu veneno e com a minha luxúria pronta a explodir. Nessa altura, Clara descobriu um pequeno bilhete sobre a cama, do lado onde ele dormia. Quem o pôs lá fui eu, de propósito, para armar confusão e com o claro objectivo de arredar a minha mana da história e entrar a seguir na opereta lúbrica que, daí a pouco, iria começar, depois da constatação de que aquele mundo de sofás existente na sala onde haviam começado os ensaios não dava jeito nenhum para o espectáculo.
Ficou furiosa. Não esperava que o seu anjo tivesse outra mulher. Tinha-lhe garantido, junto à biblioteca, perante a argentina testemunha de Jorge Luís Borges, que depois de já ter sido casado, quando era mais velho − nessa altura estava a meio dos quarentas −, embora não fosse propriamente um valdevinos, também não era nenhuma santidade. Negou, apesar de tudo, a origem concubínica do bilhete, inventando um teatro em que punha a empregada de limpeza como actriz e como sendo a autora do mesmo. Admitiu até, com ironia, que a criatura lhe estava a pedir as contas e amaciador para as camisas…
Não se admire, leitor, que César tenha, numa outra vida de personagem, passado dos vinte e oito nos anos, a sua idade aquando do casamento com Sarita, para os quarenta e tal. Um anjo como Gabriel pode ter a idade que desejar e a que lhe quiserem atribuir, estar em todos os lados ao mesmo tempo e ser personagem em mil e um romances. Os anjos estão em toda a parte, na terra e no céu, e Clara, embora cheia de reticências, loura, morena, burra e esperta em doses muito equilibradas, apesar das muitas dúvidas, não ia prescindir daquele pedaço que falta aos anjos tradicionais e que Gabriel, ali tão especial, tinha de um tamanho idealíssimo. Vingou, então, o sentido da oportunidade, ou, para sermos mais populares, prevaleceu o ditado, “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”. E a Clara há muito que andava com cara de coitada. Havia séculos, ninguém coitava com ela. Isto sou eu, Lilicas, a dizer… A Clara é mais do género “fazer amor”… Como se se pudesse fazer amor a partir de uma receita prévia sobre o amor! Por exemplo, a de trouxas de batata, misturando os ingredientes de acordo com o estabelecido!... O amor que eu sinto pelo meu anjo está mais do que pronto. Não precisa de mais nenhuma pitada, nem de sal, nem de azeite, nem de pimenta, e eu, tendo muito amor e rivalizando com ele, que gosta de todas as mulheres do mundo, é só abrir-me aos seus fluidos, que ainda hão-de ser vistos pela Humanidade como uma relíquia sagrada, se, entretanto, o nosso anjo Gabriel for, antes de mais, o Menino Jesus em tamanho maior, quiçá influenciado pelo filme protagonizado por Tom Hunks, “Quero ser Grande”.
Depois do banho e daquela toalha com riscas vermelhas, César convidou Clara a comer o queijo e a marmelada do frigorífico, mais a sopa que a empregada, a mesma do bilhete, tinha feito. Ela aceitou, toda mel e açúcar, quando os telefones começaram a tocar, ora o fixo ora o telemóvel, a que Gabriel fazia orelhas moucas.
Enquanto comiam, a cabeça da mana era uma roda desdentada. As coisas não encaixavam muito bem. Não sabia se tinha à frente um anjo ou um demónio, com quem, no caso de César ser de facto um parente de Lúcifer, gostara de ter estado na cama, apesar de continuar a desagradar-lhe a linguagem desabrida dele durante o confronto.
Já à mesa, apetecia-lhe fazer uma festa na cara do seu anjo. Mas ele estava ali, mais frio do que as cadeiras de metal onde ambos se tinham sentado para comer a sopa e o pão, ali sobre a mesa igualmente de metal duro e frio. Tudo era puro gelo do Árctico. O calor tinha ficado na cama debaixo do edredão, sobre o qual antes tinha visto o bilhete que eu lá colocara e que tantas interrogações tinha originado.
Se até aí Clara via defeitos no pobre do meu anjo, a partir daí redobrou. E, mesmo ali, a comerem os dois, ele calado como uma múmia egípcia e ela a matraqueá-lo com afirmações do género “você é muito racional” e a obter respostas de idêntico calibre, ocorria-lhe que aquele jantar de sopa e marmelada não passaria do preço barato de uma encontro fortuito presenciado por meia dúzia de Cristos a partir da cómoda, silenciosos como cruzeiros, no quarto de Gabriel onde se tinham desenrolado os trabalhos.
Quando César lhe perguntou se gostava mais do miolo de pão ou da côdea e ela lhe respondeu preferir a côdea, nessa altura Clara teve a percepção de que, tal como dissera ao amigo X, ele, além de ser um mulherengo como o bilhete insinuava, não passaria igualmente de um menino da mamã, a berrar como um danado se alguém a brincar lhe tirasse por momentos a chupeta.
Perante a resposta da Clara sobre as côdeas, deu-lhe a conhecer as semelhanças dela com a mãe e, daí para a frente, nos poucos dias em que Clara ia a casa de César, passou a dar-lhas quando comiam juntos. A ponto de ela as enjoar e de começar a sentir vómitos mal as via, como se estivesse no início de uma gravidez problemática.
A mamã está a dizer-me que estou a ser demasiado má-língua com a mana, desvendando-lhe tão nua e cruelmente a intimidade. Diz também que só ela tem poderes para fazer e desfazer connosco, por ser a nossa dona de pleno direito. Ameaça cortar-me a língua
Respondo-lhe que já vai sendo tempo de nos admitir assim como nos criou: personagens desavergonhadas, justificando plenamente a cena seguinte, um mènage à trois, embora este trio não seja o trio convencional da orgia mínima como é o mènage. Nunca se esqueçam de que uma de nós só pode entrar em cena se a outra sair.
Para já, vou limitar-me a ser espectadora e ao mesmo tempo crítica da irmãzinha. O Gabriel quero-o inteiro para mim, com todas as virtudes e defeitos, mais umas do que outros. Até porque ele é um ser celestial.
Daqui a pouco César vai convidar a Clara para dormir cá e eu, como os dois ocupam pouco espaço na cama encaixados na posição de colher, vou ficar ao lado, a apreciar o panorama e a ver televisão, aguardando com paciência a minha oportunidade. Deixei as botas e as esporas, os cintos e as correias no carro do meu tio-avô, de quem sou motorista, e que, segundo os donos de outro romance, irão servir para vergastar um ex-inspector impotente, fantasioso e consumidor compulsivo de revistas pornográficas com que tenta erguer uma catedral há tempos em derrocada irreversível. Mas, para já, não preciso dessas coisas.
Clara anui ao convite, é verdade, mas, antes, directa como sempre, esta minha irmã, pergunta a César se ressona. Não suporta trombones na cama a intercalarem o ronco com apitos de comboios da Idade da Pedra, mudando de ritmo ao sabor da respiração.
Ele diz que não sabe. Anjo, Gabriel dorme sozinho e pudico todas as noites com as cuecas enfiadas, porque dormir nu não é do seu agrado. Nisso é efectivamente a alma gémea de Clara. Clara também gosta de um pedaço de civilização a tapar-lhe as virtudes.
César devolve à minha outra metade a pergunta e obtém um peremptório “não” acerca do ressonar. Clara diz que não ronca, mas eu, vendo chegar a minha vez de meter o bedelho, desato a rir à gargalhada com o engano da minha irmã. A Clara é uma verdadeira locomotiva da era industrial.

Continua

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« Última modificação: Março 18, 2022, 03:44:36 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #14 em: Março 20, 2022, 19:27:03 »

Três pessoas numa só, anjos diabos e ninfomaníacas. Mas onde é que eu já li isto?
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
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Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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