- d e z -

[Aleph]

Dez para as dez,
ficarei quieto a partir de agora,
há uma lesão tentacular que alastra
rigorosa lá fora e desliza
pela tua ausência adentro; quase
membrana lacada de silêncio
quase finura armadilhada, madura,
permeável ao alcance directo dessa
garra de ferro fincada
no vértice de espuma das bocas.
É preciso deixar tudo por nada,
respirar-te, e enquanto afluis deitada
saber que durmo por turnos no teu sono
e o vazio que vem e desabrocha
dividido em dois se fecha em flor
e calando agora ouvirei depois
o primeiro segundo seguindo fremente
também ele oxidando esta espera
cuspindo fissuras na noite severa
e num lento andamento final
escalavro a porosidade rude
de tronco ardido de um sorriso
e sem recear pedir, desejo preciso
que venha cego o sol, empolado
e nos meça a distância
de ombro a ombro, olho a olho,
lábio a lábio, de lés-a-lés
em unidades moles de tempo-luz.
Quantas vezes vida vento cabem
no urdume de veias densas do teu pulso
a impelir o sangue em sentido inverso
à rota quente das andorinhas?
Quantos dias trespassam a montante
a casa da derme e sopram cá dentro,
quantas rotas remotas do vento são minhas?
É preciso sobreviver para lá das respostas
saber que ninguém se constrói
de hastear vogais consoante
as letras que marcam a carne;
se ofereço palavras que nunca tive
e encosto a cabeça à obsidiana quente
ainda dentro do ventre do vulcão,
é porque nessa combustão descubro
exantemas na pele de um poema
selvagem, reactivo ao toque
um verso apenas, lembrando alguém
que mesmo não tendo ido embora
deixa no ar uma áscua pulsante
que se fecha enjaulada por dentro
das minhas vértebras em fúria.
Às dez para as dez,
ficaremos hoje como éramos antes:
dois ponteiros num só, acima da chama
marcando a força do vento nas folhas,
sorvendo as rugas de água dos rios
guardando dentro da íris
os pássaros de cal, as pedras
dormindo impunes no quintal
para nos aninharmos na mesma onda
que nos arrasta enquanto o tempo é ainda
descontinuidade ininterrupta de azul
e nos deixa na exacta hora,
no preciso minuto de um adeus:
igualmente imóveis
às dez para as dez

[Dionísio Dinis]

"Quantas vezes vida vento cabem
no urdume de veias densas do teu pulso
a impelir o sangue em sentido inverso
à rota quente das andorinhas?
Quantos dias trespassam a montante
a casa da derme e sopram cá dentro,
quantas rotas remotas do vento são minhas?
É preciso sobreviver para lá das respostas
saber que ninguém se constrói
de hastear vogais consoante
as letras que marcam a carne;"

Cito de cor os versos supra, cito de cor, porque a cor  do decálogo das horas e minutos expressos na viagem de medidas e desejos do sujeito poético, é uma viagem assaz colorida por nuances de não-cor firmada com um amplexo firme de desejo por realizar , ou a realizar paulatina  e conscientemente, e é também, a viagem livre na exposição de talento e precariedade do humano.Bravo!

[Aleph]

Caro Dionísio Dinis,

Muito obrigado pela (sempre atenta) leitura e pela grande riqueza do comentário.



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A   l   e   p   h

[zésilveiradobrasil]

sou um ledor dispersivo, isto se o texto não me prender nos primeiros versos. foi prazeroso lê-lo na íntegra, pois assim senti a sua obra; integral.
fraterno abraço.
Silveira

[marcopintoc]

Poeta,

Um dos grandes dramas do mundo digital  é o excesso de informação. Uma enxurrada de trigo e joio que cega os Homens. Já conhecia a sua obra , embora tenha a sido a insistência de outros sinceros amantes das belas letras que me fizeram ser mais atento à mesma. Não estavam errados(as)  aqueles que elogiavam a sua poesia. É, de facto, notável. Redimo-me do silêncio com um aplauso à sua mestria.
Abraço
Marco

[Aleph]

Caro Júlio Saraiva,

Obrigado pelo comentário. É bom saber que, na sua leitura, achou este poema "lírico sem ser chato"; até porque, como dizia a Clarice Lispector "o mundo não é chato", talvez ironizando o livro "The World Is Flat" de Thomas L. Friedman (e como o Júlio melhor que ninguém saberá: frase também aproveitada por Caetano Veloso para título do seu livro de crónicas). É bom contar com as suas leituras e comentários.


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Caro JoséSilveira,

Obrigado pela sua leitura íntegra e na íntegra deste poema. Fico feliz pelo facto deste poema ter concentrado a sua "leitura dispersiva" e, assim, ter sido merecedor de tão simpático comentário.


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Caro Domingos da Mota,

Grato pela leitura e pela sua tão positiva  - e sempre importante para mim - apreciação a este poema.


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Cara Fabrícia Muniz,

Agradeço mais uma vez a leitura atenta e o atencioso comentário. De facto, uma "consumição pelo fogo"...mas...apesar da profusão de palavras e tamanho do texto, diria que se tratará talvez mais de implosão que explosão. Como sempre, é para mim fundamental o seu interesse e apreciação.


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Caro Marco Pinto,

Muito obrigado pela leitura e pelo elogioso comentário. Concordo plenamente com a existência de excesso de informação no mundo virtual, acrescida de uma ditadura da síntese, do rápido, do apelo fácil, da falta de disponibilidade (nem sempre falta de tempo) para nos debruçarmos sobre as coisas, para as conhecermos e tentarmos ver através delas, uma dificuldade para, sempre que necessário, nos conseguirmos afastar do ruído que prolifera e preferirmos o silêncio. Por isso, não se redima, agradeço o silêncio, a sua intervenção cirúrgica, a disponibilidade e, acima de tudo, a oportunidade de me (nos) dar a ler os seus excelentes textos neorealistas e envolventes, que tão bem conheço e acompanho, apesar de - também eu - nem sempre o explicitar através de comentários.

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A todos muito obrigado pela partilha.

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A  l  e  p  h

 

[Niana]

Um poema intenso e rico, a trazer-me ecos de Herberto Helder... Também o senti como uma plena implosão, a gerar nova vida. Algures.

[Goreti Dias]

Um poema onde a lírica está em excelência!

[Aleph]

Cara Niana,

Muito grato pela sua leitura e pelas palavras que aqui deixou. É bom saber que gostou deste X e dos seus ecos...e que das implosões é possível surgir vida.



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Cara Goreti Dias,

Obrigado pelo comentário positivo a este poema e atenciosidade sempre presente em todas a(s) sua(s) leitura(s) ao que vou produzindo aqui no site.



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A   l   e   p   h

[Goreti Dias]

É normal apreciarmos o que é bom!

[Lucrécia Bórgia]

Não são dez para as dez, mas resolvi espreitar a gente da casa. Gostei razoavelmente.