jcbrito
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« em: Maio 25, 2008, 14:38:24 » |
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Versículo 6: o fogo
O silêncio apoderou-se da horda, que reza uma interminável oração ondulante dita por um homem de opa. Desatam as cordas e pregam-no a uma cruz. Vou morrer como Cristo, crucificado num altar, com gente a aplaudir o meu fim. Há muito que não sinto frio, mas agora, paradoxalmente, começo a ter calor. E cheira a queimado. Os caixotes da YNOS, poucos centímetros sob os meus pés, são, neste momento, pasto de chamas. A oração terminou e todos aproveitam para dar os últimos gritos e pronunciar o meu nome e impropérios sobre mim. A mulher feia simula muito grosseiramente um desmaio, o que provoca uma gargalhada geral. As chamas tocam-me os calcanhares. A esperança é a última a morrer. Às portas da morte ou de um segundo e óbito final, João aspirava a ser protagonista de um milagre. Talvez o regresso de um cavaleiro andante Torcato que, num ímpeto de arrependimento ou de fúria por ter sido enganado pela contrafacção hábil dos putos espinhudos, irrompesse, por entre a multidão e o arrebatasse consigo, no seu alvo corcel. E que precisasse dele para artista principal da nova companhia, porque o público se tinha cansado das salas de cinema e queria novamente ir ao teatro. Ou então que o pai, misteriosamente desaparecido após a cárcere da baleia, o descobrisse e o libertasse. Voltariam a casa, comeriam sopa de cenouras e contariam histórias um ao outro, felizes para sempre. Mas havia uma outra hipótese, que se lhe afigurava bem mais realista: a possibilidade de o lume não pegar no seu corpo de carvalho, de tão exposto que estivera à humidade e à água da chuva. Mergulhado como estive, sem me mexer, na água fétida do corredor subterrâneo da estação, não há fogo que me chegue. Quando virem que não conseguem, desistem e vão-se embora. João, vais ter uma nova oportunidade de vida! Não a desperdices, como sempre tens feito. — Trouxestes a gasolina, Cosme? — Claro, se não como é que o gajo ia arder de tão molhado que está? — E as bombas de estouro? Trouxestes?... — Mas tu pensas que eu sou como tu, meu cabrão? Achas que me ia esquecer? Trouxe pra dar e vender! Do alto de uma escada, Cosme pulverizou-o e colocou, estrategicamente uma boa dúzia de bombas práquilo estourar bem estourado. Nos pés, nas mãos, na carcela, substituindo cirurgicamente a cenoura pelo artefacto bélico, na boca, como se de um charuto se tratasse… Para aquela gentinha, foi, de facto, o melhor Enterro do João que jamais tinham feito. E teria sido perfeito se não fosse o raio da chuva que, repentinamente, se abateu sobre os negros e carregados céus daqueles subúrbios da Invicta e que a todos pôs asas nos pés para procurar abrigo. Os mais corajosos ainda decidiram ficar para ver as primeiras bombas a estourar e se, possível, como reza a tradição de Entrudo, guardar um pedaço de madeira até à cerimónia seguinte para acender com ela a próxima fogueira fúnebre. Dizem que dá sorte e ventura e, porque não traz mal, não é grande perigo acreditar e manter o culto vivo. Mas Eolo também quis participar na festa e resolveu fazer uma impensável e ciclónica aparição. Os guarda-chuvas deixaram de guardar quem deviam e partiram para aquele reino misterioso onde se concentram todos os guarda-chuvas que, diariamente, logram escapar aos seus donos. Era, ao fim e ao cabo, um fenómeno perfeitamente natural para a época do ano que se vivia. Mais a mais, a intempérie até estava prevista pelo Instituto de Meteorologia e Geofísica, que enviara um faxe para todos os órgãos de prevenção para activar os serviços de Protecção Civil para qualquer eventualidade, que, diga-se de passagem, não chegou a acontecer, a não ser uma ou duas telhas que voaram dos respectivos telhados. Mas João agradeceu o milagre e viveu para contá-lo.
FIM
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