Pedro Ventura
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« em: Janeiro 05, 2011, 11:20:07 » |
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I
Teresinha das Neves finou-se num aprazÃvel dia de Primavera com noventa e dois anos. Doença ou simplesmente velhice, nunca na aldeia se soube ao certo, simplesmente não acordou nesse dia. O que se dizia à boca pequena, depois da notÃcia da sua morte ter corrido toda a povoação, era a quem ela iria deixar o seu pecúlio, visto, não ter familiares próximos e não ter filhos por nunca ter casado. Apesar de em nova nunca lhe terem faltado candidatos, isso nunca foi assunto que lhe espantasse o sono, pelo contrário, sempre foi uma mulher de bem com a vida e nunca sofreu por não ter quem lhe aquecesse os pés. Também nunca se soube muito bem quem tratou do enterro, mas o que é certo é que Teresinha das Neves lá tinha o seu palminho de terra à sua espera. No dia da cerimónia fúnebre o sino da igreja tocou e foram muitos os que acompanharam o cortejo, mas, no fundo todos com a mesma questão a cirandar na mente: Quem iria ficar com os bens de Teresinha das Neves? E só uma pessoa saberia responder a essa questão, a D. Aida Catarino, sua vizinha e confidente e que trabalhava no posto dos correios. Expedita em lidar com burocracias foi ela quem tratou do testamento da falecida, claro está que a ela também calharia uma pequena fatia do bolo, um grande bolo por sinal. Ninguém no lugarejo poderia dizer que Teresinha das Neves não gostava de ajudar o próximo, mas ela sempre teve na sua mente lúcida o destino que daria aos seus bens, neste caso ao seu dinheiro, depois de morrer. E foi esse veredicto que fez juntar no dia seguinte ao seu enterro, um amontoado de gente na estação dos correios. - Meus senhores e minhas senhoras - encetou D. Aida Catarino - estamos aqui reunidos para concretizar o sonho de Teresinha das Neves. Um sonho apenas partilhado com a minha pessoa e que hoje vou divulgar. Posso afirmar que são boas novas para a nossa aldeia, por isso os convoquei para virem até aqui. - o povo mostrava-se apreensivo - Teresinha das Neves sempre acalentou o sonho de ajudar os bombeiros aqui da aldeia… Como todos sabem as condições são péssimas, mas são as possÃveis, e muita sorte temos do Sr. Ramiro ter emprestado o seu barracão para servir de comando… Portanto, e para não me alongar mais no discurso, a decisão desta boa mulher, que Deus a tenha em sossego, foi doar o seu dinheiro para comprar uma ambulância para servir as necessidades da nossa gente. - o povo estava boquiaberto, especialmente o Barbas, que era bombeiro e também a pessoa que recolhia o lixo de toda a povoação - Espero que esta seja uma boa notÃcia para todos. A mim cabe-me a tarefa de tratar de tudo e, se tudo correr dentro dos prazos, daqui a um mês teremos aqui a nossa ambulância. E que esta ambulância venha servir quem precisa… - Era bom sinal que não se lhe desse uso! – interrompeu alguém da plateia. - Também é verdade! Por agora é tudo, obrigado a todos e passem bem! – rematou D. Aida Catarino. Findo o discurso, o povo dispersou aos sussurros. Uns desapontados, outros incrédulos. Entre todos, o Barbas parecia o mais feliz.
II
O Barbas não só tinha a fama de ser um homem ébrio de sol a sol como também tinha o proveito. Mas, apesar de tudo, era bom homem, amigo do seu amigo, não tinha má bebida e era trabalhador. O tinto era apenas o combustÃvel que ele precisava para se manter activo, tanto na recolha do lixo, que intercalava sempre com uma ou duas idas à taberna do Zé Garruço, como no barracão onde funcionava o posto de bombeiros, onde grande parte do tempo, à falta de ocorrências, ressonava ao volante do jipe, o único veÃculo da corporação. Por enquanto. O mês passou a correr e todas as conversas iam dar à ambulância que chegaria em breve. Tem de se dizer que a ânsia era muita entre as gentes como se cada uma delas quisesse adoecer para experimentar o veÃculo numa ida até ao hospital que ficava a vinte kilómetros de curvas e contracurvas, de subidas e descidas, e que o atraso de uma semana ainda deixou mais ansiosa toda a população. Mas eis que o esperado dia chegou. A ambulância estaciona junto ao barracão dos bombeiros. Quem a recebeu foi o comandante Alves. O Barbas estava na sua recolha do lixo, mas depressa lhe chegou aos ouvidos que a ambulância tinha chegado e logo se pôs a correr direito ao barracão. E mal chegou, ofegante da corrida, os seus olhos rejubilaram tal criança que espera uma prenda pedida à muito. A notÃcia espalhara-se com o vento e depressa se juntou um amontoado de gente de volta da ambulância que estava com todas as portas escancaradas, para que o povo regalasse as vistas. Uns tocavam na chapa nova, outros olhavam serenamente como um admirador de arte olha para um quadro, outros rezavam de si para si para que não fossem os primeiros a serem transportados para o hospital, enfim, um ror de sentimentos apoderou-se de toda aquela gente. Claro que o Barbas estava em pulgas para se sentar na ambulância e afagar o volante, mas primeiro foi o seu superior. Apesar dos seus defeitos, sabia respeitar a hierarquia. O último a chegar foi o padre Francisco para benzer a ambulância e dizer algumas palavras. - Estamos aqui reunidos para celebrar a chegada desta ambulância que tanta falta faz a este povo e que Teresinha das Neves nos ofertou com toda a sua boa vontade. Esperemos que a sua utilidade seja pouca… - o padre benzeu a ambulância e prosseguiu – Vamos rezar em conjunto uma Ave Maria a Teresinha das Neves e a todos nós. Que Deus nos dê muita saúde! O povo une as mãos, baixa a cabeça e começa a rezar, quando de repente se ouve: Ti-nó-ni, ti-nó-ni, Ti-nó-ni, ti-nó-ni!! O povo, assusta-se, ergue a cabeça e interrompe a oração. Dentro da ambulância o Barbas fazia das dele, mexia nos botões ao acaso.
III
Era Verão, férias da escola e muito calor. Viam-se mais catraios a brincar pela aldeia. Cada um entretinha-se com o que podia. Uns jogavam ao pião junto ao coreto, outros banhavam-se no tanque da aldeia onde se lavava a roupa com sabão azul e branco e à força das mãos, havia até aqueles, os mais corpulentos, que ajudavam os pais no campo… Mas de todas as crianças, havia um grupo de três moços que gozavam em pregar partidas. O mais afoito, normalmente o cérebro dessas partidas, era o neto do Zé Garruço, o Gonçalo. Nesse dia que fervia o catraio lembrou-se de fazer uma brincadeira de mau gosto. Contou aos seus cúmplices, os quais assentiram prontamente. Aproveitou os seus pais estarem nas lides do campo, pegaram no telefone e ligaram para os bombeiros. - Estou?! – atendeu o comandante Alves. - É para dizer que o filho do Sr. Valdemar teve um acidente na Curva dos Cristos e que precisa urgentemente de ajuda. E desligaram entre casquinadas. O comandante mal ouviu o nome do Sr. Valdemar entrou em pânico e nem se lembrou que este não tinha filhos. O Sr. Valdemar era o homem mais rico da aldeia e gozava de certo estatuto entre o vulgo, visto dar trabalho a muita gente nos seus inúmeros pedaços de chão, nos pinheirais na época da recolha da resina e até na sua própria casa brasonada. O comandante Alves deu o alerta ao Barbas que ressonava dentro da ambulância em cima da maca, este acordou assarapantado e meteu-se a caminho. Era a primeira vez que a ambulância saÃa em serviço e o Barbas tinha a adrenalina nos pÃncaros. Ti-nó-ni, ti-nó-ni, Ti-nó-ni, ti-nó-ni, e lá foi ele a todo o gás para a Curva dos Cristos, onde já algumas pessoas se tinham lá ficado. Prova disso são as cruzes e as coroas de flores na berma da estrada. Tanta era a adrenalina, e talvez algum álcool à mistura, quem acaba por espetar na valeta foi o Barbas. O acidente não foi nada por aà além, apenas a roda na valeta, alguns danos materiais, ferimentos ligeiros, mas o Barbas ficou desnorteado e sem saber o que fazer. Liga ao comandante Alves. - Meu comandante, tive um acidente! A ambulância foi para a valeta! - Ai homem quantas vezes já te avisei para não beberes quando estás de serviço?! Raios!! - Desculpe… - Onde estás? – bradava o comandante do outro lado da linha. - Na Curva dos Cristos… Mas não vejo nenhum acidente!.. De certeza que era aqui na Curva dos Cristos?!.. O comandante Alves nem o escutou, tal era o seu desatino. - Vou ligar à corporação mais próxima! – disse o comandante, e desligou. Assim o fez. - Estou?! - Sim?! - Há um acidente na Curva dos Cristos, é o filho do Sr. Valdemar e parece que é grave. Ah… e está lá o Barbas, um operacional da nossa corporação que se espetou com a ambulância! - Mas só temos uma ambulância… Não podemos transportar dois feridos! - Não me importa! – barafustou o comandante Alves – Que se lixe o Barbas, tratem é do filho do Sr. Valdemar!!
2011
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