Maria Gabriela de Sá
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« em: Janeiro 09, 2021, 20:28:57 » |
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Once up on a time…
- Vais passar o Natal a casa! Ora onde é que já se viu uma filha não querer ir ver os pais numa altura destas! A rapariguinha não lhe era nada. Desaguara-lhe em casa numa dessas circunstâncias a que a bondade da velha senhora não podia dizer não. A sua função era tê-la recebido, três meses antes, e educá-la agora, aos dezasseis anos, a troco de pequenos serviços, repartidos entre a sua profissão de modista da classe abastada dos arredores do Porto e as minudências da casa, onde, até aÃ, vivia com o marido ausente do nascer ao por do sol, nos braços da amante e da filha que fizera fora de portas com a desculpa de a mulher não poder engravidar.
As clientes do ateliê eram sobretudo a sul do Douro, entre a Aguda, Paços de Brandão e Espinho. Cada vez menos, à medida que o pronto-a-vestir invadia as montas da cidade e acabava com as velhas modistas. Os rendimentos da senhora não eram, por isso, de grande monta. As despesas, às vezes, excediam as receitas. O senhor que ia dormir com ela a casa todas as noites limitava-se a pagar a renda e a roupa lavada pela lavadeira. Noutros tempos, as máquinas de lavar eram sobretudo as mãos das lavadeiras e as águas do rio, para onde as mulheres as levavam, cidade adiante, à cabeça, numa trouxa branca feita com um lençol como um grande cogumelo virado ao contrário.
Assim, a bondosa senhora não podia pagar grande coisa à jovem pela mais-valia das suas pequenas mãos. A estas valiam-lhe, sobretudo, as gorjetas para os alfinetes da dona quando levava ao carro das freguesas, engomada e estendida o mais possÃvel para não se engelhar, a obra saÃda das mãos das empregadas, que a haviam acabado sob a supervisão da dona, entre os “sim senhora servis †e queixas mesquinhas acerca da patroa com que enchiam os ouvidos à rapariga por tudo e por nada. Como se esta fosse um muro de lamentações providencial que tivesse caÃdo lá em casa. Ou um pequeno saco de desabafos, a que à s vezes nem a dona da casa se furtava. Sobretudo de manhã, em voz baixa e longe umas das outras. Da parte de tarde, Natália estudava, de graça, num estabelecimento de ensino dedicado a jovenzinhas desfavorecidas como ela, sem eira nem beira, e que um dia, pouco mais do que aos trancos-barrancos, chegara à cidade à procura de um sonho, que então tinha a certeza de encontrar por ai algures à sua espera. E Natália também não se queixava da sua pobreza. Interessava-lhe essencialmente estudar e aprender tudo. Até não haver mais nada para saber e aprender. Como se o conhecimento e a sabedoria do mundo pudessem ser contidas no cérebro romântico de uma adolescente de dezasseis anos que um dia resolvera, mais ou menos, fugir de casa e da famÃlia.
O porquê dessa fuga não o sabia bem a dona LavÃnia. E, mesmo sabendo-o, ela, que não tivera filhos, não seria capaz de entender as suas origens e dimensão. Vivia aprisionada num casamento de fachada, com um homem bonito que a levava a almoçar fora ao Domingo, sem ela querer, ou poder, pôr um fim a tão desarticulada união. Talvez por amor… Coisa que a jovem Natália há muito aprendera a relativizar no seio da própria famÃlia, em que os entorses eram inúmeros. Daà o imperativo “Tens de ir passar o Natal com os teus pais†lhe ter parecido desproporcional. Gigante. Sabia que iria encontrar mais do mesmo. Tudo como deixara dois anos antes, desarticulado como o casamento da dona LavÃnia, agora que todos os irmãos já tinham metido os pés ao caminho na sua própria existência. E era por tantas razões que preferia passar a quadra com a senhora: saber que iguarias da ceia poria na mesa e com quem as partilharia. Era certo e sabido que o marido estaria ausente, e ela talvez fosse passar as festas com os familiares ou amigos. Isso se não se metesse na cama a chorar sozinha por uma vida que, em certos dias como o Natal, lhe ampliaria certamente a solidão. Findas as aulas, lá foi Natália como uma verdadeira estudante sem preocupações. Não era bem, mas essa aparente sensação era-lhe grata. Com o dinheiro das gorjetas, comprou umas calças, as primeiras, cinzentas de fazenda para emparelharem com o casaco comprido da mesma cor que já lhe levava mais de dois anos à s costas no tempo frio. Com elas, sentia-se uma rapariga moderna, na onda do progresso. Embora a dona LavÃnia, quando as viu pela primeira vez, não tivesse aprovado a ideia, por gostar de ver as mulheres de saias e vestidos semelhantes aos que ela própria fazia. Mas lá acabou por aceitar, com a desculpa da rapariga que se assumiu como muito friorenta. Além de a aldeia para onde ia ser um poço de gelo no Inverno.
Não teve tempo para avisar ninguém da sua partida. Mesmo que o fizesse, não teria ninguém à chegada.
-Ela não queria desbravar o mundo sozinha? Então que se amanhe.
Natália não se lembra hoje, décadas passadas, como foi até à Estação de S. Bento apanhar o comboio, nem o horário, nem como ou com quem viajou. Talvez levasse a mesma pequena mala que trouxera à saÃda da aldeia, e talvez a contrariedade da viagem também tenha sido banida das suas lembranças por uma memória selectiva que pretenderia, desde logo, libertar para o futuro no seu cérebro espaço para coisas mais importantes.
Horas depois, era de noite quando chegou ao primeiro destino. Meteu-se a seguir na camioneta, que, numa montanha de curvas que a deixavam enjoada e gemendo durante um bons vinte minutos estrada acima, a deixou, sozinha e no meio da escuridão, na paragem do destino número dois. Agora, o percurso até à aldeia era ingreme até na descida e pedregoso. Fazia um frio de morte. O silêncio da noite, ali perto, era quebrado pelo vento que folheava as árvores num murmúrio agitado. Ao longe, ouvia-se, de vez em quando, o latido de um cão e o roçagar no empedrado das ruas das ferraduras de um cavalo que recolhia ao cortelho pela mão do dono. Para não ter medo, nem de malfeitores, nem da escuridão, muito menos de fantasmas, pensou em mil e uma coisas bonitas que vira entretanto na cidade, enquanto, para não cair e rolar por uma ribanceira abaixo e matar-se lá no fundo, tacteava o caminho pedregoso com cuidado por causa da cegueira nocturna que a envolvia por todo o lado no seu manto de sombras. Perto das vinte horas, batia Natália à porta de casa.
Quem lha abriu foi o pai que, antes de dar à filha visitante o beijo circunstancial da praxe, a olhou de cima a baixo com ar de desaprovação, como se, no corpo da rapariga, procurasse coisas que a jovem tivesse feito com ele capazes de o envergonharem. A si e a uma aldeia inteira, que veria a filha no dia seguinte e sobretudo na noite de Natal.
- Não tinhas uma saia para vestir? – perguntou com desdém. - Deram-me estas calças por serem mais quentes e aqui ser muito frio – mentiu a rapariga. E o pai resignou-se como ex-dono, a quem a filha já não pertencia. A mãe, com o ferro de engomar eléctrico verde, brunia na saleta do meio e veio a seguir à entrada. Quase tão pouco efusiva como o pai, não levou grande tempo a perguntar-lhe o que queria comer. Eram tempos em que o amor se dava sobretudo através da comida. - Caldo de couves. Mas primeiro quero aquecer-me à lareira.
Foi o pai quem a acendeu, enquanto a mãe preparava tudo para satisfazer o pedido da filha.
Daà a pouco mais de duas horas, depois do caldo, o pai deitou-se e Natália foi igualmente confrontar-se com os lençóis, na cama onde dormira durante toda a infância. Como sempre e talvez agora mais do que nunca, de tão frios, pareciam gelo. A mãe, por sua vez, retomou o ferro e a roupa de dois gatos-pingados, cada vez mais sós, que passava eximiamente. Não havia necessidade de serão, mas a mãe da jovem era assim. Do dia fazia noite e da noite dia. Sempre tivera uma estranha relação com o tempo e o relógio. Era sobretudo pelo sol que se orientava, e, quando este faltava, os dentes da roda dentada em que se movia desorientava-se. Já Natália, na cama e antes de, a custo, adormecer, tossia com frequência, com os pés gelados como os pés da morte. A morte, mais do que ninguém, tem pés que a levam a todo o lado. Até que sossegou quente de vida, com quilos de roupa sobre o corpo e não se sabe que sonhos.
Quis Deus nessa noite que, para lá do Marão, além de mandarem os que lá estão, Ele tivesse uma palavra a dizer e que, de manhã, Natália acordasse com um forte nevão e um horizonte branquinho como há muito ninguém via por ali. Aos pés, sentiu qualquer coisa rÃgida em que tocou. Era o ferro de engomar que a mãe embrulhara ainda quente num pano para lhe aquecer os pés…
Lá fora, a neve branqueava a alma de todos e o espÃrito de Natal.
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