Manuela Fonseca
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A poesia é uma disciplina da alma
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« em: Janeiro 04, 2008, 14:57:41 » |
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Não vale a pena fugir à palavra. Ela existe e pronto! Com todas as letras arrumadinhas no sÃtio certo, quer sejam vogais ou consoantes. Existe em todas as classes sociais, em todas as cidades e aldeias e pelos motivos mais estapafúrdios do mundo. Não, não ladra... Mas morde!
De modos que, naquele dia, a Genoveva preocupadÃssima com as suas insistentes dores de cabeça, decidira queixar-se à Deolinda, que era a irmã mais velha e, ao que parecia, era uma mulher de armas. - Já tomaste Aspirina? - Já mana, mas de nada adiantou. Eu até ando a pensar se isto não será efeito de uma menopausa precoce... - Ó rapariga, tu só tens 40 anos! - Pois, mas pode acontecer... A Deolinda ficou uns minutos a pensar naquilo. Mas não, pode lá ser! - Então, por via das dúvidas, só há uma coisa a fazer. Vamos a um astrólogo! Ele resolve-te o problema num instante, vais ver. - Um astrólogo? Ai mana, não sei... Tenho medo dessas coisas, até me arrepio toda. - Qual medo, qual carapuça, rapariga! Dói-te ou não te dói a cabeça? Então, pronto! Olha, eu até tenho aqui a morada de uma astróloga que vinha na revista "Maria" e que diz ser muito boa. Não te preocupes que eu vou lá contigo. E, por assim dizer, lá foi a Genoveva com a irmã à consulta de astrologia. Esperavam encontrar uma pessoa especialista, meio para o esquisito: olhares psicadélicos, voz grossa e gestos de marabu... Enganaram-se, pois a senhora era perfeitamente normal. Lourinha, bem posta, toda maquilhada (até parecia o mostruário da Avon) e muito simpática. É claro que a simpatia, em questão, só lhe fazia jeito para cativar as senhoras que a consultavam, simpatia que justificava a exorbitante quantia de 100 €, por consulta. - Fique à vontade, querida. Sente-se e relaxe. A boa da Genoveva sentou-se, mas relaxar...está bem, está! Apavorava-a a ideia de ver a mulher transformar-se, repentinamente, num homem do século passado, num animal pré-histórico ou até em algo bem pior! Mas a astróloga apenas se limitou a deitar umas cartas esquisitas em cima de uma mesa com umas velas pequenas, ao lado. - Minha querida, o seu mal é comum... - Ai, não me diga que sofro de alguma doença grave, dessas que agora andam para aÃ... - Não, acalme-se. O seu mal vem da inveja, muita inveja paira sobre a sua casa e a sua pessoa. A Genoveva arregalou os olhos, estupefacta. - Inveja?! Mas inveja de quê? Eu não sou rica, não vou de férias para as CaraÃbas, não compro roupa em Paris, não tenho depósitos a prazo, nem nada dessas coisas! - É simples, minha amiga, a inveja está na sua felicidade conjugal. No fiel e verdadeiro amor que o seu marido lhe dedica. É razão mais do que suficiente para alguém a invejar, nos tempos que correm. A pobre rapariga já não tinha maneira de estar naquele sofá que, ainda por cima, fazia uma cova no meio. - Mas como é possÃvel? E o que posso eu fazer para evitar isso? A Deolinda segredou-lhe: - Calma, mana, eu não te disse que ela resolvia tudo? A astróloga olhou-a, atentamente... - Minha querida, eu não costumo fazer isto, mas como a vejo tão aflita vai fazer o seguinte: durante 9 dias vai rezar uma Avé-Maria e um Pai-Nosso, sempre à mesma hora e de um só fôlego, de modo a parecer um ritual, entende? Após os 9 dias, volte cá.
No regresso a casa, a irmã recomendava-lhe que fizesse tudo como a senhora lhe dissera. - Não te esqueças! São 9 dias, ouviste? - Pois sim, mana...
Mais tarde, a pobre da Genoveva, percorria a sala, de um extremo ao outro, torcendo e retorcendo as mãos, sem saber o que fazer. E como era pessoa de muitas cismas, pôs-se a cismar. Quando o marido chegou do emprego, estava ela no meio da cozinha com cara de poucos amigos, armada e equipada de rolos de massa, frigideiras, colheres de pau gigantescas e, até um batedor de claras. Não fosse a ausência de uma fita vermelha atada à volta da cabeça, terÃamos um Rambo em moldes caseiros. - Mas o que é isto? Endoideceste, amor? - Nunca estive tão lúcida em toda a minha vida! E não tentes mudar de assunto, Macário Salgado! - Mas... - Cala-te! A bem ou a mal - o "mal" pronunciado com notável ênfase - vais ouvir tudo o que tenho para dizer. - Mas que raio se passa contigo? - berrou o marido - Nunca te vi em tal estado! - Pois acostuma-te porque de hoje em diante vai ser assim! Agora senta-te e ouve-me. O Macário lá se sentou num banco da cozinha, a fazer contas à vida e como esta pode ser inesperada. - Em primeiro lugar, deixarás de me ser fiel! - O quê??... - Irás trair-me com eventuais colegas de trabalho e chegarás tarde e más horas a casa. Vais bater-me se a camisa cinzenta não estiver engomada, em vez de me dizeres " deixa lá, amor, eu visto a branca". E até pedirás o divórcio se for preciso, entendeste? Não, decididamente, o pobre do Macário não entendera nada e estava boquiaberto sem desviar os olhos da colher de pau enorme. - Mas tu enlouqueceste?? - perguntou desvairado, passando a mão pelo cabelo desalinhado. - Não! Apenas não aguento mais estas malditas dores de cabeça e não sei rezar o Pai- Nosso nem a Avé- Maria!!!
Manuela Fonseca
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