Pedro Ventura
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« em: Janeiro 06, 2011, 22:22:19 » |
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Todos os dias depois de acordar, num acto rotineiro e quase involuntário, ainda ensonado, conduzo-me até à varanda para ver como nasceu o dia. Se chove ou está sol, se está vento ou faz frio… As vontades dos elementos influenciam depois o que vou indumentar. Do meu terceiro andar espraia-se uma vastidão de mar, à tarde o pôr-do-sol é digno de se contemplar e assaz inspirador. Tenho pena de ser inapto para as pinturas ou para as fotografias, que dali qualquer artista fazia boa arte. Ouvir a rebentação das ondas logo pela manhã, de certa forma, encoraja-me a encarar mais um dia de labuta. Depois é a rotina matutina de sempre. O despachar à s pressas para tentar não chegar atrasado ao serviço, enfiar uma chávena de café goela abaixo e sair. O espelho do elevador ajuda-me a dar mais um jeito no cabelo, dar um jeito na gravata, enfim, aquelas pequenas vaidades que todo o ser humano tem quando vê um espelho à sua frente, mormente, quando está sozinho. Certa manhã, vou à varanda, e reparo num homem sentado na muralha à pesca. Cana presa numa rocha, e lá estava ele, tal estátua muda, à espera que o peixe engolisse o engodo. Até aqui nada de mais. Era apenas um homem a pescar. À tarde quando regresso a casa, estaciono o carro, e reparo que o homem continuava ali e o astro-rei já se encobria. Subo para casa sem dar desmedida relevância ao assunto. Na manhã seguinte o homem estava precisamente no mesmo sÃtio, e perco alguns minutos a ver as suas acções, o que me levou a chegar atrasado ao trabalho. O que me fez mais confusão foi que quando vinha peixe no anzol, desenganchava-o e jogava-o à água de novo. À tarde a mesma coisa, apanhava peixe e devolvia-o ao mar. Intrigou-me de tal maneira que levei o assunto para a cama nessa noite e tive alguma dificuldade em pegar no sono. Semanas passaram e o homem parecia viver naquele pedaço de muralha. Parecia paciente, muito paciente, o que me confundia ainda mais as ideias, até que num sábado em que estive a observá-lo durante horas a fio na varanda, decido descer no intento de desvendar aquele mistério. Em jeito de passeio, passo pelo homem, estaco e pergunto: - Está boa a pesca? Como resposta a essa primeira abordagem, quiçá inoportuna, recebo em troca apenas silêncio. Tento uma segunda investida. - Que se pesca aqui? - Peixe! – reponde o homem secamente. - Que tipo de peixe? – tento soltar-lhe a lÃngua e ganhar alguma confiança. - Não sei! Peixe apenas! - Moro aqui mesmo em frente e tenho reparado que tem estado por aqui todos os dias. Deve ser uma grande paixão para si a pesca… - Não o é! Parecia que começava a haver diálogo, e eu estava a deixar-me levar pelas palavras enigmáticas daquele homem. - Mas se não o é porque está aqui todos os dias? - Espero, apenas! - Espera?! - Sim, espero! - Desculpe, e não me leve a mal se achar que estou a ser metediço, mas tenho reparado que apanha o peixe e depois joga-o ao mar… Porque faz isso? Se não quer o peixe porque é que perde tantos dias a apanhá-lo? O homem começa a arrecadar as suas coisas, com cara de quem levou a interrogação como uma ofensa, e vira-me as costas para se ir embora. Dá uns passos e volta-se. - Como lhe disse, apenas espero! Se o mar um dia me levou a mulher, também um dia me a há-de devolver. O homem segue o seu caminho e eu fico sentado na muralha, absorto.
2011
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