NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Novembro 22, 2009, 23:38:11 » |
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09. “Boas-Vindasâ€
«Fiz uma sondagem às emissões de energia da Fortuna» informou Ellie, aproveitando aquela pausa no monólogo de comunicações. «Os sensores da Cry of the Angelus detectam a presença da Fortuna em órbita daquela lua grande, através de todos os espectros de energia. Mas a contagem de vidas a bordo apresenta-se desconforme.»
«A Fortuna partiu com dez cientistas a bordo» disse Stonewall, recordando-se das informações que a Schola Belicus lhes havia entregue antes de partirem na missão.
«Detectámos dois sinais de vida nas passagens que os nossos sensores fizeram» disse Ellie, olhando para os monitores amarelados e intangÃveis. O sobrolho do Professor marciano pesou-lhe na fronte, subitamente. «Hmm… parece que esse número acaba de ser actualizado por uma nova passagem. Leio agora três vidas a bordo… hmm… bem, quatro.»
«Quatro?» Autumnsun olhou por sua vez para o relatório que acabara de chegar. Leu-o na diagonal e depois encarou Ellie. «Parece que temos uma verdadeira explosão demográfica em mãos, Professor...»
«A Expansão Humana triunfa mais uma vez, até aqui nos confins por explorar de Andrómeda…» Himikomori piscou-lhes um olho verde. Autumnsun permitiu-se sorrir-lhe.
«Fala-vos Evergrim, Senhora da Cry of the Angelus» insistiu Evergrim, num tom que não admitia silêncios. «Dirijo-me mais uma vez à comandante da Fortuna, Professora Athena. Qualifique transmissão, se puder.» Evergrim olhou novamente para Muirwell, que não podia fazer mais nada além de abanar a cabeça, mas nem isso fazia. «Esta é a Cry of the Angelus, nave-soldado , matrÃcula 23-5-1121, Armada de Exploração da Schola Belicus. Dirijo-me a qualquer tripulante da Fortuna que esteja em condições de responder. A sua nave está com algum tipo de dificuldades?»
«Bom, para começar, podemos pressupor que os geradores de talentos sociais da Fortuna possam ter ido todos abaixo» sugeriu Dreamfrost, dando um cotovelão indelicado em Greymalkin. «O espaço profundo não será o sÃtio mais indicado para a timidez… se fosse eu que estivesse aqui tão longe de tudo há tanto tempo, já tinha aproveitado para fazer amizade com as estrelas. Até com aquelas mais distantes. O Doutor é que é o nosso psicólogo residente. Seria de esperar que a Athena e a sua tripulação a bordo da Fortuna estivessem neste momento a falar pelos cotovelos, não é? Que quisessem saber notÃcias de casa…»
«Pois, imaginaria que sim…» concordou Greymalkin, contemplativo.
«Estão a esquecer-se de que a Fortuna é o lar da maior parte das pessoas que devem estar a bordo neste momento» lembrou Fableshade, ouvindo e juntando-se à conversa dos dois. «Athena só muito raramente deixa a Fortuna e mesmo os tripulantes… Quase todos eles vivem na nave há muitos anos. Por isso, estão como se estivessem em casa…»
«E o isolamento prolongado também é uma eventualidade que alguns de entre nós se habituariam com maior ou menor facilidade» disse Greymalkin. «Ou até, ambicionariam.»
«Não duvido» concordou Dreamfrost, com uma expressão sarcástica. Bastava-lhe pensar nalguns dos companheiros que lhe calhara em sorte naquela longa viagem para apreciar os valores da solidão, mesmo no espaço profundo.
«E se há alguma coisa que nós humanos aprendemos depois de cinco milénios de eventos desportivos em estádios, ladies night nos clubes nocturnos e temporadas de saldos nos complexos comerciais» acrescentou o psicólogo, «é que odiamos esta coisa toda de estarmos sempre juntos. E não me espanta nada que alguns de nós se dêem a grandes trabalhos para restaurar o direito inalienável que Deus nos deu de mantermos uma distância respeitável uns dos outros.»
«Mesmo assim, isto é vir de muito longe só para estarem sozinhos» disse Fableshade.
«Os seres humanos» complementou Greymalkin, «se lhes dermos oportunidade para isso, têm a tendência para se apaixonarem pelos seus egos delicados, e chegam mesmo a terem reservas quanto a partilhá-los. Se pensarmos que Athena e a sua equipa descobriram a Arcadia após quase três anos de buscas solitárias, não será difÃcil imaginar que possam querer guardar todos os seus tesouros só para si.»
«Para isso é que trouxemos uma representante dos seguros connosco» gracejou Dreamfrost, indicando Himikomori numa das plataformas superiores do Cortex. «Alguém vai ter de dizer a Athena para manter as suas patinhas da mesa dos crescidos até que o exército de advogados que vem a caminho deste ponto do Universo Conhecido cá chegue e comece a cortar às fatias o enorme bolo que é a Arcadia.»
«O bolo está pago há muito tempo» lembrou a mulher de cabelo vermelho, lá de cima. «É nosso.»
«Bom, há a lei dos salvados» contrapôs o Professor Ellie, a seu lado. «A Athenacorp terá direito a alguma parte.»
«Veremos.» Himikomori sorria.
«Com bolo ou sem bolo, foram eles que pediram ajuda à Schola Belicus» relembrou Wormsong, ao lado de Fableshade. «Ou nunca saberÃamos o que tinham descoberto. Pelo menos, não, até vermos os boletins especiais informativos da WEB…»
«E mesmo assim ninguém acreditaria» prosseguiu Dreamfrost. «Quem ainda confia nos órgãos oficiais de informação de Domus Regia?»
A conversa foi rasgada por um silvo que ecoou por todo o Cortex, dois dedos bem acima da tolerância do tÃmpano humano. Muirwell e Harlownet sofreram os efeitos mais imediatos e intensos daquela transmissão abrupta. Harlownet soltou mesmo um grito de surpresa. Era como se o tecido da realidade se abrisse para o mundo do além, e tudo o que vinha do outro lado fossem más notÃcias e emissões vocais de sopranos justamente obscuras. E, no meio disso, palavras que até pareciam humanas:
«…est... há mais de… horas… contact… ssss… es… ss… tentar comunicar… ssssco desde q… sssss captámos… ssssso radar… gelus… fortuna… repit… ssss!»
«Filtros, Mr. Muirwell, por gentileza» pediu Evergrim. « Desanuvie essa transmissão, queremos todos ouvir o que a Fortuna nos diz.»
«Sim, Senhora.» Muirwell já estava a meio caminho de cumprir aquela indicação quando Evergrim a dera. Ordens mentais coreografadas com movimentos de dedos que sabiam todos os caminhos mais rápidos e que, mesmo sozinhos, iam dar a casa. Quando a voz surgiu de novo, parecia que a pessoa estava a falar ali, sentada numa ergomorphica ao lado de Muirwell.
«Daqui, Fortuna, matrÃcula 1092-975-94, Athenacorp» dizia a voz forte de sotaque acentuado e que soava completamente deslocado naquele ponto do Universo. «Cry of the Angelus, estão a ouvir-nos?»
«Já temos holo» advertiu Muirwell.
«Projectar, Mr. Muirwell» ordenou Evergrim.
E no centro do Cortex apareceu uma imagem holomática enorme, em pleno ar, de um rosto feminino tão grande que se poderia extrair o recheio e morar-se lá dentro. As janelas eram olhos que balançavam incertos entre o castanho e o verde, embora parecessem mais verdes que outra coisa. A tez era morena, num rosto redondo encimado por uma testa não muito alta que ligava com o cabelo negro que brilhava como estrelas que faiscavam perante os esforços do projector holomático em fazer-lhes justiça. Sobrancelhas escuras, finas, nariz proporcionado à escala. Lábios cheios e contidos, e o queixo, sendo redondo, não desarranjava a quase perfeita circunferência que era o rosto daquela mulher. A imagem deixava ver um pescoço longo e ombros largos, mas mais do que isso seria ao palpite de cada um dos astronautas presentes no Cortex da Cry of the Angelus.
«Esta é uma comunicação em todos os canais da nave Fortuna, Athenacorp» dizia a mulher, a voz já a deixar passar alguma ansiedade. «Cry of the Angelus, estão a ouvir-nos?»
«Estamos a enviar sinal holo?» Perguntou Evergrim a Muirwell, que lhe acenou afirmativamente. Olhou para o fantasma holomático que lhes chegava da Fortuna. «Sou Evergrim, Senhora da Cry of the Angelus. Espero que me recebam sem problemas, Fortuna.»
«Oh…!» O rosto da mulher limpou-se e o sorriso estendeu-se de uma ponta à outra do Cortex. «Agora, sim, estamos a receber-vos. É um prazer vê-la e ouvi-la, Senhora.»
«Estou a falar com a Professora Athena?» Quis saber Evergrim. Não reparou no gesto de desagrado que Dreamfrost fez lá embaixo. Era óbvio que aquela não era Athena. Dreamfrost conhecia muito bem aquela mulher. Evergrim também devia conhecer. Não andava a ler os dossiers, pelos vistos.
«Oh… Não, essa seria a minha irmã mais velha» respondeu a tripulante da Fortuna. «Sou Sulandra, tenho o comando operacional da Fortuna.»
«Onde está a Professora Athena?» Insistiu a Senhora da Cry of the Angelus.
«A minha irmã está…» Na projecção holomática, os astronautas da nave-soldado viram Sulandra olhar para o lado, para algures que não se encontrava abrangido pelo enquadramento. Voltou a fitar a objectiva, com um semblante menos lÃmpido. «…muito ocupada de momento… Mas pediu-me que em seu nome vos desse as boas vindas a este momento Ãmpar na história da Humanidade.»
A Senhora da Cry of the Angelus, visivelmente, não gostou ser recebida por uma subalterna. Quebrava protocolos antigos e tradições culturais em tão grande número que seria impossÃvel estar agora ali a enumerar todas. Também não achou que devesse agradecer a saudação. Optou antes por ser lacónica.
«Preparem-se para serem abordadas.»
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