Tim_booth
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« em: Outubro 09, 2008, 20:58:53 » |
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Ainda se lembra perfeitamente da última palavra que ouviu. Não tanto uma palavra, mais um grunhido. Afinal aquela mulher sempre lhe parecera uma porca, tanto em tamanho, como em maneiras e especialmente no cheiro. Conhecia-a à distância só pelo cheiro, ainda antes de espetar a cabeça no cubÃculo que lhe tinha sido entregue há três anos para fazer a contabilidade das empresas que lhe cabiam na sorte determinada pela mulher com cheiro a porca. A porca era a chefe da secção. Adorava espetar a cabeça nos cubÃculos dos seus empregados, sempre quando estes menos a queriam ver. Tinha herdado do animal semelhante uma espécie de faro para entrar em momentos pouco oportunos, quando dormitavam depois de almoço, quando aproveitavam para ligar para casa, quando enfim, por qualquer razão, não estavam a trabalhar maquinalmente, como era da sua obrigação, tal como a empresa mandava. Mas, dizia eu, que ainda se lembrava da última palavra que ouviu. Mais uma vez aquela mulher horrÃvel tinha enfiado a cabeça no seu cubÃculo na pior das alturas, quando, em baixa voz, se queixava à mulher do terrÃvel pesadelo que era viver sob a tirania de um animal de quinta. Mas que merda vem a ser esta, gritava a porca, E que raio de maneira é essa de se falar do seu superior, grunhia a porca, E exijo saber imediatamente com que filho-da-puta estava você a falar, rosnava a porca, Ele e você estão com um pé bem metido no olho da rua, ignorava a porca a dificuldade fÃsica de conseguir enfiar um pé, especialmente bem enfiado, num olho de uma rua cega, que mesmo que não o fosse, seria certamente bem menor do que um pé comum. Você é um palhaço, sendo pa o último som que foi capaz de ouvir, não se apercebendo, felizmente para ele, do insulto que ficou por ouvir. No momento em que o som o deixou, fechou os olhos e o tempo pareceu parar e por breves instantes sentiu-se no homem mais feliz do mundo, agradecido por não ter de suportar a voz grunhida da chefe. É claro que este sentimento instantâneo desapareceu quase imediatamente, já que ver aquela boca horrÃvel em trajeitos horripilantes assusta qualquer um, especialmente se tudo o que se consegue ouvir é o som do silêncio, como se o silêncio fosse passÃvel de ter som. Na sua face, claro que ele não se apercebeu a não ser pela reacção da chefe, desenhou-se uma expressão de ingenuidade quase infantil, uma espécie de calma que a porca estranhou. Ninguém tem o direito de estar calmo perante ela, mais, ninguém tem o direito de ficar indiferente ao seu desprezo. E gritou mais e mais alto, grunhiu mais um pouco, rosnou ainda com mais raiva, coisas que o seu funcionário não foi capaz de ouvir, mas ela não sabia, e continuou a gritar, a grunhir e a rosnar, enfurecendo-se pela expressão vazia dele, enfurecendo-se por não estar a conseguir espezinhar aquela pobre alma caça a dizer mal dela, enfurecendo-se por aquele homem minúsculo não se encolher a cada insulto e ameaça de despedimento que ela gritava. Você está a gozar comigo, gritava, Você acha-se inteligente, grunhia, Você não passa de um zé-ninguém, rosnava e o funcionário mantinha-se impávido. Não sabia o que se estava a passar, não percebia porque motivo tinha deixado repentinamente de ouvir, mas durante aquele tempo foi capaz de perceber que a melhor atitude era não tomar atitude nenhuma e permanecer ali de corpo presente a ouvir não ouvindo o raspanete inútil da chefe. Eventualmente a porca cansou-se de não surtir efeito e desapareceu bufando e arrastando os cascos corredor fora, batendo com as patas em todos os cubÃculos por onde passava até chegar ao gabinete mÃsero que estava no fundo da sala de trabalho. Alguns dos colegas levantaram-se um pouco para ver que coisa era aquela e que se estaria a passar entre a porca da chefe e o Zé Miguel, o calado do cubÃculo do fundo, mas assim que viram o animal a mexer-se de volta ao celeiro sentaram-se todos de rompante como accionados por um mecanismo simultâneo. Que mulher horrÃvel, foi a primeira coisa que o Zé pensou a partir do momento em que ensurdeceu e foi também a primeira vez que conseguiu formular um pensamento sem ouvir o eco da sua voz a ressoar no vazio da sua mente. Era um acontecimento deveras estranho e uma sensação ainda mais estranha, mas não ouvir a sua voz era relaxante. Apenas saber que tinha pensado aquela frase como se a tivesse visto gravada algures mas não a lê-se para si. ImpossÃvel para nós saber qual a sensação de pensar sem formular com a voz algum som pensado, foi como um desaprendimento da linguagem e um pensamento primitivo. É um exercÃcio inútil para mim tentar descrever o que é pensar sem linguagem e para o leitor tentar imaginar o que é deixar de ouvir todas as palavras, mesmo as internas, por isso pomos uma pedra sobre o assunto, eu e quem lê, e ficamos simplesmente pelo facto de que foi isto que aconteceu e foi isto que o José sentiu. E inexplicavelmente fê-lo sentir-se bem. Sorriu durante o resto do dia até à hora de sair, e quando saiu o sorriso era ainda maior ao ver a expressão da porca da chefe a vê-lo passar. E no fim do dia de trabalho foi para casa, surdo de tudo o que se assemelhasse a som, mas feliz.
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Continua...
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