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Autor Tópico: A Sátira do Livro Roubado ( texto registado na IGAC)  (Lida 23410 vezes)
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Nação Valente
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outono


« Responder #30 em: Maio 26, 2022, 21:35:58 »

Cada cabeça sua sentença
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #31 em: Maio 28, 2022, 17:17:19 »

Assim na terra como no céu, Nação Valente





Lili

O que tem de ser tem muita força, e ainda mais se não passarmos de pessoas de papel como nós aqui no livro. Por isso, lá terei de continuar com a saga dos três em um, depois de, a partir de uma costela de um Adão contemporâneo, me terem transformado numa criatura triplicada e a defender interesses divergentes, como se eu fosse uma espia ao serviço do amigo e do inimigo simultaneamente.
Como irão ver, não passo de uma agente neutra. Ou, para ser mais precisa, de uma figura decorativa, na maior parte das vezes como se fosse uma ridícula cadela de louça com sete mamas, colocada à entrada de uma casa de gente parola.
Contudo, por agora, compete-me dizer à mana que sim senhor, que está tudo muito bem quanto às cobras e lagartos que terei de largar sobre César. Não seria bem desta maneira se a mamã não concordasse com a Clara. Mas, assim, não posso refutar a ingrata missão de lançar o meu querido Gabriel às feras, quando o que me apetecia era irromper por ele com a voragem do meu amor. Queria permitir-lhe soltar todos os palavrões do dicionário, que tanto gozo lhe dão, enquanto a mais completa felicidade tomasse conta de mim, no auge dos meus prazeres de diabinho indomável.
A minha criadora acaba de me conceder esse desejo, como se ela fosse um novo Aladino de saias, embora eu não tivesse de me esfregar nem rebolar em nenhuma lâmpada. É o que faz não cedermos logo à primeira. Há sempre uma margem de manobra negocial. Isso pode trazer-nos grandes benefícios.
Vamos à história:
Um dia, não sei ainda quando, neste romance são muitas mulheres a disputar o meu anjo, hei de entrosar-me de novo com César na arte do coito. Mas, desta vez, sem ninguém ao lado fingindo-se a dormir, como a Clara, sempre reticente ao léxico de Gabriel, enquanto ele vai derramando dentro de cada mulher os seus sagrados fluidos, como se fosse Deus a fecundar a Humanidade inteira.
Por outro lado, nem pensar em armar, desde já, confusão, sem antes implementar com o ex-inspector a acção curativa do seu mal. Tenho de relegar para o passado a história das revistas pornográficas, a que sistematicamente ele recorre, e ver se algo acontece com a sua virilidade, presentemente em período de recolhimento.
E Gabriel sem chegar da casa onde foi tirar fotografias ao piano, para convencer a Sara de que foi mesmo a Coimbra, quando, toda a gente sabe, o antiquário este mês não lhe pagou o ordenado, por ter investido todo o dinheiro numa nova sociedade em que Gabriel tem também uma quota. Por isso o rapaz foi ao velho Banco Ambrosiano abastecer-se de euros. A Sarita, apesar de nos ter convidado, a mim e ao meu tio-avô, para ficarmos na casa dela, não passa de uma forreta. Não me admirava nada se nos desse de jantar broa com azeitonas e água-pé. Aquela palidez de Gabriel deve ser fome, e o facto de a Sara ser uma boa cozinheira, com especial aptidão para fazer batatas recheadas, deve ser uma treta tão monumental como o Coliseu de Roma. Uma ruína em pé, é o que a Sarita é. Se não fosse a empregada, que até da espinha de uma solha consegue fazer uma deliciosa sopa de peixe, o meu amor já tinha morrido de inanição. Quando Gabriel anda sem fundos, nem sequer lhe dá dinheiro para ele ir comprar uma pizza , ou um hambúrguer, enquanto ela se perde lá pelo hospital a emprestar o ombro aos antigos apaixonados para eles carpirem as mágoas. Depois, admire-se, leitor, que Gabriel recorra aos bancos privados para se autofinanciar!
A mamã está a fazer-me sinais para acabar com a conversa sobre a mana velha. Diz-me que estamos todos a ser personagens demasiado atrevidas e a pretenderem fazer dele gato-sapato. Acusa-nos de andarmos sem regras, incoerentes e a dizer o que nos dá na gana. A ponto de a transformarmos numa escritora frouxa, tal como fizeram os outros senhores, que até o nome dela, e parte dos números do seu bilhete de identidade encriptografaram no romance do meio. Julgavam, tontos, que ela não os descobria. Sobretudo com a minha ajuda, vinda das bandas do demónio e mancomunada com ele para fazer a vida das pessoas num inferno.
Bom, mas, sem perda de tempo, como esta casa está cheia de gente - já não sei se a casa é de César ou de Sarita, porque o suum cuique, aqui, num romance sem direito, nem esquerdo, nem passado, nem presente, nem meio, nem principio definidos, não tem importância nenhuma – vou tratar de procurar um sítio sossegado para despir as minhas calças de cabedal negro e lançar-me, toda sedas e veludos, de encontro ao peito do meu anjo, que, dizem as minhas antenas de captar manifestações sobrenaturais, está para aí invisível e a descodificar o ambiente adensado por estas paragens.
O melhor é ambos utilizarmos o espaçoso jipe dele. Como os dois temos habilidade de contorcionistas, não podendo usar o estúdio, por causa da parafernália de instrumentos fotográficos, decidimo-nos pela viatura. César poderá, até, com o último modelo da máquina que traz sempre a tiracolo, tirar uma foto à excelência do acto bíblico idêntico, ao descrito no primeiro romance, afinal a razão de a minha autora chegar agora à ribalta.
Gabriel está bem perto da porta de casa e já cheirou o meu perfume feminino. É uma das coisas que ele prefere, relativamente à arrapazada Sarita. A Sarita, sendo mais parecida com a Clara, só gosta de usar cheiros de homem. Sou mesmo fêmea, e das boas. As outras duas são uma reles imitação. Donde se prova que, sendo uma terrena e outra bíblica, as duas, a Sarinha e a Clara, têm uma vesícula perigosa. Frascos de cheiro. Muito mais do que comigo, é preciso redobrar-se de atenção com elas.
E, é claro, já estou junto do meu amor, no jipe, sentada sobre a roda do volante, depois de nos termos afastado lá mais para o fundo, para a beira do rio, onde Santo António já deve ter acabado a pregação. Nenhum de nós faz ideia qual a moral do sermão de hoje, se o bondoso santo não tiver enveredado pelo tema da sátira de livros saídos do caixote de lixo de uma editora com visão de raio x acerca de lucros.
O local está deserto, e Gabriel já nem se lembra da desculpa que tem de dar à mulher por causa da ausência de um dia inteiro. Pensa apenas numa qualquer posição do Kama Sutra, adequada ao coito entre nós, daqui a pouco. Segredo-lhe para dentro do bolso da camisa às risquinhas vermelhas e brancas, ali sobre o peito, que, se ele não me amar ao vivo e não em faz-de-conta como da outra vez, com a Clara ao lado fingindo-se adormecida, sou capaz até de lhe arrancar o coração aos beijos, ou à dentada, enquanto o sinto a bater desordenadamente sob os lábios e boca, de um vermelho carnudo que o desejo torna ainda mais vivo. Oh! Não sei porque terão os terráqueos inventados os botões e o fecho-ecler. Mas não há nada que resista aos dentes de uma mulher com cio permanente de gata!
A minha única preocupação é que Gabriel, depois, não entre em casa com umas calças estropiadas por uma Lilicas doida de excitação e a desbravar os caminhos do êxtase com a voracidade de uma máquina de terraplanagem.
A Sarita costuma dizer que quer morrer nos braços do seu amor. Por sinal, o amor dela é também o meu amor, e a Clara diz mais ou menos a mesma coisa, livre daquele pedaço de civilização a que chama cuecas. Já eu não quero morrer coisa nenhuma, quando tenho algo tão bom para viver. Pontos de vista de raparigas pudicas, que não comem nem deixam comer…
O meu amor auxilia-me a libertar-me dos cabedais. São a minha marca de prestígio no mundo inteiro. E há horas em que os atilhos são uma perversa invenção da Humanidade. Devíamos andar nus. Ou, então, ir para um país tropical, onde uma simples parra fosse a única vestimenta permitida, tanto a homens como mulheres, e só para manter a tradição bíblica. Os nossos lábios enfrentam-se avidamente neste frenesim, quando as mãos são semelhantes a dedos de pianista dedilhando teclas. A ida de Gabriel à casa de uma amiga da mamã fazer a fotografia à relíquia inspirou-me. A minha língua hoje está solta como nunca. Sinto-me o cúmulo da metáfora. O prazer connosco é sempre ao rubro. A boca do meu anjo provoca em mim autênticos delírios de poesia de alcova.
De repente, um lampejo de inteligência traz-me à ideia as leis da física, e fico a saber a razão pela qual César tem agora os lábios grossos, bem diferentes das linhas fininhas que a mamã lhes deu no romance inicial, quando lhe desenhou o perfil. O calor dilata os corpos e, de tanto beijar e ser beijado, a boca do meu anjo inchou naturalmente, sem botofe ou coisa que o valha, nem operações plásticas, nem nada. Ou então foi por simpatia com as etnias de Angola, para onde foi ainda bebé, ou com as de Moçambique, como se diz noutro lado da farsa que é a nossa vida de personagens de romance.
Não interessa, para o caso.
Por agora, depois de as descalçar quando tive de despir o couro das calças, vou enfiar de novo as botas esporadas. Dão um ar mais velhaco à cena. Além de que não posso esquecer a outra missão. Tenho de a cumprir no decorrer desta história. Terei de usar o chicote sádico-erótico com que tentarei a cura de um homem profundamente desgostoso por causa do seu comportamento murcho na cama.
Ah!, mas vou deixar-me de tantas lucubrações!... São poucos os instantes com o meu amor… Ele já começou a desfolhar as páginas do dicionário e a dizer aqueles palavrões excitantes, que lhe fazem bem à alma e lhe apaziguam os sentidos... Querido Gabriel... Nunca conheci ninguém como tu... Nem no paraíso onde fui serpente enrolada em macieira e veneno de maçã-de-adão alojada simbolicamente no pescoço do meu amor, que agora mordisco... Adoro cavalgar como água celeste no teu corpo de Adónis, com a roda do volante atrás de mim como se tivesse de fazer todos os caminhos da vida ao contrário até poder chegar a ti!... Oh!... Quem me dera ter todo o tempo do mundo e nunca mais sairia de dentro deste jipe, depois de um coito entre um anjo e uma pervertida, juntos na terra por Deus certamente com um qualquer propósito ainda desconhecido. Mas, no fim, na hora do apocalipse, tudo será revelado… E este veículo adquiriu para mim a dimensão de templo… Sempre que possa, recolherei aqui para meditar nos segredos do amor…Oh!...





continua

E é claro que quero muito que os meus leitores leiam também "O Estranho Fascínio da Internet"
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:15:11 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #32 em: Junho 04, 2022, 21:28:18 »

Que venha a seguinte, com ou sem virgindade.
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #33 em: Junho 05, 2022, 00:16:05 »

É para já....



Hoje o nosso encontro foi muito rápido. Teve de ser assim. O dom da invisibilidade de Gabriel desvanece-se logo, mal a sua carne entre em contacto com outra. Muito mais quando tem pela frente um braseiro como a minha própria carne. Por isso teve que ser um coito relâmpago. Mas não deixou de ser um olímpico e divinal coito enquanto durou. O bom acaba depressa. E eu não poderia permitir que o meu anjo ficasse conotado, aos olhos de uma terriola inteira, como um mulherengo incorrigível e incapaz de resistir a uma burra de saias. Neste caso, de calças e casaco de cabedal. Quero que ele seja venerado por toda a natureza tal como eu o venero. Os peixes, quando deitarem a cabeça de fora, como fazem com Santo António para ouvir a palavra de Deus, terão também de o reverenciar, tal como as aves do céu, antes que uma gripe qualquer se abata sobre elas e lhes limpe o sarampo.
A mamã está outra vez a chamar-me a atenção. Continuo a comportar-me como uma personagem rebelde, que entrou em cena para uma ação completamente diferente deste meu papel de agora representado à revelia dela. Como gémea da Clara já avinagrada com o meu anjo, a autora atribui-me a função de vasculhar o passado, o presente e o futuro de Gabriel, descobrindo-lhe todos os podres. Mas eu continuo a achar que o meu amor, para além de gostar desmesuradamente de sexo – isso não é defeito nenhum, antes pelo contrário… - não tem quaisquer malformações anímicas ou morais. Ele é um ser mais do que perfeito, um verbo que uma mulher pode conjugar em todos os tempos e em todas as línguas. Gabriel tem uma vocação universalista. Sobretudo na cama. Se algo de mal tenho a dizer é sobre Clara. É uma idiota chapada, alérgica aos perfumes femininos, que, depois de se ter empanturrado com as côdeas do pão em casa de Gabriel, quando ele ainda se chamava César e tinha quarenta e cinco anos, anda a difamá-lo e a desnudar-lhe a intimidade. Nem sequer tem respeito pelas sagradas imagens de Cristo crucificado da cómoda, no quarto onde, na maioria das vezes, têm lugar os grandes banquetes de César. E se anda por aí tanta gente à procura do cálice da última ceia e de outras relíquias sagradas, o local mais provável onde tudo isso possa estar é, sem sombra de dúvida, o quarto de Gabriel. Ou, então, à vista de toda a gente, na mesa metálica da cozinha, na fruteira, disfarçado debaixo das peras e maçãs que ambos comiam depois da sopa feita pela mulher-a-dias às quintas-feiras.
Eu para aqui, respondona, a discutir com a mamã, e o Gabriel com um problema sério para resolver quando tiver de enfrentar a Sarita, já de novo aprumado e com o ar de anjo que o torna tão sublime!
Já estou outra vez artilhada com o meu fato preto. Se fosse uma mulher comum, estaríamos agora os dois a trocar impressões, poucas, é certo, devido à timidez engendrada pela mamã para Gabriel, sobre o que se passou entre ambos. Mas comigo não é preciso nada disso. Antes de nos amarmos já eu conhecia a natureza e as sensações do meu amor. Toda eu sou de prés. Dito de uma forma mais popular, antes de ser já era, como a pescada. Nem só a Sarita é de outra dimensão. As minhas origens são também lá. É daí que conheço Gabriel, embora César, o barro onde ele foi esculpido, seja de um outro mundo e de uma matéria bastante mais pesada do que o éter, onde personagens bíblicas como nós os três nascemos.
A minha criadora, com cara de poucos amigos, ordena-me que, ou entro de uma vez por todas no trilho iniciado pela ciumenta Clara, ou então retira-me a palavra e concede-a a outra personagem. Independentemente de eu ficar ou não prejudicada em número de páginas… Chama-me malcriada, uma luciferina rapariga, para quem a paciência dela começa a esgotar-se, e pergunta-me se eu gostava de continuar por aqui.
Respondo-lhe, obviamente, que sim. Quanto mais não seja, por causa de Gabriel, porque, quanto ao meu tio-avô, de quem sou privilegiada motorista e por quem devia nutrir algum amor familiar, as coisas não são como deviam. Ele está farto de desdenhar, quer do meu nome, quer da minha certidão de nascimento. A ponto de dizer, à boca pequena, que já me conheceu três registos. Mas, pelo meu anjo, sou capaz de tudo, e insisto com a autora para, pelo menos para já, não me obrigar a uma investigação kafquiana sobre Gabriel. Para isso está cá o ex-inspector, com quem ainda tenho de trocar umas impressões do género do sadomasoquismo por causa da compulsividade dele quanto à pornografia. É para ver se se cura de um vício que às vezes o deixa seriamente envergonhado.
A mamã reconsidera e anui ao meu pedido, dado eu não ter tido ainda uma verdadeira oportunidade de interagir com o homem. A contrapartida é, por agora, dar a vez a outra pessoa.
Feito o acordo, tenho de verificar se Gabriel não leva para casa os meus vestígios, um cabelo com a raiz preta retinta, seguido de um louro burro ou de um ruivo mais inteligente. Ou outra coisa qualquer que um ADN mais preciso possa revelar à ciência criminal. É no mundo do crime que o meu “pecado” com ele se insere, à luz de olhos humanos excessivamente curtos. Já para nós os dois, coitar, sempre que as circunstâncias o permitam e com quem nos apetecer, é, simples e olimpicamente, uma maravilha.
Gabriel confere de novo se as fraldas da camisa estão no sítio, penteia o cabelo dourado e, fazendo-se mais engraçado do que já é, acaricia o beijado e rebeijado bolso da camisa. Vai levar os meus beijos para casa, diz ele…
Pergunto-lhe, a rir à gargalhada, o que fará com eles se a “mãezinha” Sarinha os descobrir, enfiados no bolso e a quererem deitar a cabeça de fora como se fossem peixinhos atentos e semelhantes aos do querido Santo António. São demais estes “jaquinzinhos”. Ainda bem que os livros não têm cheiro. Ele responde-me, igualmente a rir, que seria talvez bom provocar a mulher com tais espectadores. Era para ver se, de uma vez por todas, ela deixava de querer coitar sob aquelas luzes intensas de semáforo, que ultimamente têm deixado os olhos do meu amor vulneráveis. A ponto de o obrigarem a usar óculos de sol.
De repente olho para o meu pobre querido, lindo de morrer e, depois de se derreter, pela terceira vez hoje, no corpo de três mulheres diferentes, satisfeito como um nababo e cansado como um peregrino sexual, já sinto remorsos pela minha futura traição. Tudo por causa de uma gémea maluca e de muito mau gosto, já para não falar na autora. Claramente, a mamã tomou as dores dos filhos mais velhos, a Clara e o César. Não era melhor a mana terráquea divertir-se com o Gabriel, como eu própria, e deixá-lo em paz? Irra que irmã rancorosa me haviam de arranjar! Eu bem a percebo. Ela queria era casar-se de véu e grinalda. Sobretudo, com flor de laranjeira a simbolizar uma virgindade há muito escoada ralo abaixo às mãos de um homossexual, que, a muito custo e só para disfarçar, talvez até embriagado, conseguiu consumar o ato. Aberto o canal, agora desencadeou-se nele um mau tempo com a força de um tornado no epicentro. (Não sei se os tornados também têm epicentro ou se, a centros com “epis”, só têm direito os tremores de terra… – aqui fica a ressalva, para não passar ainda por mais burra…)
A Clara já não casou cedo. Além do mais, não logrou com isso grandes prazeres, pudesse embora o Paulo ter sempre feito um bom teatro nas alturas cruciais:
– Oh! meu amor! Oh!, como me sinto o mais ditoso dos homens, quando os nossos fluidos se encontram na súmula sagrada criação bíblica. Oh!, que luz e sedução irradiam do teu corpo, minha deusa do Olimpo, a mais maravilhosa das criaturas existentes entre o céu e a terra! Como sou feliz! Amo-te tanto! O nosso amor foi talhado no céu, a golpes de luar, com o aval de todas as estrelas e a assinatura do Sol representando Deus, que, logo no nascimento, traçou o nosso destino! Oh!...
Vá leitor, junte-se à minha à gargalhada, esbanjada com um prazer dos diabos, enquanto imagino a cara de delambida da minha irmã a revirar os olhos e a pensar que morreu no fim da peça, quando, afinal, não passou de uma atriz completamente enganada. E, além do mais, uma atriz de segunda categoria.
Aqui e agora, só porque Gabriel é um inexperiente em arte dramática, Clara quer despejar sobre ele todas as frustrações, usando terceiros inocentes para descobrir com que cobertores o meu anjo se embrulhou na infância, no tempo das fraldas e do ranho, e com quantas mulheres se deitou? Haja santa paciência! Lá porque o rapaz, mesmo nos quarenta e cinco anos da literatura inicial, quando os dois se encontram pela primeira vez, possui em casa uma central telefónica onde as chamadas femininas fazem fila, não é caso para tanto! Mesmo tendo as raparigas de esperar para serem atendidas! É uma bênção para qualquer mulher ir ao quarto de César e à presença dos Cristos. E, por isso e mais alguma coisa, não é razão para lhe fazerem uma devassa à vida desde que nasceu. Sobretudo porque nunca ninguém sabe onde uma investigação de natureza tão sórdida pode levar. Além do mais, qual o meu interesse em desencantar uma tal woman in red para desencovar as misérias antigas de César antes de nos encontrarmos neste cruzamento da vida? E, depois, que me importa se ele, na opinião da Carolina, é ou não o maior pervertido do planeta, quiçá do sistema solar inteiro? Quero lá saber do rasto dele, em que se incluem dois filhos e a ex-mulher, a Patrícia! Até por esta, há pouco, ter padecido de um tumor na cabeça, e a quem, sinceramente, desejo as melhoras. Ela não deve ir para casa do nosso Pai senão na altura devida.
Falando do Pai, estou obviamente a falar de Deus, porque, quer queiramos quer não, Ele ainda é o Presidente do Universo. Como todos sabemos, uns melhor e outros pior, o Além é um enorme órgão colegial onde existem pelo menos três repartições importantes: o céu, o purgatório e o inferno. Porquê sujeitar-me então a ir procurar pessoas das antigas relações de César se a Clara, lá no outro livro, já fez essa figura de parva, quando se apresentou à ex Carolina e ambas cortaram na casaca do meu anjo como quem está a esquartejar cadáveres? Não basta o que fizeram os “parodiantes” ao esfrangalharem o primeiro livro da mamã para ver qual a ponta por onde nos podiam agarrar? Além disso julgam que vou a casa da legítima ex, a Patrícia, fazer figura de ursa, macaquinha de circo, ou até de trapezista sem rede para me esborrachar no lajedo? Trapezista já fui uma vez. “Trapezista” era uma das minhas muitas alcunhas do livro do meio, quando era motorista do meu tio-avô. E, sobretudo, não se esqueçam que o carro é dele…Por tudo isto, nem pensar em semelhantes coisas! Até porque não me interessa conhecer as queixas de uma ex como outra qualquer, ressabiada por o meu amor escrever poemas nos guardanapos de papel, nas esplanadas, a todas as mulheres com quem se cruzava e com quem poderia divertir-se. Não preciso, nem quero, perguntar nada a ninguém. Sob pena de anular a minha reputação de mulher luciferina. Eu, como o infernal patrão, tenho conhecimento das coisas por vias não convencionais. Para substituir o telefone tenho a telepatia, para me locomover uso o teletransporte e a invisibilidade, que, no mesmo instante do tempo terráqueo, me colocam, a mim, criatura celestial, embora moradora nas catacumbas, em todos os locais do universo. O carro do velhote é apenas um disfarce. E Deus nos livre de alguém saber que nem sequer a carta de condução tenho… Como poderia uma Lilicas Cláudia, loura e burra, de acordo com o papel que me cumpre representar, aprender as curvas e contracurvas do Código da Estrada? Curvas por curvas, bastam-me as minhas. Sou boa como milho quando, se tiver um parceiro à altura como o meu querido Gabriel, vai tudo a direito. A ponto de pôr um quarteirão inteiro a coitar por auto-sugestão.
Depois, se Gabriel ainda está aqui a meu lado, a ensaiar mentalmente o que há-de dizer à Sara quando chegar a casa a propósito da “ida” a Coimbra, como poderei telefonar-lhe a dizer que eu, Lilicas (ou Clara) fui fazer exames médicos, incluindo ao HIV, indo depois mostrá-los ao consultório de uma doutora parecida com a querida mulher do meu anjo, com o mesmo ar arrapazado da Sarinha e, acima de tudo, com a mesma especialidade clínica dela? Se pudesse fazer aqui uma remissão para o livro inicial veriam que, de facto, a Clara, um dia, foi ao médico saber se tinha alguma doença ruim. Mas, como não posso referir-me ao passado, nada mais acrescento no presente. Deixo apenas umas pequeninas reticências…
Por aqui, por estas bandas, a lógica é a mais pura das batatas, as mesmas batatas de que, algures num outro livro, há uma receita com recheio, escrita no verso de pelo menos um manuscrito, datada, segundo alguns membros de um gangue, do tempo de Maria Madalena, a quem atribuíram a autoria da receita (não do manuscrito…) metendo os autores, depois, os pés pelas mãos quanto à datação do mesmo e da receita. Vieram, entretanto, com a desculpa de que não podia ser, por causa de, nessa altura, os tubérculos não serem conhecidos na Europa. Os tontos nem sequer equacionaram a hipótese de as batatas serem uma das espécies de semente que Noé guardou na grande arca aquando do dilúvio, e que, devido à humidade, ganhou grelo, apressando-se ele a lançá-la à terra mal parou de chover.
Depois, foi um segredo bem guardado…Nessa altura Noé, reforçando a inspiração de ter construído a arca metendo dentro tudo o que lá meteu, entendeu o facto como um sinal de Deus. Deus não iria, ao menos dessa vez, levar por diante a ideia de um apocalipse regado a chuva. De outra forma, se não houvesse em breve terra firme e seca para lançar a batata grelada à terra, Deus antes a teria deixado apodrecer. Entretanto só as pessoas com forte ligação a Jesus comiam batatas, recheadas ou não, porque elas, depois do que acontecera na arca, tinham um poder sagrado. Potenciavam a capacidade de fazer milagres. Sobretudo em caldeiradas de peixe. Os peixes sempre foram um verdadeiro símbolo de Cristo, embora Jesus preferisse o pão com ou sem manteiga.
Não devia dizer isto, mas eu e o meu tio-avô estamos enterrados nesta história até ao pescoço. Ele é um dos mentores do clube dos Recolectores Ambidestros de Venenos Vacinas e Antídotos, embora eu seja apenas uma espécie de bobo da corte. Para alguns um agente duplo, dado ter uma relação pró matrimonial com um membro de um gangue que o meu tio-avô e os comparsas querem derrotar.
Agora eu, Lilicas Cláudia, desço finalmente do Jipe onde fui ao céu com o meu anjo. Ambos causámos enorme surpresa em toda a legião dos serafins, anjos, querubins e santos, que, à revelia do Altíssimo e imitando a curiosidade dos terráqueos, não deixaram - vi muito bem - de espreitar para dentro da viatura, quando o meu amor exercitava a gramática da Escola César/Gabriel. Apesar de eu, desta vez, por o local ser um pouco exposto aos olhos do mundo, apenas ter lançado pequenos ais e uis em falsete para não acordar os animaizinhos da terra, uma vez que eles são todos dotados de ouvidos capazes de captar os mais ínfimos decibéis seja qual for a origem do barulho.
Gabriel já está visível e bonito como sempre, dirigindo-se à porta de casa. Vou ver se, indo por atalhos ou, mais concretamente, por teletransporte, consigo chegar antes dele, fingindo entretanto uma grande surpresa quando a Sarita no-lo apresentar, a mim e ao meu tio-avô.
A mamã diz-me que já está mais contente comigo. Indirectamente, é certo, mais lá fui tirando para fora as fraldas à vida de César, tal como ele há pouco tirou as da camisa. Os nossos propósitos são sempre os mesmos: coitar. Oh! e como nós ficamos felizes e olimpicamente bem coitados! Coito assim há só um…



Continua.

O recado é o do costume... ler o Estranho Fascínio da Internet
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:16:39 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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outono


« Responder #34 em: Junho 12, 2022, 18:12:31 »

Coitados...
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« Responder #35 em: Junho 12, 2022, 18:46:51 »



César

Vê-se mesmo que estas duas, a Clara e a Lilicas, não gostam de fazer nada! Preferem o jogo do empurra. São estúpidas como as galinhas!
Pelo que estou a ver, ainda vou ter de ser eu a relembrar pecados velhos, quando a doce Clarinha queria morrer em mim e por mim. Mas, afinal de contas, ela não queria senão enviar-me para o maligno a toda a pressa. Mesmo antes de eu ter tempo de arranjar um confessor para lavar os meus pecados. Por vontade dela, eu não teria podido providenciar uma casa condigna para deixar sequer os meus Cristos a alguém de confiança. Nem mesmo o do interior oco, que um dia foi o meu veículo para transportar uma boa pitada de droga numa das minhas viagens ao mundo do ópio. Já nem sei se às minhas custas se a expensas da fundação, que me pagava todas as despesas sem quaisquer problemas. Eu era o director…O desejo da Clara e da autora, depois de a maldita hérnia discal me ter poupado a coluna e a vida, era que deveria ser a estúpida hepatite, (ou era sida?!) a mandar-me para o além, sem eu ter encetado negociações com o pároco da capela de S. Salvador do Mundo para colocar lá, em imagens quintuplicadas, Cristo meu protetor. Ele que viveu todo o tempo no meu quarto, quando o meu corpo se unia ao de todas as mulheres, conduzidas por Deus à minha cama, cada uma como mais uma ovelha destinada ao sacrifício para salvação do mundo.
Gabriel está à porta, quase a entrar, e a Lilicas, mais o milenar tio-avô, já estão dentro, com a rapariga a preparar um grande golpe de teatro para enganar a Sarita, fingindo que ninguém se conhece. Mas, como toda a gente sabe, algumas das personagens femininas, incluindo Sarita, já estiveram até na minha cama. Já nos lambemos de cima a baixo como gatos remelosos acabados de nascer para a vida. E não tardará nada até que os outros homenzinhos e mulherzinhas, com papéis mais modestos na trama, com receio de certos gangues, se vão esconder no meu colchão. Devem estar carregados de medo de serem descobertos e atirados para o inferno por uma bala que, à partida, traga logo a sentença de morte de cada um já transitada em julgado.
Mas, para já, não vou levantar mais véus. Vou apenas pedir ao mano Gabriel que aguarde mais um pouco fora de casa, até eu revelar como é que uma Clara apaixonada por mim, como se eu fora o próprio Jesus, de repente, começa a dizer-me, chorosa e no maior embuste do século, que tinha ido fazer exames à Sida e que o resultado fora positivo, aconselhando-me depois, com o maior descaramento, a fazer também os testes. A malévola estava a transformar-me, em faz de conta, num transmissor do vírus, por causa do catálogo de mulheres com que, ao longo da vida, tinha coitado sem me preocupar sequer com o assunto. Na verdade, eu, como sempre fora tratado como um deus, variasse embora de nome esse deus ao sabor da fantasia das minhas musas, nunca pus a hipótese de algo tão ruim ter escolhido os meus humores íntimos para se reproduzir. Nunca me julguei prato para vírus idiotas, e, muito menos, para minhocas de sepultura, onde, à fina força, no embuste mais do que provado da minha primeira vida de personagem, a doida da Clara lançou um fato Príncipe de Gales. Era para os bichos o roerem, juntamente com a minha carne, para onde uma renovada peste negra, vinda diretamente do século XIV, convergira em tropel, a fim de encher o meu corpo de bubões, que só postumamente ficariam satisfeitos.
Não dei grande crédito à advertência. Eu, que fora concebido no coro de uma igreja, com os santos todos a protegerem-me, e alguns a serem meus padrinhos espirituais, não devia temer nada disso. Vi logo que toda aquela telefónica conversa não passava de maldade de uma mulher inconformada com o fora que estava a levar, juntamente com um eufemístico pontapé. Só uma verdadeira burra não entenderia isso. E, como de jerica ela não tinha nada, vi logo que aquela algaraviada não passava de vingança pura, bem como de uma tentativa frustrada de me pregar um grande susto.
Mesmo assim telefonei-lhe. Tudo não devia passar de um engano, garantira-me ela, e iria repetir os exames.
Entretanto, já Clara se transformara numa velhaca, a mesma que, numa versão mais atenuada de Lilicas paninhos quentes, anda agora derretida, quer comigo quer com o Gabriel. Como toda a gente já sabe, é-lhe indiferente ser coitada por mim ou pelo mano. Dada a sua natureza perversa, e com especialização em Cambridge, na disciplina sexual de sadomasoquismo, para ela seria um pormenor irrelevante coitar até mesmo com um sapo como se o animal fosse um verdadeiro príncipe. Entretanto, anda agora cheia de pruridos a discutir com a mamã, negando-se a espetar-me o punhal envenenado nas costas. Contudo, sendo ela mulher, demoníaca ainda por cima, vai acabar por fazê-lo, mais tarde ou mais cedo. A menos que me antecipe e lhe retire o gozo perverso da delação.
Depois, ou antes de mais, quando eu estava a cortar as rédeas à Clara, já Gabriel, de casamento marcado com a Sarinha e com a quinta dimensão, a rapariga, meia Clara do original, meia Lilicas do romance do meio, andou por todo lado a tentar saber coisas sobre mim. Por entre muitas verdades, trouxe no alforge das investigações um monte de mentiras sem nexo, depois aproveitadas para modelo e inspiração para alguém fazer um brilharete à nossa custa. A mamã escrevera no primeiro livro que, devido ao meu gosto exacerbado por sexo, talvez tivesse sido abusado na infância por um tio. E como a Clara era psicóloga, um dia comentou o assunto com o colega lá no Gabinete de Psicologia onde ambos trabalhavam. Então, no romance do meio, para limparem a infância de Gabriel, fizeram uma analogia parva com a meninice de Jesus, dizendo que era preciso reescrever a história, desta vez bem melhor do que a mamã o tinha feito com César... A seguir, numa narrativa relativamente bem engendrada, sem omitir os atos mais banais da vida de um ser especial ─ sei lá, apanhar o sarampo ou a varicela ─ tudo passaria a fazer sentido na vida de Jesus e de toda a gente, tapando-se, definitivamente, a boca aos especuladores. Sobretudo aos internacionais, que jamais haviam aprofundado a vida do Mestre pegando-lhe pela infância. A meninice condiciona sempre a vida de um homem. Mesmo que esse homem faça parte de uma trindade divina e tenha, eventualmente, em noites de sono muito pesado e quando rapazote, feito chichi na cama. E as coisas passaram-se então assim, depois de um professor maluco, com ligações ao livro do meio e com fortes sintomas de Alzheimer, avivada pela ingestão de uma poção de erva semelhante à Jurema brasileira, ter alucinado e visto uma chupeta bíblica. A chupeta, segundo este doido varrido, seria o objecto sobre que haveria de incidir a pesquisa, para se desvendarem todos os mistérios relacionados com O Filho de Deus. E os três pergaminhos onde a temática estaria à espera de ser descodificada, de acordo com os últimos boatos, andariam dispersos pelas bibliotecas e adelos de uma terra pequena, à beira de um rio. Esses manuscritos, segundo uns, remontariam, com o fulgor da minha gargalhada irónica, à Idade da Pedra Lascada. Já para outros, os papéis seriam do tempo de Maria Madalena, e o mais certo é ambas as teorias estarem redondamente enganadas. Ainda relativamente aos manuscritos, houve também uma tese que os dava como do tempo de Colombo. Mas rapidamente foi colocada de parte por causa das batatas. Julgo que já alguém disse isso aqui, quando Noé apareceu como mais uma figura de estilo para colorir A Sátira do Livro Roubado. Finalmente, ainda quanto aos benditos manuscritos da minha perdição, a última opinião era de que se tratava dos meus, quando eu, a título póstumo, por causa da minha morte com Hepatite B, estive quase a ser escritor. Quase, digo eu, e a concretizar-se tudo isto, ficaria a dever tal sorte de coisas à Clara, quando ela, em pleno cemitério, foi à minha ex levar os rabiscos que eu arrazoei na cama de um hospital, onde o número da besta e o seu espírito maligno influenciaram toda a minha escrita.
A propósito, às vezes também se dizia que a minha mãe era uma espécie de Maria Madalena, e não sei se estão a ver bem a coisa…Já agora, para tudo ficar mais claro, lembro aqui um poema. Acho que foi a minha criadora quem o escreveu, a propósito da minha mãe biológica. Os versos acabaram por ser o mote para a poesia do livro do meio e chamam-se “Pedras”. No meio de tudo, era com umas grandes pedras que nos apetecia atirar a toda a gente, por nos terem metido à força em três romances, cada um pior do que o outro.
Ocorrendo-me mais uma vez o nome de Noé, aproveito para dizer o seguinte: é um homem que deveria figurar naquela espécie de concursos de televisão. Se exceptuarmos Jesus, que não é comparável senão a Ele próprio, Noé deveria ser o número um da Humanidade. Como o leitor deve estar lembrado, foi o grelo da batata, no templo do célebre barqueiro, a prova pleníssima de que o tubérculo já existia na Judeia e na Palestina muito antes de Colombo regressar da América com a novidade
Agora, digo aqui, nesta retratação, não fui eu a escrever tanto horror. E se não foi a mamã a engendrar aquela trama maligna para o livro do César, foi de certeza o Diabo, que, através de mim, fez psicografia, como fez certamente uma ecografia ao sistema neurológico do professor “aramaiquez”, acabando por ditar o veredito de que ele e todas as outras personagens do livro do meio não passavam de megalómanas, e de quem ele se poderia aproveitar para levar muitas almas para o inferno.
Quanto a Clara, com grande descaramento, foi ela quem começou por levantar a minha ficha junto da Carolina woman in red, a primeira a fazer cair por terra a minha ascendência aristocrática francesa e o meu castelo na Normandia. Como estão fartos de saber, foi a woman in red quem primeiro revelou a verdadeira idade das minhas irmãs, colocando-me, por causa disso, na posição de morgado de uma família, que, no mínimo, tinha na terra uma casa, outrora pertencera a gente rica e agora devidamente restaurada, onde eu podia levar todas as mulheres da minha vida. Digo, com orgulho, que passaram por lá umas poucas… incluindo a Sarita, transformada entretanto na esposa amantíssima de Gabriel. E isso deve ela agradecê-lo a Clara, pois, já na versão Lilicas, Clara chegou inclusivamente a ver o álbum do meu enlace com a Patrícia, quando eu tinha vinte e oito anos. Foi o mote para a idade do mano no livro do meio, os meus vinte e oito anos do retrato. Nessa altura já eu pensava nas instalações fotográficas para captar as auras. Todavia, só consegui isso muito mais tarde, quando me chamava Gabriel. E foi, afinal, Gabriel quem mais beneficiou do estúdio. Sobretudo quando fotografava o rosto da Sara e o brilho de santidade que dela emana em todas as circunstâncias da vida, esteja ela, como a mais comum dos mortais, ajoelhada aos pés do Espírito Santo, ou simplesmente na sanita a braços com uma pungência inadiável.
Depois, o relatório da Clara sobre mim ficou completo com os acrescentos das minhas ex, incluindo a ex sogra, todas elas a acusarem-me de ladrão e de proxeneta. Além de ter ficado também no ar a ideia de que, depois das mulheres, os homens também não me seriam indiferentes, vindo então à baila um amigo que, um dia, nos meus tempos de merda, me deu abrigo lá em casa, no quarto e na cama.
Isto dos gays é a mais pura das mentiras, não tenham dúvidas.
A mamã acaba de me dar autorização para me defender como puder. Já que terceiros desfizeram da obra dela - e de mim - como quem malha em mortos, passa a valer tudo. Olho por olho, e dente por dente, como diria Mister Talião se ainda cá andasse. Mas, como já partiu há muito para o reino dos espíritos, aqui fica a ideia para todos disporem dela à vontade passando à ação defensiva.
Não foram só os chegados que me desdenharam a torto e a direito, quando a Clara/Lilicas enveredou pela devassa sobre o meu passado de menino de coro e, a seguir, da minha vida de homem que experimentou muitas das perversidades deste mundo, quando dizia com os seus botões: “é para não morrer estúpido”…- Os vizinhos e conhecidos faziam a mesma coisa: malhavam em mim como quem malha no esqueleto de uma oliveira para deitar as azeitonas abaixo. Em suma, fui tratado como um homem sem alma. Até polícia meteu, quando alguém descobriu as minhas incursões no mundo da droga e umas pequenas burlas sem importância.
Não percebo a razão por que os feios têm sempre tanta inveja dos bonitos. Nunca podemos vestir um trapo lavado sem nos roerem na pele. Nem sequer nos é permitido usar fatos com pequenos bolsos para os lencinhos dobrados deitarem a cabeça de fora, tal como os peixinhos amigos de Santo António estarão agora a fazer sobre o coração de Gabriel. As criaturinhas ainda devem estar no bolsinho da camisa às riscas do meu irmão, em que a Lilicas se fartou de dar beijos. Deve ter sido isso que atraiu os “jaquinzinhos”. Todas as criaturas gostam de ser acarinhadas… O bicho homem nunca mais aprende que não vale a pena andarmos zangados uns com os outros. Muito menos a roubar o que alguém conquistou à custa do seu suor. Mais vale a regra dos beijos. Mesmo lambuzados e a deixaram no beijado aquela sensação de quer ir lavar a cara com a máxima urgência para remover o muco.
E não há meio de encarreirar na trilha da “Claralílica”, obviamente já maligna!
Supostamente ela teria o vírus da Sida e, depois de me deixar indeciso, sem saber o que pensar ou fazer, numa noite acabou por descair-se: só queria vingar-se e ver-me – disse - ver-me não, os nossos quiproquós tinham lugar apenas através do telefone… – borrado de medo. Nessa altura armou um grande teatro. Sempre lhe senti essa vocação. Tanto para o escrever como para o representar. Chamou-me todos os nomes possíveis e imaginários. Desde traficante a proxeneta e mulherengo sem alma. Disse-me, entretanto, que um dia eu havia de morrer só como um cão abandonado numa estrada, sem ninguém para me fazer um chá e chegar-me uns chanatos quentes no Inverno, depois de me ter dito, em altos gritos, que eu era uma criatura amoral. Antes, nós os dois e apesar de tudo, julgava eu, éramos perfeitos nas nossas singularidades: eu com a coleção de poemas escritos nos guardanapos de papel das esplanadas e ela a colocar em cena, desde logo e verbalmente, o que mais tarde a mamã viria a reduzir a escrito. Começou com uma morte, negra como a peste, a minha própria morte e com flores, idênticas em tudo àquelas que não pude cultivar, nos ramos de todas as minhas ex amantes, quando se plantaram lá no cemitério, como túlipas de cabeça descaída, a espreitar para dentro da cova. Como numa procissão de missa negra, todas levavam então flores semelhantes às que eu não tinha podido plantar quando sentia dentro de mim a vocação de floricultor. De facto, nunca consegui desabrochar nessa arte senão na ficção de uma escritora que escreve, com igual empenho, tanto romances eróticos como géneros melodramáticos capazes de deixar em o leitor de lágrima ao canto do olho. Durante essa discussão, comportei-me como um cínico, quando afirmei ter gostado dela e que nenhum homem lhe teria aturado tantos desmandos. Ela, nessa altura, andava uma autêntica asna, quando, ressalvando o exagero da metáfora, me pediu quase uma declaração por escrito a mencionar a data, ano, dia e hora do fim do meu amor por ela. Contudo, durante a acalorada troca de palavras, houve um momento em que não consegui conter a minha sui géneris gargalhada.
 Foi nessa altura que a Claralílica me acusou de ser ruim, a ponto de nem a terra e uma legião de minhocas me quererem comer, por mais esfomeados de cadáveres que estivessem. Por fim, acrescentou ela, quando me desenterrassem, inteiro e seco como um bacalhau, o povo ainda havia de passar a chamar-me santo.
Não me contive, confesso. Eu santo! E ri a bom rir.
Agora cá estou eu, finalmente, Gabriel, um jovem de vinte e oito anos, casado com uma mulher mais velha, uma santa também. E a Lilicas tem muito a agradecer-me pela circunstância de a ter livrado de uma missão tão espinhosa como lançar lama sobre uma pessoa por quem ela se sente sempre tão bem coitada, quando os nossos eflúvios, os meus e os do mano César, se derramam no corpo dela com a força das Cataratas do Niágara no pino do Inverno. Se nós os dois, um com cara de anjo e outro anjo de corpo inteiro, não levássemos a cabo a nossa missão de amantes, a Lilicas já teria cumprido a ameaça de morrer. Não foi o que prometeu mal viu o Gabriel? “ Morro se não me amares” – disse então.
Quanto a mim, se outros crimes mais graves não cometer, pelo menos um crime de lúbrica omissão não gostaria de perpetrar. Ainda mais sobre uma criatura para quem o meu dicionário na cama não é um problema. É só soltar o palavrão, e ele sai da boca como se fosse um peregrino agradecendo com entusiasmo a Deus o ter chegado ao fim da caminhada. Mesmo sendo a companheira de jornada uma mulher diabólica e ninfomaníaca como a Lilicas solas e cabedais. Acho que Gabriel, ou eu –  nós somos não uma trindade como a de Deus mas apenas  um duo quase perfeito – pensa o mesmo sobre rapariga…
E, agora, depois de tanto tempo à porta de casa para aquele beijo bíblico, que deposita sempre na face da Sarita, é melhor Gabriel entrar, se não quiser desafiar a sorte e ir juntar à velha hérnia discal, à palidez e à asma, uma nova doença que o atire de verdade para o mesmo local onde eu estive como defunto de ficção (não.., parece-me que a asma, a mesma por que Clara deixou de fumar,  está agora  apegada à Lilicas, não sei se para sempre se só nas alturas cruciais, durante o coito, quando as circunstâncias a obrigam a arfar como uma gata ronrona e mais ou menos tuberculosa).
Para já, como o mano não se deve ter lembrado de agradecer a oferta do banco Ambrosiano depositada nas níveas e brancas mãos dele, vou fazer um telefonema à nossa querida e velha benfeitora. Nunca se sabe quando as vacas magras voltarão a andar à solta, disseminando a miséria pelos nossos bolsos e deixando-nos embaraçados quando nem sequer tivermos dinheiro para mandar castrar um gato.



Continua

« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:18:38 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #36 em: Junho 18, 2022, 21:42:56 »

Vacas magras...gatos...fungagá da bicharada?
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« Responder #37 em: Junho 19, 2022, 21:58:11 »

Hão de engordar, Nação Valente


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Sara

Por onde andará o meu amor que não chega de Coimbra? Provavelmente não conseguiu tirar nenhuma foto de jeito para o antiquário, por causa de quem se mata a palmilhar o país. Tudo para desencantar antiguidades dignas de estarem expostas no Museu do Louvre, mesmo ao lado da Mona Lisa, por quem Leonardo teve uma paixão tão grande como a minha por Gabriel.
E ele doente, com aquela palidez mortal que o meu hóspede lhe detetou num simples golpe de vista, como se o homem, mal o viu, se tivesse apaixonado por ele. Ou, então, o velho diagnosticou-lhe o mal como quem tira parecenças a meninos. Dizem os entendidos que têm de ser captadas de relance. Ou será que o velho se apaixonou mesmo por Gabriel num acabado sentimento homo?
Neste ponto história, deveria estar a fingir que não tenho ainda cá em casa, nem o professor, nem a tonta da ninfomaníaca sobrinha-neta? Pergunto à mamã como deve ser e ela responde-me que não me preocupe muito. Só se a minha vida ficar facilitada com mais um embuste. De outro modo, para quê negar tanto as evidências?
Respondo que está bem, até porque tenho de ser, ao menos para já, boazinha, uma daquelas mulheres que não partem um prato e para quem Gabriel se tornou no centro do mundo. Nasci para o servir e estou por isso reduzida à condição de escrava. Ele é o meu senhor, o meu ai Jesus.
Mas sim, é melhor fingir que lá dentro, na sala, a vasculhar a fartura de bibliotecas deste livro, estão o velho e a doidivanas da Lilicas. Ele a mirar as raridades e a proferir exclamações sobre a qualidade das obras, não se coibindo de falar das fotografias que estão espalhadas por diversas mesas e aparadores, por sinal de outro romance.
Já ela, a ninfomaníaca, com todo o descaramento, vestida de roupão vermelho e com um turbante na cabeça da mesma cor, depois de ter tomado banho, está agora a pintar as unhas de um rubro garrido que a deixam com aquele ar de galdéria com que leva todos os homens para a cama.
Mesmo sendo Gabriel um anjo impoluto, invulnerável a tentações, ela que não se lembre de se lhe meter debaixo dos pés!… Se isso acontecer, vai ficar a conhecer a cor da minha raiva bíblica, quando lhe rogar uma praga tão grande que as garras dela se hão-de partir ao mínimo gesto lúbrico. Jamais haverão de crescer. Se se atrever à provocação, ficará sem força, tal como Sansão ficou sem a dele, quando Dalila, à traição, lhe cortou o cabelo à escovinha (onde é que eu já li isto?!). O poder da minha maldição será maior se, entretanto, o meu marido apanhar alguma doença ruim…
Hoje, para o jantar, haverá batatas recheadas à Maria Madalena, uma receita de um livro de cozinha muito antigo, que a minha sogra me deu como presente de casamento. Pensava ela que eu nem sequer um ovo sabia estrelar. Lá porque era dona de um solar oitocentista, julgava-me uma menina queque, uma tia, apenas preocupada em aparecer nas revistas cor-de-rosa. Mas, depois, quando lhe servi pela primeira vez as batatas, desdobrou-se em desculpas por causa dos seus preconceitos para com os meus dotes culinários. Era para ser outra coisa, mas, à última da hora, gosto quase sempre de fazer surpresas aos meus hóspedes.
Depois, de cada vez que alguém come cá em casa as bem-aventuradas batatas, fica rendido ao prato. A ponto de ter de passar a receita para uma quantidade de pessoas. Nomeadamente, às esposas de políticos importantes com quem Gabriel tem relações estreitas. E é uma maçada escrevê-las pelo meu próprio punho, quando dá o chilique ao meu computador, e quando somem de lá, como por feitiçaria, tanto as receitas como a prosa que de vez em quando lá verto sobre uma infinidade de coisas. Então se os desaparecidos forem os poemas que, sem ele sonhar, escrevo para o meu amor, fico uma autêntica Maria Madalena, chorosa e triste.
Às vezes apanho pela frente uma daquelas mulherzinhas emproadas e cheias de tiques, com a mania dos segredos culinários, e, sabendo elas das minhas origens bíblicas (ou serão, na verdade, árabes?...), com grandes conhecimentos de línguas, pedem-me que escreva a receita noutros idiomas. Mas, como hoje toda a gente fala francês, inglês, italiano e por aí adiante, um dia destes uma delas foi ao ponto de me pedir o diabo da receita das batatas recheadas em latim. É por causa de o latim ser uma língua morta. Os mortos faladores de latim não devem estar com grande paciência para vir lá do outro mundo, onde estão sossegadinhos, fazer traduções nesta terra de loucos. Muito menos de receitas de batatas. Nunca vi tanto medo de furtos. Nem sequer dos colares de ouro e das pulseiras que têm guardados nas gavetas, comprados sabe-se lá com que dinheiro. Por falar nisso, se calhar, a mulherzinha da receita queria registar o prato como sendo uma criação sua, dando a umas simples batatas com carne dentro um estatuto idêntico ao de um bolo-rei recentemente inventado nas padarias do norte. Mas livre-se ela de ganhar em direitos de autor dinheiro que, em princípio, me competem a mim!
Gabriel, parece-me, está a chegar de Coimbra. Terá conseguido a tão desejada foto de uma antiguidade para o livro do patrão, ou terá sido, simplesmente, uma viagem em vão?
Não!, que maravilha! Embora a suar as estopinhas, depois do esforço de um dia inteiro a vasculhar sítios tão inusitados como galinheiros, onde, uma vez, um colecionador descobriu a raridade de uma cómoda do século XVIII a servir de poleiro às bichanas, o meu amor teve êxito. Gabriel vem feliz com a foto. Trata-se de facto de uma raridade. É o que sei, mesmo sem ver a fotografia, porque sou uma mulher iniciada na transcendência. É um piano de cujo modelo só há três no mundo. E um deles deve deixar sair ainda por todos os poros da madeira pintada de negro um cheiro a malignidade. Era de onde saíam as músicas de Wagner, que enfeitiçavam os ouvidos de Hitler quando este era a encarnação do diabo.
Mal seja oportuno, vou pedir a Gabriel que mostre a fotografia à Lilicas. É só para ver a reação dela quando captar os fluidos do mal, dos quais, provavelmente, o instrumento estará impregnado. A ponto de tudo isso ter passado para a foto, como a minha irmã Clara acredita. Isso dar-me-á a perceção exata até que ponto deva ou não temer a doidivanas da rapariga. Estou maluca! Este piano é o de uma amiga da mamã e não o do Hitler! Mas, como me dá jeito, fica assim. Espero que o leitor não se aborreça muito com a incoerência…
Quando pergunto a Gabriel onde conseguiu aquela obra-prima, aconselha-me a ter paciência e a aguardar mais um pouco. Para já, não pode revelar o nome do dono do piano. Embora, como me disse, seja de facto uma dona, uma mulher tão velha e gasta como a cinza.
Dou uma gargalhada com a metáfora e digo-lhe que, quanto a mulheres, mais vale ter cuidado, não vá uma, já feita mesmo em cinza, renascer como uma Fénix. A ponto de lançar as garras sobre ele e de o deixar mais esburacado do que ficaria se tivesse de ser submetido à operação da hérnia discal. Dou-lhe um beijo no rosto suado, na cozinha, num momento em que estamos os dois sozinhos. Ele não pensa, obviamente, que me refiro à Lilicas, e, enquanto ele está a beber um copo de água, vou à sala de estar ordenar à rapariga para se vestir decentemente. Informo-a da hora do jantar. Será servido mal o meu anjo acabe de tomar banho, depois de ter andado em algumas capoeiras à procura da relíquia um dia inteiro. Ah!, quanto não sofre um fotógrafo apaixonado pela sua arte!…
Hoje pus a mesa oval segundo o meu ritual de esoterismo. Num dos topos ficarei eu, sozinha, do meu lado esquerdo sentar-se – á Gabriel, seguir-se-ão três lugares vazios.
Depois, em frente a mim, no outro extremo, ficará o tio da Lilicas, e esta sentar-se-á ao lado do velhote, esperando eu que para o jantar ele tire aquela gabardina cinzenta cor de rato e ensebada que nunca despe. Gosto sempre de deixar três sítios sem destinatários. Faço isso depois de conhecer o ditado,” à hora do jantar sempre o diabo traz mais um”. Ou, se o provérbio não se confirmar, essas duas cadeiras, com os pratos, talheres, copos e demais apetrechos, ficam reservadas para os bons espíritos que nos queiram fazer companhia, se por lá não houver alguém com um poder demoníaco capaz de os afugentar. Vale mais prevenir do que remediar. Por isso conto sempre, não com mais um que o diabo possa trazer, mas com uma legião deles. Enquanto houver de comer para todos não me escaqueiram a louça. Além do mais, tenho de ter cuidado com os couros da minha “convidada”. Principalmente com as botas, não vá a ninfeta dedicar-se a dar com os bicos pontiagudos nos joelhos do meu amor. Se a Lilicas resolver pontapear alguma coisa, pela frente terá apenas o vazio.
Devia ir lavar as costas ao meu anjo e fazer-lhe uma massagem. No mínimo, para ele relaxar do cansaço de hoje e ver até que ponto a hérnia discal não ficou dorida, depois de um dia inteiro de jipe com uma máquina fotográfica ao ombro, que, para o seu corpo lindo e franzino, pesa toneladas. E nem me quero relembrar da recorrente palidez de Gabriel...Se Deus quiser, uma palidez não é mortal para ninguém. Muito menos o será para o meu anjo. Não foi em vão que foi concebido no coro de uma igreja, com tantos santos e santas a protegê-lo. No fundo, no fundo, do que Gabriel há-de padecer é da doença da eternidade, porque os anjos nunca morrem. Contudo, com estes dois emplastros acampados cá em casa, não tenho grande tempo para mimos a quem de mimos tanto precisa.
Nem sei por que ofereci guarida a um vagabundo seboso e a uma ninfomaníaca reles só porque o homem foi meu professor, embora a minha irmã Clara conteste isso a pés juntos. Para ela, a criatura não passa de um embusteiro. A sobrinha neta do sujeito, para a Clara, é igualmente outra história mal contada, com fortes probabilidades de dar ainda muitas dores de cabeça a demasiada gente.
Por agora, tenho de ir à cozinha ver o andamento das batatas recheadas. E, com tanto diz que diz sobre elas, mais sobre os papéis onde está escrita a receita, nem informei o leitor como se preparam:
Para sete pessoas:
São necessárias 7 batatas grandes, com pele, a que se tira o miolo (recomenda-se, para o efeito, um berbequim)
100g de cebola picada
200 gramas de carne de vaca ( ou boi) picada juntamente com um
chouriço médio;
50 gramas de azeitonas pretas descaroçadas;
1 colher de chá de sa;.
2 colheres de sopa de vinho branco;
1 ramo de salsa;
1 dente de alho;
3 colheres de sopa de azeite;
Um  pouco de leite;
Um pouco de farinha;
2 gemas de ovo;
7 folhinhas grandes de hortelã;
Pimenta qb;
14 palitos;
Azeite para deitar sobre as batatas;

Para acompanhamento pode servir-se uma infinidade de saladas, esparregado de brócolos, de espinafres etc.

Corta-se, em cada uma das batatas, uma calote de tamanho médio, e a seguir retira-se uma boa parte do miolo com um berbequim. Reserva-se dentro de água para não oxidarem (já agora, aproveita-se o miolo para fazer sopa…)
Para um tacho, deita-se a cebola picada e aloura-se com o azeite sem deixar queimar muito. Entretanto, junta-se o sal, o picado, a que se adiciona, depois de ferver um pouco, o vinho, o alho picado, a salsa, igualmente picada e pimenta (ou malagueta, eu prefiro malagueta…) a gosto.
Deixa-se refogar durante meia hora em lume brando e depois retira-se do lume, até arrefecer um pouco.
Quando o refogado estiver suficientemente frio para se lhe meter as mãos, começa-se por se lhe adicionar as azeitonas, o leite, a seguir a farinha e por fim as gemas de ovo. Mexe-se muito bem.
Introduz-se, de seguida, o preparado dentro das batatas e, no buraco, a tapá-lo o mais possível, coloca-se uma folha de hortelã, recolocando em seguida cada uma das calotes nas respectivas batatas.
Prende-se, depois, cada calote com dois palitos, e coloca-se tudo numa assadeira, depois de se ter deitado um pouco de sal e um bocado de azeite por cima das batatas, ficando no forno a 220 graus por cerca de uma hora, com uma viragem a meio da assadura.
E pronto! Lá se acabou o mistério das batatas recheadas, agora que a escrevi para o mundo inteiro!
A mamã aconselha o leitor a não confiar muito na receita. Precisará, sem dúvida, de ser testada, uma vez que tem boas razões para desconfiar que acabo de a inventar…
Pelo aspeto, as batatas parecem-me boas, o refogado de brócolos está verdinho e com bom ar. Não há razões para me preocupar, embora a mulherzinha, que trouxe de casa do César para me ajudar nas lides desta, às vezes cometa pequenos deslizes. Um dia, em vez de adoçar a salada de frutas com açúcar, pôs-lhe umas duas ou três colheres de bicarbonato de sódio e depois era ver a espuma escorrer pela mesa de jantar fora à primeira mexedela. Já para não falar quando, durante as nossas férias, a criatura mete as camisas preferidas do meu marido na máquina de lavar roupa enquanto esta ainda está húmida e depois vou encontrá-las cheias de ferrugem. Parece que faz de propósito. Mas como Gabriel não a quis despedir, vi-me forçada a trazê-la como interna, só para não desagradar ao meu marido. Deve ter muita consideração por ela, e não deve ser por causa de segredos dele que a trouxe a tiracolo como a máquina das fotos. Embora, depois de anos e anos a mudar-lhe a roupa da cama e a fazer-lhe a lida da casa, quando ele era um rapaz de outra dimensão, acredito que não haja podres na vida do meu marido que ela desconheça.
O Gabriel hoje está demorado no banho. Deve ter-se cansado muito com a viagem. Ou então continua à espera das minhas mãos para lhe fazerem a massagem habitual, que, não raras vezes, nos leva ao meu cenário preferido, o semáforo… Depois, fazemos amor como dois eternos apaixonados, e eu experimento uma e outra vez a sensação de querer morrer nos seus braços. Nisso não sou diferente da Clara, a mana e a rapariga precedente nesta aventura literária, que se tem vindo a repetir em diversos livros graças ao talento da mamã. Livro ridicularizado sim, com todas as letras, mas nem por isso desaproveitado por terceiros demasiado bem colocados nos meandros da literatura, onde velhos livros, mexidos e remexidos, se transformam em verdadeiras omeletas de papel.
O velho professor já desceu do quarto dos fundos, depois de, finalmente, ter tirado a sebosa gabardina. Neste meio tempo vou lá acima - Deus me perdoe a coscuvilhice - vasculhar os segredos que o homem tem naquele farrapo do tempo das Ordenações Afonsinas. A treta do banho não sei de quê para o tornar invulnerável a todos os perigos nunca me convenceu. A Lilicas, onde eu disse “não sei quê”, diria prontos, ou prontes, o César remataria sem dúvida com o não sei quê não sei que mais. Mas, no meio de tudo, o velho é o mesmo porco de sempre.
O trapo está dentro do guarda-roupa, ao fundo, engelhado, e, por azar ou descuido da velha que está lá em baixo na cozinha a preparar as batatas, pressinto um rato num dos bolsos, onde o homem, se não guardou um resto de queijo, no mínimo deve ter esquecido um pedaço de broa, já mais duro do que chifres. Ouço um roer intenso vindo do fundo do armário…Como tenho bastante nojo a estes animais, o melhor é deixar a gabardina em paz. Que se danem os segredos do velhote, agora à mercê de um rato desrespeitador de coisas alheias, e que, se a broa, ou mesmo queijo, não for suficiente para lhe saciar o apetite, não deixará de se deliciar com a gordura do pano na mais completa indiferença pelos banhos indianos que um mágico do oriente tenha dado à gabardina.
Acho melhor ir ver se Gabriel não precisará de alguma coisa.
O meu amor continua esmerado na higiene pessoal e tão arrumado que dá gosto. Nem um pêlo ficou na banheira, o vidro já está corrido. Já só tem a toalha vermelha de riscas enrolada à cintura.
Vê-lo assim, com aquele peito olímpico à mostra, praticamente sem penugem, traz-me à ideia o meu querido semáforo, que, a ser hoje ligado, terá de ser bastante tarde, quando o velho e a neta já ressonarem como dois comboios a vapor nos aposentos das traseiras, os que dão para o rio. Reservei-lhos só para não me incomodarem com o barulho dos roncos durante a noite.
A camisa e a roupa interior de Gabriel já dormem no cesto da roupa suja, juntamente com as peúgas. Os mocassins estão à janela, a recuperar do odor de um dia inteiro à procura de fotografias para o livro de um antiquário com ar suspeito.
O homem, o antiquário, com tantos carros topo de gama, parece um ladrãozeco barato e um chulo dos anos setenta. Tanto quanto me dizem as minhas antenas bíblicas, é o namorado da Lilicas, a mesma que há pouco estava lá em baixo de turbante vermelho na cabeça e roupão igual a pintar as unhas de encarnado. A menos que já tenha enfiado de novo aqueles cabedais pretos e as botas esporadas de cavaleira sexual. D. Duarte, o Rei de Portugal já morto, devia gostar bastante desta mulher e do apreço que ela tem por montarias.
Eu e Gabriel descemos juntos, de mãos dadas. Sou a mulher mais feliz do mundo. E se um dia voltar para o paraíso, hei-de escrever um livro repleto desta felicidade. Incluirei mesmo o semáforo nas narrações, só para demonstrar a todas as mulheres descendentes de Adão e Eva que a Terra também pode ser um autêntico Jardim do Éden. Basta só ter a sorte de encontrar um anjo do mesmo quilate de Gabriel, ouro puro. Só o raio da hérnia discal bem como a sua palidez me preocupam. E, em vez de dar como bons os diagnósticos surrealistas do velho sebento, o melhor é prometer um anjo de cera do tamanho e peso do Gabriel a Nossa Senhora de Fátima. Ela, sim, tem todas as influências junto de Deus. Até porque o meu amor recusa-se a ser tratado por médicos de carne e osso como eu, e isso leva-me mesmo a acreditar ainda mais que, em vez de estar casada com um homem, tenha sido mesmo um verdadeiro anjo a desposar-me. Só o sexo me confunde um pouco. Desde que me conheço, sempre ouvi dizer que os anjos não têm sexo, e, logo, nunca poderão, nem fazer chichi e, muito menos, amor.
Já agora, antes de mais alguém se adiantar a quer saber coisas sobre a infância do Menino Jesus, porque não socorrer-me da biografia de Santo António de Lisboa, ou de Pádua, como os italianos querem, que tantas vezes Lhe pegou ao colo, como rezam os seus milagres?! Farei isso mal tenha tempo. Tudo isto porque, quando penso em Gabriel, agora de mão dada comigo, penso também em Jesus e não consigo evitar comparações entre um e outro: ambos são criaturas divinas, cada um à sua maneira. Um com mais apetência para o amor de cama, e o outro louvando até ao infinito o amor de Deus, Pai de todos nós.
A mamã diz-me para parar com o misticismo e pensar no próximo jantar, ainda sem data. Nessa altura terei de usar uma mesa bastante maior para servir de novo o prato das batatas recheadas. Diz-me ainda que, para fazer o repasto, terei de convidar o mestre inglês Jamie Olivier. Ela, a mamã, confidenciou-me o seguinte:
- Como muitas cabeças vão rolar, ao menos que embarquem para o outro mundo com a barriga cheia…
- Está bem ─ respondo ─ Será uma forma de satisfazer a última vontade de condenados à morte. Parece, pelo ror de vezes que falaram nas minhas batatas recheadas no livro do meio, que os meus próximos convidados serão mesmo fanáticos delas. Antes de alguém lhes espetar nas nádegas a letal injeção, hão-de empanturrar-se com elas. Talvez com um toque de modernidade dado pelo mestre Olivier. A mamã, quando o convidar, vai falar-lhe da suposição quanto à autoria da receita, atribuída, segundo algumas vozes de peso no mundo da criptografia, a Maria Madalena. Pelos vistos também tenho de convidar Mel Gibson, que terá de se fazer acompanhar por um dicionário de aramaico antigo a fim de facilitar a vida de todas as personagens deste romance.
Só espero, dada a minha profissão de médica, que não me convidem para carrasca na altura de começar a fazer sangue.



Continua
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:20:27 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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outono


« Responder #38 em: Junho 25, 2022, 19:29:11 »

Hão-de engordar sim, com receitas de batatas recheadas.
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« Responder #39 em: Junho 27, 2022, 16:50:13 »

Engordar par a matança....





SEGUNDA PARTE





“…É pelas mãos que se conquista o céu.”



±


Gabriel

Estamos finalmente à mesa, depois de a Sarinha me ter apresentado quem ficou hospedado neste solar oitocentista graças à bondade dela. É tão diferente da Clara, que até um fato Príncipe de Gales deitou na sepultura do César... A minha mulher não pode ver um pobre esfarrapado. Se ele estiver com frio, vai sempre ao meu armário ver se há por lá alguma coisa que eu não vista para lhe dar. Aconteceu isso com certeza com o professor, por causa da gabardina sebenta, que, felizmente, não tem vestida. Alguém generoso, um século antes de Cristo, lha deve ter dado julgando-o um pedinte.
Bom, mas ficou decidido com a mamã que todas as personagens iriam fingir não se conhecer lá da casa de César, onde Clara e Lilicas se empanturraram de sumo. enquanto o professor admirava a colecção de Jorge Luís Borges a dormir na prateleira, ainda com o velho cheiro a amoníaco de há anos quando o gato francês lhe urinou em cima. Assim, ninguém me conhecia quando a minha querida mulher fez as apresentações, e Lilicas, em voz de ventríloquo, me disse ao ouvido que se eu não a amasse morria na primeira oportunidade. Depois de se ter esforçado a pensar que eu seria um velho barrigudo, quiçá perverso como a minha profissão de fotógrafo eventualmente habituado a bizarrias poderia fazer supor, fingiu muito bem.
Graças a Deus a Sarinha, habituada aos assédios das outras mulheres sobre mim, dispôs estrategicamente todas as personagens à mesa. Se eu ficasse ao lado da Lilicas, ou mesmo à sua frente, não sei se não haveria jogos rasteiros durante o jantar. A rapariga é mesmo muito assanhada.
Como entrada, a Sara mandou assar no fogão a lenha umas espigas de milho cultivadas na herdade. Estão à nossa frente, sobre uma travessa de barro redonda pintada com diversos motivos regionais. São sete as espigas, douradas e apetitosas. Estão à espera de serem comidas com manteiga amolecida no recipiente do fondu, em que sete pincéis às cores aguardam o toque das nossas mãos para depois barrarmos este manjar. Eu escolhi o pincel de cabo vermelho, e, pela primeira vez em frente a Sarinha, as mãos da Lilicas tocaram as minhas com alguma provocação. Eu queria o pincel encarnado, mas ela adiantou-se acabando por levar a melhor. Depois, em homenagem à aura lilás da minha querida mulher, fiquei com o roxo. Na nossa mesa nunca há outros farináceos senão as espigas. Não comemos pão nem broa. A Sarita diz ter bastado o tempo em que eu era César e me empanturrava com o miolo, enquanto a Clara, ela própria, comia as côdeas. Além disso Sarinha faz mais ou menos uma dieta para não engrossar a silhueta, e o único estrago a que se dá ao luxo, de vez em quando, são as espigas de milho assadas. É nesta altura que Lilicas se também refere à linha, enquanto intimamente chama sardanisca a Sarita.
A Sarinha acabou de ordenar à velha empregada do César para trazer a travessa das batatas recheadas, bem como o esparregado de brócolos. E, como a velhota lhe pediu para ir ver a bisneta que teve um bebé, dispensou-a até amanhã de manhã. Servir a sobremesa e o café irá ficar por conta dos anfitriões.
O professor e a sobrinha-neta, depois de se lambuzarem com elas, dizem que as espigas estavam deliciosas e a Sarinha elogia as batatas, o prato a seguir. Isso faz logo crescer água na boca dos dois, embora a rapariga, em vez dos tubérculos recheados, preferisse comer-me a mim. Confesso que também já estou um bocado farto desta receita, quase tanto como do bendito semáforo. Tenho de a gramar sempre que convido algum dos meus amigos ministros para jantar. Sobretudo por causa das queques mulheres deles, descaradas o suficiente para pedirem à Sarinha a receita em latim.
Ela serve toda a gente, e, mal desejamos uns aos outros bom apetite, o professor, esfomeado, leva o primeiro pedaço de batata à boca, quase em simultâneo com a azougada sobrinha neta e com o meu amor.
De repente, vejo os três caídos para trás na cadeira, inanimados, ficando como frangos depenados, de pescoço inclinado, e como sacos de batatas vertendo o conteúdo, enquanto a minha imaginação desce à bruma da história “A Branca de Neve”, mas desta vez em triplicado. Só espero que o velho, ao menos, não julgue, nem mesmo hipnotizado, que lhe vou dar um beijo despertador, como se eu fosse o príncipe do conto. Se tiver de acordar alguém de um sono perverso, como me parece este, sejam ao menos a Sarinha e a Lilicas.
Mas, por agora, não sei o que fazer. Apetece-me, tal como ao meu irmão César, chamar pela minha mãe e encostar a cabeça no colo dela. Além de que não tenho mais ninguém em casa a quem recorrer para me dar um conselho.
De repente, vejo o velho a estremecer na cadeira. Parece que vai recobrar do estertor de há pouco. Mas, ao invés de acordar com um comportamento idêntico ao anterior, como tinha antes do jantar, o homem abana a cabeça de um lado para o outro, como se se debatesse com uma grande confusão cerebral.
Começo a raciocinar mais friamente. Julgo estar de facto na minha casa com a Branca de Neve em triplicado. Sem sombra de dúvida, há aqui um caso de envenenamento, em que, em vez de maçãs dadas por uma bruxa desejosa de ser a mulher mais bela do mundo, foram usadas batatas recheadas, e não sei qual é o intuito. Interrogo-me sobre o veneno e penso se não devia ir dar um beijo na boca a cada uma das mortas-vivas aqui à mesa, de goela esticada, onde muito possivelmente o pedaço da batata se alojou. Mas, tendo já um homem confuso à mesa, se as duas acordassem no mesmo estado, ficaria com um problema acrescido.
Que raio de tóxico terá sido utilizado nos tubérculos?! Sim, porque nenhum dos sinistrados tinha ainda comido mais fosse o que fosse, para além das espigas!
Lembro-me imediatamente da velhota bisavó vinda de casa de César, que um dia pôs bicarbonato na salada de frutas. Como a receita leva leite, terá ela confundido o frasco do amaciador de camisas com o lacticínio? Mas, que diabo! Ela está a ficar senil, mas nem tanto!... Espera lá!... A menos que tenha sido a mamã a autora do prodígio…Recentemente esteve no Brasil, e foi bem capaz de ter ido à Amazónia buscar uns raminhos de Jurema, uma planta alucinogénia que induz nas pessoas tantas personalidades quantas forem precisas. Vou perguntar-lhe.
Responde-me afirmativamente e, para já, aconselha-me a deixar falar o tonto do professor, enquanto disfarça uma pequena gargalhada.
O homem, se, por um lado, está aflito, por outro parece-me radiante, e o lado da aflição pede-lhe para ir urgentemente ao quarto dos fundos buscar a gabardina ao armário.
Quando regressa já tem de novo o trapo vestido, que lhe realça o velho ar de figo seco. Leva uma das mãos a um local recôndito da gabardina e lança um grito de desespero:
Professore – Roubaram-me os códigos, valha-me Jesus Cristo! Estou perdido! Nunca mais conseguirei desvendar a criptografia dos escritos antigos, nem os do Mar Morto, nem os do Mar Vivo, nem o raio que parta o meu azar!.. Não! Espera lá!... Está aqui um rasgão do tamanho de uma cratera! Aqui há ratos, de certeza, e, além do mais, devem andar tremendamente esfomeados! Só podem ter sido os ratos! E deixei-me eu hospedar nesta casa! Onde está a Sara, meu Deus?! Porque não alimentou ela convenientemente os roedores?!
Agora está sentado ao fundo da escadaria.
Explico ao homem quanto se passou com as batatas, enquanto ele ampara a cabeça do lado esquerdo, como se quisesse saltar para outra vida que conhecesse melhor do que outra vida qualquer onde já tivesse andado a fazer tropelias por conta própria ou ao serviço de terceiros.
Professor: - O que estou eu aqui a fazer? Onde está a minha mulher?
- Mas, professor…
Professor: - Não me chame professor pela sua rica saúde! Não me irrite ainda mais do que estou!
- Está bem. Então como hei-de chamar-lhe? Alquimista?
Professor: - De mal a pior! Alquimista nunca! Se tem de me chamar alguma coisa relacionada com profissões então nesse caso chame-me agricultor!
- Agricultor, como assim?
Agricultor: - Se quer saber o que se tem vindo a passar, de há cinco anos a esta parte, é o seguinte: fui raptado de um livro para, além de um boneco com um nariz maior do que o do Pinóquio à conta de tanta mentira, me transformarem num professor tonto! Já para não falar dos abusos cometidos com outras pessoas lá do romance de onde vim! Até nem se importaram que me transformasse eventualmente num assassino!
Começo a ficar curioso e o melhor é deixar o homem falar, lá na sua faceta de agricultor.
Por isso eu estranhava, de vez em quando, haver por aqui algumas camionetas de couves e grelos a fazerem distrair as mulheres, sobretudo ao volante, como aconteceu uma vez com Sara, quando ela provocou mesmo um acidente!
Mas, voltemos ao velhote:
- Então prossiga. Já que o apetite se foi, é melhor contar toda a sua história para ver se isto começa a fazer algum sentido.
Agricultor: - Pois, para constar, eu sou tio de uma personagem do livro roubado, roubado por tanta gente que mais parece uma companhia da tropa. Sou tio da Clara, a minha sobrinha, a única, a verdadeira, aquela que, pintem-lhe o cabelo de branco, louro ou preto retinto, vistam-lhe umas calças de cabedal ou metam-lhe uma bata cirúrgica sobre a pele, é á única, a original!
E, continuando:
Agricultor - A Clara, um dia, quando foi a um concerto de música clássica, numa fundação de que nunca soube o nome, conheceu um indivíduo chamado César…Até parece você, mas com mais idade… O rapaz era doido por uma ópera cujo nome é “O Elixir do Amor”. Mas também era um bocado trapaceiro, um mulherengo sem emenda, que a deixava muitas vezes a ver navios para ir para a farra, quase sempre na cama com outras, embora ela tenha desconfiado disso desde bem cedo… O fulano era bom a mentir, porque, na maioria das vezes, ficava calado. E quem se limita ao silêncio nunca corre o risco de dizer grandes asneiras. Apesar de quando em vez lá sair uma…
Agricultor - Um dia, a minha sobrinha, só para não ficar em casa a moer as saudades do rapaz, segundo tenho ouvido dizer um verdadeiro acrobata sexual, foi à terra ver-nos, a mim e à minha mulher, e levou-nos a passear. Pronto! Foi o suficiente para a legião de escribas me atribuir o estatuto de professor e à Lilicas a profissão, familiar, é certo, de motorista!
Agricultor ─ Entretanto, meteram-nos um outro grau de parentesco pelo meio, dando-lhe a ela simultaneamente os estapafúrdios nomes de Lilicas Cláudia ou, ainda, como queria já não sei quem, Romualda Antónia, porque o nome não interessava para nada. Eles queriam mesmo era gozar connosco.
Agricultor - De maneira que, como o senhor vê, andamos todos aqui a fazer figura de palhaços. De sobrinha, a Clara passou a sobrinha-neta, e até lhe chamarem ninfomaníaca insaciável não demorou mais do que 1000 caracteres de escrita em tamanho 12, a mais comum nos livros.
Agricultor - Mas mais grave foi levaram-me a cometer o mesmo pecado de difamação. Lá porque a rapariga gosta de, de, de… sabe como é… não era caso para dizerem tão mal dela. Ainda por cima, com tanta cor no cabelo! A personagem da Clara, alililada, mais parece um manequim do que uma pessoa de carne e osso!
Vejo o agricultor de novo agitado e, desta vez, parece-me, é a personagem do professor. Vou ver se consigo perceber mais qualquer coisa deste assunto:
- Senhor Agricultor…
Agricultor: - Mas qual agricultor qual quê! Agora estou no meu papel de Professor e devo informá-lo do seguinte: dentro em breve, alguém há-de vir entregar-me um de três manuscritos que foram espalhados por esta terra como quem planta pevides de abóbora-menina num campo. Tanto quanto sei pelo romance do meio, para lá destas duas mortas-vivas, aqui esticadas à mesa, vai ter um cadáver fresquinho à porta, morto por um elemento de uma organização chamada Placas Tectónicas de um Mundo Novo. E, enquanto isso, lá terei eu de adiar os planos da descoberta do meu elixir!, olhe, se quer que lhe diga ainda não sei de quê!
Começo a ficar preocupado com o rumo de tudo isto. Eu Gabriel, o anjo, um fotógrafo com um gosto especial por auras, com um cadáver à porta? Nem por sombras! Posso ser mulherengo, proxeneta às vezes, mas meter-me com assassinos nunca! E, pelos vistos, a organização de que este professor faz parte, a dos Recolectores Ambidestros de Infusões Venenos e Antídotos, não é para brincadeiras. Embora, por certas deixas, uma aqui outra ali, deva haver ainda uma terceira quadrilha…
O melhor é falar com a mamã. Ela não irá contrariar a minha vontade de personagem com horror a cadáveres. De jeito algum quero assistir a um funeral nos próximos cem anos! Nem ao da minha mãe verdadeira, que ainda está rija como um salpicão de fumeiro.
A autora anui. Mas, para evitar o cadáver, assassinado sem cuidados nenhuns, nem, tão-pouco, requinte, ela aconselha-me a, mal eu pressinta alguém à porta, falar em segredo com o candidato a morto e meter-lhe um bocado de batata recheada debaixo da língua, como se fosse uma pastilha de cianeto. Ao mínimo perigo, ele deve entalar na garganta o pedaço de batata… Apesar de eu saber, a mamã explicou-me, os fins da pastilha... no caso dos espiões, era destinada a funcionar em situações limite e quando fossem apanhados. Deviam suicidar-se antes de denunciarem quem quer que fosse, após ou previamente a serem torturados. Mas, aqui, o objetivo é apenas um engodo para terceiros, semelhante ao de Julieta quando tentou convencer as duas famílias de Verona, Capuleto e Montecchio, de que o amor entre ambos era de almas gémeas incapazes de viverem uma sem a outra. Pobre do Romeu que não percebeu o espírito da coisa… Mas, visto por um prisma mais místico, nem tudo foi mau para ambos. Foram mais depressa para a eternidade, fazer companhia aos anjos meus parentes, sem precisarem de aturar por mais tempo este mundo de ladroagem e de desmancha-prazeres dos amantes. Lá na Itália, o veneno deu para o torto, mas a mamã diz que aqui isso não pode acontecer.
Pergunto-me se ao menos não hei-de ir dar o beijo na Lilicas, acordando-a. Era para ver se o mensageiro não se assustava com as duas estátuas à mesa,  ao melhor estilo da Pietá de Miguel Ângelo, de braços caídos uma e outra como Jesus no colo de Sua mãe… Mas, acho melhor não… De contrário, a confusão aumentaria. Pelo comportamento do velho, estou mesmo a ver a Lilicas a afirmar que ela é que é a Clara. E, se despertasse a Sarinha, haveria de acontecer precisamente a mesma coisa, acrescentando as duas, na melhor das coerências, que uma era a Clara Vinagre e outra a Clara Mel. Embora, no livro do meio, o mel da Claralili esteja reservado para mim, e que a Clarasara, toda ela, é mel destilado quando abrimos a refinaria e acendemos as luzes do semáforo.
O melhor é falar com o homem, o Professor ou lá quem é, enquanto ele continua a levar as mãos à cabeça por causa dos códigos roídos pelos ratos.
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:23:30 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #40 em: Julho 02, 2022, 22:38:32 »

Se a mamã diz, está dito. Siga a dança.
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« Responder #41 em: Julho 04, 2022, 16:09:03 »


- Professor, pode-me dizer o que têm de tão importante esses manuscritos? Tenho fortes razões para supor que esse arrazoado todo são os cadernos do livro escrito pela mamã sobre o César e a Clara, tendo a Sara, depois, apontado num deles a receita das batatas recheadas,  em latim.
Professor:-Nada disso. São textos muito antigos, presumivelmente do tempo de Jesus, e andam duas organizações atrás deles. Uma delas é a minha e representa o bem (Somos os Recolectores Ambidestros de Infusões Vacinas e Antídotos). A outra é a das “Placas Tectónicas do Mundo Novo”, que encarna o mal. Eles querem adquirir um poder maquiavélico para destruir o planeta, mal se verifiquem alguns sinais do género que o apocalipse pronunciou. Mas, e o mensageiro que nunca mais chega! Com tanta gente a procurar os manuscritos, onde trará o dele guardado?
De repente a minha imaginação deu um salto de qualidade, e vejo o papiro, ou lá o que é, junto aos órgãos genitais do desconhecido mensageiro, enrolado com um pequena fita vermelha e escrito em letra lúcida calligaphy. É um bom sítio para esconder um rolinho. Nenhum homem, com medo de que alguém duvidasse da sua masculinidade, se atreveria a, por muito interessado que estivesse em relíquias, fazer uma revista minuciosa a um sítio do corpo de outro homem tão íntimo e delicado.
Sempre quero ver a esperteza do homem, digo agora eu. E acho que vou até à porta da rua já com um pedaço de batata na mão de atalaia para enganar o assassino, como a autora me aconselhou, caso apareçam as duas próximas visitas programadas para esta terra.
Entretanto vou ainda perguntar ao velho se sabe como é que iria ser o fim do seu correio expresso.
- Então Professor, o senhor, depois de ter andado no romance do meio e ter sido um grande produtor de couves e grelos, quando era simplesmente o tio da Clara, tem a noção de como é que o homem iria morrer?
Professor: - Tenho! Iria morrer de susto!
- De susto, Professor?!...
Professor - Sim, de susto! Assim: Bu!
Não me contenho e aqui vai a minha gargalhada, que se prolonga alguns instantes, com o velho espantado e pensando. Provavelmente, como é que uma pessoa como eu, mesmo à beira da morte, consegue rir assim tão desassombradamente.
Entretanto olho para o pátio da entrada e vejo um homem a tentar abrir o portão. É, com toda a certeza, o mensageiro, e, enquanto o Professor vai à casa de banho fazer chichi, aproveito para dizer ao ouvido do senhor:
- Confie em mim…
O homem permitiu que eu lhe colocasse o bocado da batata recheada sob a língua, mas, como não houve tempo para muitas explicações, acabou por deixá-la escorrer até à garganta involuntariamente, enquanto cai no solo, ouvindo-se ao mesmo tempo no ar o som de um balão a rebentar. Assustei-me bastante, confesso. Razão tinha o Professor para dizer que aquele improvisado Deus Mercúrio iria morrer de susto.
Depois ainda vi um vulto a fugir, quase tão atordoado como eu com aquele inusitado morteiro.
A minha primeira preocupação foi se deveria ou não dar o beijo na boca a mais uma Branca de Neve com calças, e, com medo de que a criatura, ao acordar, pensasse mal de mim, antes de o Professor chegar da casa de banho, fiz de imediato a tentativa de descobrir onde o mensageiro transportaria o manuscrito.
Após algumas voltas e reviravoltas no belo adormecido, não havia maneira de encontrar o papiro. A ponto de ter pensado na hipótese de o falhado assassino, num golpe de magia, o ter levado.
Perante o meu insucesso, achei por bem aguardar a chegada do Professor, do Agricultor ou fosse lá quem fosse, para, juntos, fazermos uma vistoria ao homem da cabeça aos pés. Temia também, nesta nova personagem, depois de a ressuscitar, que ela ficasse com mais umas quantas personalidades para eu aturar, revelando-me entretanto verdades tão incómodas como as de alguns dos candidatos de certos concursos da televisão nos big brothers de todo o mundo. Nunca fui curioso…
Quando o Professor regressa, reconhece no homem um grande amigo, ao mesmo tempo que dá graças a Deus por a mamã ter temperado as batatas recheadas com a Jurema.
- Não encontrei o manuscrito…E agora, Professor?! – pergunto, a medo, sem saber muito bem quem tenho pela frente.
Professor: - Agora, como não convém acordá-lo de imediato, sob pena de lhe causarmos lesões cerebrais irreversíveis, vamos ter de despir o pobre do meu amigo. Algo me diz que, mesmo no caso de ser apanhado, não seria roubado assim muito facilmente… O manuscrito deve estar a salvo...
Começámos por tirar os sapatos e as meias ao morto de faz-de-conta. Fomos depois para a zona do casaco e da camisa e, quando o peito já estava sem roupa, verificámos, com enorme espanto, que o manuscrito era ele próprio, escrito com tinta negra de tatuagens, com comentários laterais e notas a vermelho, com a facilidade que as frentes de um canhoto representam para si próprio como caderno de apontamentos.
O Professor, trémulo como um caloiro de Medicina, sobre o peito daquele mostruário humano, lê o seu nome e emociona-se ainda mais por pensar que, finalmente, vai saber o comprimento do pénis do seu amigo. Ele sempre se gabara de ter sido imensamente bafejado pela natureza…
Hoje, o velho, como se fosse um pintor famoso no seu atelier cheio de modelos, terá pela frente um nu integral, de onde terá de copiar os caracteres escritos mesmo em letra Lúcida Calligaphy. Só assim terá acesso ao conteúdo da mensagem para a poder guardar em sítio seguro. Não vai, sempre que precisar de saber elementos, obrigar o amigo a despir-se. E eu, Gabriel, o anjo, devo ser mesmo um iniciado para prever tantas coisas, tal  como o tipo de letra usado na comunicação… Mas ainda não iniciei o curso de línguas mortas…O Professor que se arranje com a descodificação…
O nosso hóspede, depois de ir à cozinha buscar umas folhas de papel pardo, iguais àquelas em que a Sara traz os pedaços de broa quando vai à padaria, passou uma boa parte da noite a transcrever o latim gravado no corpo do amigo, soltando de vez em quando umas exclamações: “não é possível!...” “Eu tenho razão!...” Qual Maria Madalena qual carapuça!...” E como, nesse dia, o Professor estava farto de receitas, se vislumbrou alguma no livro ambulante não se referiu a ela.
Depois da cópia – foi pena não haver no solar um fotocopiador gigante… – sem me permitir perguntar ao velho acerca das conclusões sobre as partes íntimas do morto-vivo, eu, que devia ir deitar-me, sobretudo por causa da minha hérnia discal e da minha palidez. acentuada pelos acontecimentos da noite, dou comigo a pensar no que fazer com o trio. Que destino iria dar às duas mulheres e ao homem? Na questão da vida, todos estavam mais ou menos em banho-maria. Não eram mortos, mas também não eram verdadeiros vivos…Sob o meu ponto de vista, era necessário ressuscitá-los o quanto antes, embora, se tivesse de ser eu o autor do despertar, pelo menos num caso, me fosse um bocado penoso servir de príncipe.
Por isso decidi perguntar ao Professor o que deveríamos fazer.
Foi quando me apareceu pela frente o Agricultor a dizer que a Clara tinha de ser acordada para confirmar a versão dele.
Agricultor: - Porra! Estou farto de andar em livros, disfarçado daquilo que não sou! Dê imediatamente um beijo nessa Lilicas aí pendurada na cadeira, porque quero ter o quanto antes a Clara de volta!
Fiquei assustado com a mudança repentina do velho, e, para o acalmar, disse-lhe que não precisava de recorrer ao calão para as suas palavras surtirem efeito. Foi quando ele afirmou ter sido a palavra “porra”, pela qual eu o repreendera, oriunda do livro inicial, e que, na obra do meio, tinha sido até menosprezada como recurso literário. Embora os autores tivessem depois usado e abusado dela, só por linear e simples chacota…
Saltando de novo para a vida da verdadeira Clara e para a “porra”, terá sido o padrinho de César quem a proferiu, na altura em que César foi projetado para gente lá no coro da igreja, quando o padrinho dele rasgara as calças no traseiro – disse o Agricultor
Pelo local onde a “porra” foi dita, digo eu, a palavra teria, se calhar, adquirido uma vibração mística. Diria mesmo, bíblica. Apesar de no primeiro romance haver algum sexo intenso, mas sem, nem de perto, nem de longe, encher o livro, havia também muitos Cristos e mães do tipo Maria Madalena. Devia ter sido por isso que os senhores parodiantes se lambuzaram com a história a ponto de meterem o Agricultor a executar funções para as quais nem ele sabia se estaria preparado. Como as de professor de não sei o quê e pesquisador de elixires, também nem ele sabia quais. A menos que os autores tivessem de recorrer a aditivos artificiais para lhe estimularem a sensibilidade, o intelecto e a paranormalidade. Mas ele, enquanto Agricultor, nunca sentira nada disso a manifestar-se. Apenas lhe parecia que anormais eram as pessoas que se dedicavam a esquartejar romances alheios só para darem trabalho às personagens. Principalmente a um velho como ele, habituado ao bucolismo de uma pacata aldeia e apto apenas a lidar com vegetais e tubérculos, quando não dava pequenos passeios de automóvel com a sobrinha.
Entendo as razões do homem. Mas, por agora, seria melhor, dadas as circunstâncias, ter pela frente o Professor. Contudo, arrisco-me ainda a perguntar por que queria o Agricultor ver a Lilicas desperta em primeiro lugar, sendo, como ele disse, as duas, ela e a Sara, a mesma pessoa, ou seja, Clara.
Agricultor: - Porque assim, uma vez que estamos a lidar com uma quantidade de venenos, ver-nos-íamos livres de um… Não é a Lilicas ou lá o que é, uma verdadeira serpente?
Mais uma vez desato a rir a bandeiras despregadas. A criatura teve graça…
Mas eu queria mesmo de volta o Professor. Dou por isso um abanão na cabeça do meu interlocutor a ver se consigo solucionar ao menos parte da tríplice questão e deste cemitério improvisado em que se tornou a minha casa.
Reconheço de imediato a personalidade do meu catedrático e pergunto-lhe o que vamos fazer a seguir. Responde-me que até ele, com uma série de coisas para fazer num outro contexto e com alterações constantes na nova trama, assim ficará um bocado encalacrado. Não tenho outro remédio senão recorrer à mamã.
Com ar de zangada, ela é peremptória. Havendo um homicídio, pelo menos na forma tentada, além do mais perpetrado por um desconhecido, não há outra coisa a fazer senão chamar a Polícia Judiciária. Mas que ninguém se lembre de mandar vir um homem a gozar em plenitude uma merecida uma reforma, depois de anos e anos a mexer em cadáveres e a descobrir criminosos de todo o calibre. Sobretudo um que ela conhece muito bem, de quem dizem ter pele de goês e gosto por pornografia. Só porque sempre gostou muito de mulheres… Além de ter uma deferência especial por camisas pretas (Era, ao menos quanto a sexo, parecido comigo e com o meu irmão César, digo eu. E que mal haverá nisso?).
Lembro à autora um dado essencial: se não for o ex-polícia do romance do meio, certa personagem ficará com um problema entre as mãos. Refiro-me, obviamente, à Lilicas. No caso de uma mudança no investigador de serviço, como irá ela tentar curar uma impotência como há largas páginas lhe foi prometido?
A mãe promete arranjar um outro investigador para o lugar do aposentado. E, esse sim, pode muito bem gostar de vasculhar nas montas das livrarias as revistas pornográficas. É conhecido como o homem do porta-chaves.- Está decidido! - Disse a mamã, convictamente. - É esse senhor que, estando hoje de piquete, vai ter de lidar com o assunto do Homem-Pergaminho. Já fiz a ligação telefónica e, dentro em breve, teremos aqui uns inspectores a fazer perguntas.
Ocorreu-me agora que deveríamos vestir o nosso Mercúrio, a fim de ele não morrer de hipotermia. E, olhando para o Professor, pensei que poderíamos disfarçar o falso defunto com as roupas do velho. Sobretudo com a gabardina, embora ela já não tenha, nem códigos, nem a protecção dos banhos turcos. Mas sempre pode dar maior credibilidade à situação.
Sugeri isso ao mestre e este responde:
Professor: - De quem se dizia que não passava quase de um retardado mental, não está nada mal… Mas, isso levaria, aliás, vai mesmo ter de ser, a outras alterações na história. E não está mal visto, não senhor…
O Professor começou por descalçar os sapatos, seguiram-se as peúgas de onde se desprendeu um intenso aroma a queijo francês, vieram depois a camisa, as calças e o velho alquimista já estava de cuecas. Simultaneamente, olhámos um para o outro, enquanto perguntava a mim próprio se, pra acordar o mensageiro, não seria melhor esperar por um acaso fortuito como o do próprio Professor, um pequeno abanar de miolos que despertasse daquele sono forçado o nosso inerte manequim de carne e osso, pesado como chumbo. Disso sabíamos nós. Tínhamo-lo despido de cima a baixo, como se estivéssemos a esfolar um grande coelho, após o termos arrastado para dentro de casa como se ele fosse um saco de areia. A seguir, explicaríamos ao falso morto as razões da troca - dizia de mim para mim.
Depois de pensarmos um pouco, para evitarmos o embaraço da criatura, optámos por vesti-lo com as vestes do amigo quando ele era ainda morto-vivo, enquanto o Professor começava a envergar as roupas do mensageiro e ficava com a meia preta e um bocado da perna à mostra. Era um mais alto do que o candidato a assassinado, e ficou a parecer um espantalho. Quase me ri na cara dele.
Por fim, o Professor ordenou-me:
Professor: - Como ele não se mexe, trate de aprimorar o seu melhor ar de príncipe e aplique-lhe a mesma receita da Branca de Neve. Se for preciso, mostre-lhe também o seu lado de anjo. Mas só em último recurso, não vá ele julgar-se morto e pensar até que está mesmo no céu!
Por essa não esperava eu. Porém não queria alterar o Professor, agora aparentemente sereno nesta personalidade.
Para suportar a situação, tratei de me imaginar uma espécie de nadador-salvador no encalço de um afogado e a quem teria de fazer respiração boca a boca. Embora, no caso, não pretendesse exagerar… Foi assim que o Pombo-Correio acordou.
Regressou meio zonzo, enquanto, olhando para o amigo, pensava ver-se ao espelho com umas calças mais curtas. Não se lembrava, mas as calças deveriam ter sido feitas com pano comprado aos ciganos em dias de feira e isso fazia-me lembrar da minha própria origem. Ou, mais concretamente, a de César, no primeiro romance, quando a bisavó dele era uma cigana húngara muito jeitosa.
A primeira coisa que o Pombo-Correio perguntou, depois de ambos lhe explicarmos a necessidade do recurso às batatas recheadas alucinadas com a Jurema e a troca da roupa, foi se tínhamos gostado das tatuagens. Tinha-as feito - disse - com dor e lágrimas, quando decidira transformar-se num livro permanente que, ou se enganava muito, ou iria contribuir decisivamente para alterar a consciência da Humanidade. Agora - acrescentou depois - sentia-se, se não num verdadeiro evangelho, ao menos um dos salmos mais importantes da palavra sagrada, ali sempre à mão para qualquer eventualidade.
Percebemos logo que o homem não estava bem da cabeça e foi bem pensado trocarmos-lhes a identidade. Assim evitámos ter ele de responder à polícia sobre a tentativa de homicídio que, em boa verdade, nem chegou a haver. Nunca se pode matar um homem morto, como este estaria já, aparentemente, é certo. Mas isso o criminoso não o poderia saber quando o candidato a homicida se acercou dele para lhe pregar o susto mortal, bu, disposto a mandá-lo para o outro mundo em carreira expresso.
Olho para o Professor e inteiro-me se é ainda ele quem está comigo ou se é o Agricultor, o tio de Clara. Para meu sossego, constato ser o alquimista.
Depois, decidimos, com o consentimento dele, ir esconder o nosso Deus Mercúrio no quarto do velho onde os ratos lhe roeram a gabardina. Dentro em breve, o polícia destacado para a diligência e os homens dos pincéis deviam chegar para fazerem perguntas e recolher vestígios. Estava aberto caminho para o Professor assumir a identidade do amigo encarcerado. Nada nem ninguém poderia pôr em causa a secreta sociedade dos Recolectores Ambidestros de Infusões, Venenos e Antídotos. Tenho ouvido por aí zunzuns acerca disso, quer no romance do meio quer neste onde agora me cabe fazer novas acrobacias. O circo é o meu destino. A missão do Professor terá de ser um êxito e o embuste estava plenamente justificado. Mas havia providências a tomar quanto à Lilicas e quanto a Sarinha, bem como à respectiva intermitência de cada uma.
O melhor ainda era acordá-las o mais depressa possível e metê-las na cama. Como seria de prever, as suas cabecinhas, depois de despertas, como aconteceu com o velho Professor e com o mensageiro, também deveriam ficar aos saltos, agora com a agravante de serem três figurinhas, cada uma a reivindicar-se com mais barulho do que a outra como a personagem original.
Estar ainda com o Professor é para mim um alívio. Apesar de me chamar Gabriel e ter por alcunha “o anjo”, não consigo dominar todas as situações com que me deparo.
De comum acordo, antes de mais nada, os dois decidimos levantar a mesa e guardar na garagem, junto ao meu jipe, as três batatas recheadas que tinham ficado na travessa, enquanto deitámos os restos dos pratos no lixo. Não sabíamos se as batatinhas nos poderiam vir a ser úteis num dos outros casos de mortes anunciadas. O bando das Novas Placas Tectónicas do Mundo, tanto quanto eu sabia, tinha congeminado mais assassinatos. Mas a autora a todo o custo quer evitar, neste livro, banhos de sangue que manchem decisivamente estas páginas e sujem a sua nova escrita retirando credibilidade aos nossos desabafos.
Só depois da mesa tratada, eu, contribuindo embora para agravar a minha hérnia discal, peguei ao colo, primeiro na Sarinha e, a seguir, na Lilicas, indo colocá-las nas respectivas camas, uma delas no meu próprio quarto. Esta tarefa não era para nenhum dos velhos da história. Nem para o Agricultor, nem para o Professor e, muito menos para o Pombo-Correio, que tinha de permanecer encerrado no quarto dos fundos a fim de não levantar suspeitas. Andei de carrejão durante um bom bocado, acordando e pondo a dormir uma e outra respctivamente, até deixar a Lilicas no estado de semi-morta.
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:29:03 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #42 em: Julho 10, 2022, 19:11:10 »

Manuscrito humano?
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« Responder #43 em: Julho 10, 2022, 19:19:13 »

Evidentemente, nação valente.


A minha noite estava a transformar-se num despe e veste que nunca tinha experimentado. Lá despir mulheres ainda despia, ou ajudava a despir, mas, vestir, não… Não dava grande jeito. Mas, neste caso, com duas semi-mortas em casa e uma viva alternadamente, um tio professor/agricultor e um homem tatuado meio desequilibrado, estávamos numa situação limite. Competia-me, por isso, tentar solucioná-la o melhor possível.
A primeira coisa a fazer a Lilicas, mal lhe descalcei as botas pretas esporadas, foi ir ao guarda-fatos onde arrumava a roupa interior. E, depois de lhe despir a que pertencia à Sara, ou à Clara, vesti-lhe o soutien e as cuecas negras, fazendo o mesmo com o roupão vermelho igual à toalha às riscas da casa de banho de César. Assim, se viesse o tal inspector Porta-Chaves de quem a mamã tinha falado, a Lilicas já estaria preparada para lhe abrir a porta e lançar-lhe aqueles olhares serpentinos que o haviam de perder. Na primeira oportunidade, ninguém duvidava disso, ela desataria a vergastá-lo com o seu chicote de mulher sádica que nunca perde ocasiões para exercitar, muito menos numa situação privilegiada como aquela.
Nem com tantas andanças, de cá para lá e de lá para cá, o raio da batata recheada lhe saltava da garganta. Lilicas continuava muito morta. Por isso o beijo que, nem por sombras, eu rejeitava, teria de esperar, até poder trocar mais umas impressões com o Professor acerca das diligências seguintes.
Quando desço à sala de jantar, estava o meu Cantinflas de tornozelo e um bocado de perna ao leu a perguntar onde estava a Clara. Constatei de imediato que tinha à minha frente outra vez o Agricultor, a exigir o despertar de Lilicas em primeiro lugar, para ver se, de uma vez por todas, acabavam com aquela azáfama de andarem sempre a mudar de personagem e de nome.
Agricultor: ─ Vá lá Gabriel! Traga-me depressa a minha sobrinha Clara de volta! Não poupe no beijo, porque ela, embora lhe tenha feito algumas maldades no seu tempo de César, a verdade é que o amava profundamente. A ponto de, quando Deus o colocou no caminho dela, se ter sentido escolhida como Nossa Senhora, quando o anjo seu homónimo a visitou para lhe anunciar o nascimento de Jesus. A seguir, trate da fotocópia melhorada de Clara em que se tornou a Sara com quem o casaram, e que, sendo igualmente a Clara, também deve querer confirmar a minha história.
Agricultor - Quanto ao beijo, seja primoroso num e noutro caso, porque, tanto a Lilicas como a Sara, não têm culpa do papel que as obrigaram a representar. Sendo certo que a Sarinha o ama tanto como a Clara. A ponto de, uma e outra, embora em livros diferentes, terem os mesmos sentimentos em relação a si e dizerem sempre praticamente as mesmas palavras: uma gostava de morrer, eufemisticamente falando, é claro, nos seus braços depois do coito, e outra explodia-lhe literalmente nos neles como uma garrafa de gás. O que, sendo as duas a mesma pessoa, não é de admirar…
Agricultor - Além do mais, não gosto que a minha querida sobrinha represente os papéis, por um lado, de uma doida desvairada e, por outro, o de uma Nossa Senhora pudica, a quem, para parecer a padroeira da aldeia das Sete Cabecinhas, só falta mesmo o manto bordado a ouro e uma coroa de pedras preciosas. Talvez lhe falte também um grande colar de ametistas com a cruz de Cristo a fazer as vezes de rosário…
Já não podia adiar mais tempo as minhas incumbências. Até porque, daí a nada, estaria a aparecer a Judiciária e convinha haver gente acordada para responder a perguntas que, supostamente, seriam bastante difíceis.
E pronto… Imaginei-me então um príncipe de contos de fadas e, quando dei por mim, estava de joelhos junto à cama de Lilicas, que, naquela altura e dado o seu estado ser de semi-morta, não poderia nunca roncar como um ministro, como foi barbaramente acusada no livro do meio sem um pingo de verdade. Os meios mortos, tal como os mortos inteiros, não ressonam. Estão apenas mortos e ponto final. Contudo, não podia pensar agora em nada dessas coisas e, quando dei conta, tinha a Lilicas agarrada ao meu pescoço, a chorar como uma Madalena por causa das coisas que me tinha feito quando era Clara. Tudo isso antes de me perguntar o que é estava a fazer numa cama estranha, vestida com um roupão vermelho quando a cor do roupão dela era amarela. Logo num sítio onde não havia um único Cristo em cima da cómoda! - disse espantada. Todo o cenário a fez pensar que nem sequer era o quarto de César onde habitualmente faziam amor e viam, a partir da cama, uma vez ou outra, ópera. Como naquela na ocasião em que a televisão transmitiu “O Elixir do Amor”. Pediu-me, entretanto, para lhe perdoar todos “os mimos” com que me tinha presenteado quando se transformou numa verdadeira serpente. Tinha sido - acrescentou - por ser desconfiada e ter dado ouvidos a uma criatura como a woman in red. E até nunca deveria ter mesmo escutado a Patrícia, a legítima esposa mas, ao tempo, também já ex. Muito menos deveria ter prestado atenção à sogra de César porque as sogras são sempre más para os genros. Sobretudo quando eles são assim tão bonitos.
Lilicas, regressada de novo à pele de Clara, julgava-me obviamente o meu irmão. E, para não escapar do meu perdão nenhuma acção maquiavélica que ela tivesse levado a efeito sobre o mano, começou a enumerar todas maldades cometidas sobre o César dominada pelo ciúme. A começar pelo cemitério da caixa do correio, bem como quando disse que tinha apanhado a sida só para chatear o meu irmão. No meio de muitas outras coisas, consumadas sobretudo em efabulações arrevesadas de que ela, sem precisar de tomar Jurema, era bastante fértil, era principalmente disto que se recordava, dizia. De qualquer modo, continuava a afirmar a pés juntos ser mesmo a Clara, a psicóloga, sobrinha de um agricultor que lhe costumava dar, quando ia à aldeia onde ele morava com a mulher, legumes da horta, e a quem um dia presenteara como um passeio de automóvel visto o tio já não ter idade para se aventurar a conduzir em lado nenhum.
Deixei-a falar o mais possível. Daí a nada, tal como tinha acontecido com o velhote e com o Deus Mercúrio, ela descambaria de novo na personagem de Lilicas, e então lançar-se-ia a mim como gato a bofes antes de eu ter tempo de a controlar. Quanto mais não fosse, por causa das declarações que teria de prestar ao homem Porta-Chaves, ela deveria ser uma Lilicas convincente. E, relativamente às respostas à polícia, o Professor e eu, ou eu e o Agricultor, ainda teríamos de engendrar uma história que fizesse sentido para aquela tentativa de morte fora do comum de que fora vítima o mensageiro, de quem o Professor assumia agora a identidade. À vista, mesmo, mesmo, só existia um homem velho vestido com umas calças aparentemente do filho mais pequeno e sem quaisquer vestígios no corpo de objectos contundentes que lhe tivessem provocado soluções de continuidade, só para usar uma linguagem médico-legal em uso nas morgues de todo o mundo. O livro da mamã foi assim esquartejado, a sete mãos, como se fosse um autêntico morto e eu quero deixar aqui a linguagem da ciência médica sobre a morte provocada, por encomenda ou não. Embora no caso presente não houvesse falecido nenhum.
Começava já a não ter dúvidas sobre a minha vida. Também eu, Gabriel, o anjo, não tinha passado de um Pinóquio nas mãos de carpinteiros da escrita, uma vez que a história tanto do Agricultor como desta Clara, resgatada aos poderes da mimosa hostilis com um beijo dos meus, era perfeitamente verosímil.
Quanto a Sarinha, mesmo sem consultar o Professor, por agora a pairar no mundo da agricultura, achei por bem fazer-lhe a mesma coisa que à Lilicas. Por isso comecei de novo a saga do beija não beija até a Jurema pender para o dado de Sara, mais conveniente para mim no momento. E foi com o semáforo a brilhar em pleno que beijei a minha querida mulher. Fi-lo com o entusiasmo dos vinte e oito anos engendrados para mim por um bando de parodiantes que, por serem já um bocado velhos, gostam sobretudo de gente jovem. É pura inveja.
Sara despertou então, igualmente pelo método Branca-de-Neve, e, mal abriu os olhos, sem saber ainda muito bem o que estava a acontecer, começou por me pedir para apagar o semáforo porque, na história das nossas vidas, a luz era ela e eu é que era a força. Por sinal bastante bruta! – dizia.
Não havia dúvida, não era a Sara quem estava ali. Era outra personagem, uma que já não me tratava por “meu amor” nem se preocupava com a minha hérnia discal e, muito menos, com a minha recorrente palidez. Então coloquei-lhe as mãos sobre o pescoço para ver se ela, em vez da morta-viva em que se tinha transformado por causa das batatas recheadas, voltava de novo a ser a Sara, a mulher da minha vida, o ser brilhante cuja aura lilás eu captava como nenhuma outra na minha máquina fotográfica, aquela para quem eu era a luz e que queria morrer de amor nos meus braços.
O truque resultou. Sara voltou a ser Sara, apesar de ter ficado bastante sonolenta. Ao menos por instantes, não precisava de aborrecer a mamã em busca de soluções para uma crise elevada a tantas potências.
Deixei Sara a dormir sossegada debaixo do edredão e desci à sala onde o Professor, com as calças de ir regar a horta vestidas, fingia ser o Pombo-Correio. Era - disse-me depois - para encarnar bem o papel que, daí a pouco, teria de representar perante o novo polícia.
Depois era a Clara que vinha ter connosco, mas, ao meio da escadaria escorregou e, nesse entretanto, retomou a vida de Lilicas. Graças a Deus porque, se a Clara estivesse no período diferente daquele em que era capaz de passar tardes inteiras com mulheres fastidiosas em reuniões da Tuppwrere só para me comprar uns plásticos para a sopa, seria um desastre. O César que o diga! Sobretudo quando, azeda como vinagre, nos últimos tempos, andava armada em Sherlock Holmes a descobrir todos os podres ao pobre do meu irmão.
Acabam de tocar a campainha e Lilicas, vestida com o seu belo roupão vermelho e adoptando o velho o jeito para delícias da alcova agora com a incorporação de elementos do sadomasoquismo, vai à porta. Sorrateiramente entreabre um pouco o dito roupão mostrando o soutien copa quarenta e uma bela cueca preta. O homem ficou de tal maneira aparvalhado que, mal se deparou com convite tão explícito, deixou cair o porta-chaves da mão mandando atabalhoadamente os pintores dos digitais atrás de vestígios.
Lilicas, vendo-se descalça e sem o chicote, foi ao quarto calçar as botas e munir-se dos apetrechos necessários. Quando desceu, daí a instantes, o tio-avô teve de intervir, dizendo que o comportamento da sobrinha ultimamente deixava muito a desejar. A ponto de o envergonhar muitas vezes com cenas idênticas. Não se conformava por ter na família uma rapariga tão doidivanas como ela.
O Porta-Chaves pareceu-me pouco interessado nas explicações do velhote. Deu-me até a sensação de que não demoraria muito tempo a estar com Lilicas às voltas na cama. Mas isso era lá com eles. Tanto eu como o mano César nunca fomos ciumentos, queremos é o mundo todo feliz.
Quando o Professor se apresentou ao investigador como a vítima, o homem deve ter pensado que a criatura tinha sido atirada a um tanque e que a tentativa de homicídio ocorrera provavelmente na piscina, ou mesmo até no rio, um pouco mais abaixo do solar. Parecia mesmo isso, se fosse dar crédito às calças curtas do professor. Aparentemente, tinham mingado à custa de um bom banho de água fria. Talvez até do lago onde dançavam dois bonitos cisnes, um macho e uma fêmea, indiferentes às dramáticas ocorrências do solar durante a noite. Todavia o Porta-Chaves lá perguntou ao velhote como é que o potencial homicida o tentara matar.
Quando o meu hóspede lhe disse ter sido com um susto seguido do rebentamento de um balão, bem como do vulgar bu próprio para sustos, o inspector sorriu como quem acredita estar numa casa de gente doida. Depois, vi-o anotar nos cartapácios dele o seguinte: não se tratando de doidice colectiva, o mais que a Judiciária poderia fazer era manter-nos debaixo de olho. Era possível estar ali a génese de uma seita semelhante à do Templo do Sol, capaz de um dia desencadear uma tragédia como aqueles malucos tinham provocado há uns anos atrás. Mas, pelo olhar cobiçoso do Porta-Chaves, doida ou não, a única coisa ali a interessar-lhe era a Lilicas, e foi sem grande espanto que ela, num aparente momento de distracção minha e da falsa vítima, lhe meteu um bilhete com o número do telemóvel na mão.
Após os homens dos pincéis fecharem a mala e dizerem que não tinham encontrado nenhum vestígio, foram-se embora quando ainda nem sequer era meia-noite.
E agora? Que mais me estaria reservado?
Mal pude, fui ao meu quarto onde a Sara tinha voltado a ser outra vez a original Clara, quando a batata, teimosa como uma mula, lhe andava na goela para cima e para baixo a provocar-lhe constantes alterações de personalidade.
Passei assim, nesta intermitência, as horas que faltavam até de manhã, com os todos a variar, ora de Professor para Agricultor, de Lilicas para Clara, de Clara para Sara, num frenesim que, se não for a maldita da hérnia discal a matar-me, há-de ser esta gente maluca. Tem sido um autêntico corrupio, com tantas personagens a entrar e a sair umas das outras.
Quando a cozinheira voltou, depois de ter ido ver o bebé da bisneta, felizmente os alucinados estavam todos como quando a velhota nos tinha deixado à mesa. Até porque o Professor, nesse meio tempo, tinha mudado de roupa e vestido a velha gabardina.
Com tantas coisas esquisitas, o meu querido solar estava de pernas para o ar. Além do mais, quando a mulherzinha se preparava para ir preparar o pequeno-almoço, ao meter a mão ao bolso do avental, encontrou a chupeta do tetraneto, que nesse momento devia estar a chorar como um desalmado em miniatura com a falta da mama falsa.
Já não tenho nem cabeça, nem paciência para lidar com esta história e o melhor é perguntar à mamã o que fazer a seguir, pois, parece-me, vou continuar como o narrador de serviço.
Ela diz-me o seguinte: mal o Professor veja a chupeta na mão da mulherzinha, uma partícula da batata tem de lhe regurgitar na boca. A ponto de o fazer lembrar imediatamente da cena de que foi vítima no outro livro quando foi raptado, bem como da tarefa que agora tinha de desempenhar na qualidade de membro dos Recolectores Ambidestros de Infusões, Venenos e Antídotos. O Professor terá de ir à biblioteca deste lugarejo procurar um tal manuscrito fórmico, o qual, juntamente com o salmo ambulante em que se transformou o Pombo-Correio, ainda encarcerado no quarto dos fundos, será a base da sua alquimia de meia-tijela.
A mamã diz-me também para ir dar de comer ao prisioneiro. Sob pena de o matarmos à fome à conta de uma causa que nem sequer sabemos se será ou não coroada de êxito.
Obedeço, vou ao quarto dar broa com azeitonas ao Pombo-Correio e um copo de água-pé. Regresso num instante.
O Professor, muito embora seja oriundo do livro do meio, decide confrontar a autora como se ela fosse realmente a sua dona.
Professor: - Não, minha cara escritora! Nem pense que vou outra vez sujeitar-me a ser drogado e raptado lá pelo antiquário, o namorado da minha sobrinha-neta doidivanas, só para tirar o pó a um documento que, tanto quanto me lembro, não passa de uma cópia grosseira sabe-se lá de quê! Sobretudo porque, um dia destes, vai haver cá em casa um jantar em que participará Mel Gibson para me ensinar alguns conhecimentos daquela língua morta lá do tempo do Mestre!
A mamã tem vontade de lhe dizer que cópia grosseira era a tia dele e que o manuscrito, estruturado em três cadernos, sendo dela, tinha sido roubado por uma editora e dado a escritores como remédio para lhes estimular a imaginação, de dia para dia tão murcha como folhas de couves velhas. E nem o facto de eles, para disfarçarem, terem atribuído o escrito dela a um autor latino, um tal Montanus, gabando com isso, indirectamente, a pureza do seu estilo, lhe afrouxou a indignação. Porém, a mãe diz-lhe que tudo dependerá das declarações dele para este novo romance, conjugadas, obviamente, com as de Sara, de Lilicas e com as minhas. Já para não falar nas de César.
O Professor franziu o sobrolho, mas lá acabou por aceitar as condições da autora. Vai ter de colaborar sem reclamações. Tudo decorreu enquanto o velho tomava café com leite e comia um papo-seco sem manteiga, ao mesmo tempo que guardava uma côdea no bolso da gabardina, na mesma altura em que Sara – ela mesma e não sei como é que conseguiu acertar na personagem… – se sentava à mesa para tomar também o café da manhã.
Entretanto a velhota contou a Sara o episódio da chupeta, pedindo-lhe para a deixar ir devolvê-la ao bisneto. Sara acedeu logo condoída ao imaginar os gritos de privação do ao recém-nascido.
A mamã começou por perguntar ao velho o significado das iniciais MS – I - 654 mgd.
O homem ficou bastante agitado e parecia não saber responder. A seguir desculpou-se como pode, aconselhando a mamã a questionar quem tinha escrito o livro do meio. Ele era apenas personagem e só tinha de obedecer a quem, bem ou mal, o criara como se ele não passasse de um boneco de trapos, ou até mesmo de um Pinóquio, um mentiroso ao serviço de certos interesses.
No meio de toda aquela agitação, não demorou muito a aparecer de novo a personalidade do Agricultor que, em alto e bom som, descodificou a criptografia daquelas letras e números. Nem precisou dos benditos códigos que os ratos tinham comido como se fossem queijo dentro da gabardina do Professor:
Agricultor: - Isso são as iniciais do nome da autora e parte do número do bilhete de identidade. Ela mandou para a editora a fotocópia do bilhete de identidade.
Semelhante declaração fez despertar em Sara a personalidade de Clara que anteriormente já se tinha manifestado e, a seguir, prontamente Clara corroborou a veracidade das palavras proferidas pelo Agricultor. Lilicas, entretanto, também a parecer-se outra vez com Clara a partir de quem também fora concebida, fez a mesma afirmação. Acrescentou ainda que a história do bilhete de identidade fora mesmo a razão pela qual lhe tinham chamado tantas vezes loura burra, morena estúpida e ninfomaníaca.
Só me faltava mesmo, era eu, Gabriel, o anjo, ir à garagem onde escondemos as batatas e comer um pedacinho para ver se nesta espécie de mesa redonda sobre vidas esquisitas entrava também César, ou seja, eu mesmo, surgido de outros Carnavais para meter mais lenha na fogueira. Isto aqui tornou-se numa autêntica dança de cadeiras, ocupadas segundo a criatura que sobre este polémico assunto tenha alguma coisa a dizer.


continua
« Última modificação: Outubro 12, 2022, 16:32:39 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #44 em: Julho 17, 2022, 16:13:33 »

Coitos na terra e no céu? E pobres dos anjos, que consta não terem sexo?
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Agosto 12, 2024, 21:38:48
A todos um FigasAbraço
Maio 25, 2024, 13:29:23
Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
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