Adeus mulher. Adeus filho. Adeus pai. Adeus mãe. Adeus irmã. Estão os vossos rostos diante de mim. Estarão para sempre. Penso: sempre e nunca mais são o mesmo lugar. Mulher, filho, pai, mãe, irmã, não chorem por mim. Ainda há searas para as crianças. Ainda há as crianças. Guardem as lágrimas para um dia de mais alta nomeada. Guardem as lágrimas para o dia em que morrerem as searas nos olhos das crianças, para o dia em que morrerem as crianças. Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo.
- José LuÃs Peixoto, Nenhum olhar
José LuÃs Peixoto é o primeiro jovem escritor a ser trazido à lupa do
Livros (s)em critério. Escritor é uma profissão interessante, é-se considerado jovem no ofÃcio até quando? Questões de idade à parte, a carreira deste autor, não sendo das mais longas do paÃs, é já de um tamanho e variedade respeitável, com trabalhos em prosa, dramaturgia e poesia publicados desde 2000.
Em 2001, viu-se agraciado com o Prémio Literário José Saramago atribuÃdo a este romance -
Nenhum olhar. É precisamente deste modo que o livro acaba, com esta frase. É claro que não estou aqui para escrever sobre finais mas sobre a obra completa. Admito que comecei a ler um pouco a medo. Na literatura, como em tudo, o que me chega através de um
hype, que não conseguimos negar que José LuÃs Peixoto tem, deixa-me sempre de pé atrás - tive medo de estar a ler um livro que sucessivas boas crÃticas tivessem ajudado a “deusificarâ€. Estava enganado? Redondamente. Continue, pois, a ler, caro leitor.
O livro está dividido em duas grandes partes, e, mais do que por páginas, por trinta anos passados na história comum de uma aldeia, claramente no interior de um paÃs. Essas partes estão, no entanto, ligadas por personagens eternas (como o velho, velho Gabriel e a cozinheira viúva) que fazem de ponte entre as duas histórias de uma mesma história.
Dentro das suas páginas encontramos um mundo à parte, uma espécie de Portugal imaginário como os nossos avós o imaginavam, presos às suas crenças. Começa aà uma das qualidades deste livro, a capacidade de criar um mundo tão próximo das crenças rurais deste povo. Por isso vemos pessoas como o velho Gabriel, que já era velho quando a primeira pessoa da aldeia se lembrava dele e era velho para as crianças que cresceram para ser homens; vemos José, filho de José, com a profissão do pai, tal como o mestre Rafael seguidor da mesma profissão do progenitor; vemos as filhas a cuidar dos seus pais dementes, como sua obrigação de boas filhas; vemos a cadela do pastor, leal ao ponto de morrer ou matar pelo seu dono; temos o monte das Oliveiras, propriedade do Doutor Mateus, que nunca por lá foi encontrado a não ser na memória dos habitantes da aldeia e dos seus empregados; vemos gémeos siameses, demónios, cozinheiras escultoras de comida e gigantes. Um manancial de possibilidades para trabalhar.
O livro começa com a história do primeiro José, o pai, que vive obcecado com a nova empregada do Doutor Mateus, com quem mais tarde se casa e vive. É, no entanto, constantemente arreliado pelo demónio que o desafia com constantes boatos, sempre à frente de um copo de vinho tinto e sempre na venda do judas, do envolvimento da sua mulher com o gigante. Esta constante tentação consome José por dentro e a sua vida por fora. O velho Gabriel aparece-nos aqui, como irá aparecer também trinta anos mais tarde, como o prenúncio sempre ignorado de que algo mau vai acontecer, tentando dissuadir José de ouvir o diabo. Paralelamente, o gémeo Moisés casa-se com a cozinheira viúva sendo abençoado com uma menina, mesmo apesar de ambos os pais terem mais de 70 anos de idade.
Na segunda parte do livro, trinta anos mais tarde, vemos José, filho de José e pastor como o pai, o seu primo Salomão e a mulher deste formarem um estranho triângulo. José e a mulher de Salomão passaram ao lado da felicidade juntos; Salomão e a mulher vivem sem viverem; Salomão e José, primos e amigos de infância vêm a sua amizade ameaçada pelas constantes tentações do diabo a Salomão, tal como tinha feito trinta anos antes ao seu tio. Há também a vida de um mestre de marcenaria que apenas tem um braço e uma perna e da sua mulher, uma ex-prostituta cega. Há mais um aviso do velho Gabriel, novamente ignorado. E um calor terrÃvel, um calor que percorre todo o livro e que se vai acentuando com o passar das páginas até a nossa própria visão daquela aldeia parecer derreter levemente quanto mais o final se aproxima, como se todos nós, livro, personagens, autor e leitor estivéssemos a mergulhar lentamente num inferno cada vez mais ardente, saudados pelo diabo, personagem eterna no imaginário português.
O que mais agrada neste livro, para além da história e do brilhante mundo construÃdo, é a constante mudança do ponto de vista narrativo: ora temos um narrador neutro, ora um personagem, ora outro, por vezes vários personagens a ver a mesma cena com perspectivas diferentes e, ocasionalmente, com perspectivas iguais quando se quer reforçar a ideia de um laço invisÃvel. Gosto também do ritmo de leitura, apesar de ser um pouco estranho no inÃcio: não é assim tão fácil a adaptação, não bastam duas linhas para ficarmos imersos neste mundo paralelo como diz Eduardo Prado Coelho acerca deste livro, mas um capÃtulo é o bastante. O autor foi capaz de criar episódios terrivelmente marcantes, profundamente dolorosos, dor essa que cobre o livro de ponta a ponta, é, como li algures, um livro profundamente português nesse aspecto, impossÃvel lê-lo e não pensar em fado, ou
fatum, contribuindo para isso também todo o mundo imaginado em que os nossos avós acreditavam piamente.
Surpreende também, não pela qualidade da escrita (que se esperava de um vencedor do Prémio Literário José Saramago), mas pela profundidade subtil que José LuÃs Peixoto soube dar à s suas personagens. Não é preciso escavar muito para perceber que todas têm razão de existir: o velho Gabriel que representa a consciência de um povo, a cara amigável que todos tivemos ao crescer; o escritor alheado de tudo, tal como o próprio Peixoto, tal como o leitor, e tal como aqueles que vivem noutra realidade, tornando-se num portal para o mundo fora do livro; o diabo, origem do mal e da desgraça, tentador e tentação; a voz na arca, talvez o ponto mais enigmático do livro que sugere imensas interpretações: tanto pode ser a voz muda do homem que escreve fechado num quarto sem janelas como uma porta por onde todos os pensamentos de todos os homens da aldeia são ditos em voz alta. É claro que isto são apenas especulações deste vosso escriba, só José LuÃs Peixoto sabe responder; ou talvez nem ele o saiba, à s vezes os livros e os personagens criam-se sozinhos dentro dos seus autores…
Havia muito mais a dizer deste
Nenhum Olhar, muito, talvez o mais importante ainda, ficou por dizer. Mas, tal como todos os livros, ninguém consegue dizer tudo o que quer acerca dele, porque há sempre mais a descobrir. Convido-vos a descobrirem por vós mesmos este mundo tão próprio de Peixoto e tão próximo de Portugal. Jorge Amado foi capaz de transportar nos seus romances o calor da Bahia, José LuÃs Peixoto parece apto a captar a essência do povo português.
Escrito originalmente aqui.